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Processo n.º 292/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2º Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. W. G., tendo-lhe sido indeferido pelo MINISTRO DA ECONOMIA
(despacho de 2 de Agosto de 1988) o recurso hierárquico necessário, que apresentou contra o acto que homologou a lista de classificação final do concurso para o preenchimento de quatro vagas de técnico superior principal do quadro da Direcção-Geral da Indústria, aberto pelo Aviso publicado no Diário da República, n.º 278, II série, de 3 de Dezembro de 1987, a que se apresentou, interpôs recurso contencioso de anulação desse despacho, no Supremo Tribunal Administrativo.
Alegou a recorrente, entre o mais, que a Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, na parte em que conferiu autorização ao Governo para legislar sobre o recrutamento e selecção de pessoal, está ferida de inconstitucionalidade formal, por isso que tenha ficado 'afectado, de modo constitucionalmente irremissível, o procedimento legislativo que produziu o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro'.
A 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 31 de Janeiro de 1995, negou provimento ao recurso, por julgar improcedentes os fundamentos invocados, designadamente o que radicava na invocada inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 44/84, decorrente de idêntico vício que, segundo a recorrente, afectava a Lei n.º 14/83.
Desse acórdão da 1ª Secção interpôs ela recurso para o Pleno da Secção, insistindo na inconstitucionalidade antes suscitada.
O Pleno da 1ª Secção, por acórdão de 20 de Março de 1997, julgou inverificada a inconstitucionalidade e negou provimento ao recurso.
2. É deste acórdão (de 20 de Março de 1997) que vem o presente recurso, interposto pela mesma recorrente ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, e do Decreto-lei n.º
44/84, de Fevereiro.
Neste Tribunal, alegou a recorrente que, para o que aqui importa, formulou as seguintes conclusões:
1. A Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, pelo seu conteúdo, é subsumível no conceito de 'legislação do trabalho'.
1.1. As leis de autorização legislativa não são leis em sentido meramente formal, porquanto têm obrigatoriamente, de ser providas de uma materialidade, maior ou menor, mas sempre em grau suficiente para cumprir todos os requisitos do artigo 168º, n.º 2, da Constituição, pelo que com a lei de autorização há já uma decisão legislativa relevante na conformação do resultado normativo final a aplicar aos particulares, qual seja o 'decreto-lei autorizado' a editar pelo Governo através do Conselho de Ministros.
1.2. Assim, sendo o 'decreto-lei autorizado' determinado pela 'lei de autorização', com facilidade (...) se vê, face à Constituição e aos princípios nela consagrados, a utilidade e a necessidade da participação das associações sindicais no 'procedimento legislativo especial', que é a feitura das leis de autorização legislativa.
1.3. Destarte, à luz da Constituição e dos princípios nela consignados, toda a decisão legislativa (que, no caso, passa por um procedimento complexo, desdobrável em dois graus) tem de ser activamente participada pelas associações sindicais: a cada passo da concretização da norma haverá que corresponder um momento participativo.
1.4. Ora, as associações sindicais não participaram na elaboração da Lei n.º
14/83, de 25 de Agosto (o que, aliás, logo resulta do seu preâmbulo, onde nenhuma referência se faz a tal participação, tal como, aliás, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro), pelo que a mesma, por ofensa aos artigos 3º, nºs 2 e 3, 57º, n.º 2, a), e 277º, n.º 1, enferma de inconstitucionalidade formal (ou 'in procedendo', se assim melhor se preferir), daí tendo resultado afectado, de modo constitucionalmente irremissível, o procedimento legislativo que produziu o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, o qual, pois, padece de inconstitucionalidade consequente (derivada ou reflexa).
1. 5. Assim (...), tendo decidido deferentemente, o acórdão recorrido não fez boa interpretação e aplicação do direito, e, pois, não fez bom julgamento (...).
2. Entre a gama dos requisitos exigidos a uma lei de autorização legislativa encontra-se a indicação do 'sentido' (...).
2.1. Porém, a Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, no segmento sob observação, apresenta carácter extremamente vago, impreciso, genérico e indeterminado. Pelo que,
2.2. À luz do artigo 168º, n.º 2, da Constituição, iluminado pela jurisprudência constitucional, não dispõe de 'sentido' constitucionalmente adequado: não permite 'a determinação das linhas de força, no plano substantivo, que nortearão o exercício dos poderes delegados', ou não permite a 'determinação das linhas gerais das alterações a introduzir' ou, ainda, não permite 'a descoberta do programa de legislação estabelecido pelo Parlamento de modo que oriente o legislador delegado' e torne 'reconhecível e até previsível pelo cidadão qual o sentido da legislação que vai ser emanada ao abrigo dos poderes delegados.
2.3. Assim (...), a Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, no segmento sob observação, por ofensa ao artigo 168º, n.º 2, da Constituição, enferma, originariamente, de inconstitucionalidade, o que, derivada ou reflexamente, inquina o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, editado ao seu abrigo (de forma, aliás, global e globalizante, de tal sorte que já não é possível cindi-lo nos normativos editados ao abrigo da lei de autorização daqueles outros que serão, eventualmente, reedição de normação anterior).
2.4. Não tendo considerado verificada a inconstitucionalidade acabada de citar o douto acórdão recorrido (...) não fez boa interpretação e aplicação do direito, e, pois, não fez bom julgamento.
O Ministro da Economia, nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões: a). A Lei de autorização legislativa n.º 14/83, de 25 de Agosto, limitou-se a delegar no Governo a competência para proceder à reformulação das bases do regime previsto em diversos diplomas respeitantes ao recrutamento e selecção do pessoal da função pública; b). A Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, não contém normas que regulem directamente a relação de emprego na função pública ou que directamente procedam à regulamentação do estatuto de pessoal da função pública ou à efectivação dos seus direitos fundamentais, constitucionalmente reconhecidos; c). A referida Lei não se configura, assim, como legislação do trabalho, pelo que a não participação das associações sindicais não violou o artigo 57º, n.º 2, da Lei Fundamental; d). A Lei em causa não apresenta carácter impreciso, genérico ou indeterminado; e). O sentido de uma autorização legislativa constitui o seu limite interno essencial para a determinação das linhas de força, no plano substantivo, em ordem a nortear o exercício dos poderes delegados; f). O sentido da autorização legislativa deve constituir, no essencial, um pano de fundo orientador da acção do Governo nas matérias delegadas; g). A mencionada lei de autorização enuncia, de forma clara, as finalidades que o Governo deve prosseguir no domínio do recrutamento e selecção de pessoal da Administração Pública em geral; h). O sentido normativo de tal lei está, assim, perfeitamente previsto na óptica do disposto no n.º 2 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa; i). O Decreto-Lei n.º 44/84 não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a Lei n.º 14/83, de 25de Agosto, e o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, são ou não inconstitucionais.
II. Fundamentos:
4. O objecto do recurso:
A recorrente, no requerimento de interposição do recurso, indicou como inconstitucionais a Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, e, derivadamente, o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro. Certo é, no entanto, que, nas alegações, ao sustentar a inconstitucionalidade da Lei n.º 14/83, referiu-se ao
'segmento sob observação'. Não identificou, porém, qual esse segmento.
Tais diplomas legais não são, no entanto, em toda a sua extensão, objecto do recurso.
A Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, e o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, apenas estão, de facto, em causa no recurso na parte relativa aos concursos para provimento de lugares dos serviços públicos, pois que só nessa medida o diploma legal indicado por último foi aplicado no julgamento do caso. Ou seja: da Lei n.º 14/83, interessa apenas apreciar, sub specie constitutionis, a autorização concedida ao Governo para reformular a matéria contida nos artigos
11º a 15º do Decreto-Lei n.º 165/82, de 10 de Maio, e nos artigos 5º a 20º do Decreto-Lei n.º 171/82, da mesma data, já que era aí que tal matéria se encontrava antes regulada; e, do Decreto-Lei n.º 44/84, só importam os artigos
5º a 48º, uma vez que foram estes os preceitos que passaram a regular a matéria dos concursos na função pública, até que o Decreto-Lei n.º 498/88, de 30 de Dezembro (entretanto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 215/95, de 22 de Agosto) veio revogar esse Decreto-Lei n.º 44/84.
Ora, pela Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, a Assembleia da República autorizou o Governo a legislar não apenas sobre a matéria de concursos, mas também 'em matéria referente ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de medidas de emprego da função pública e a uma adequada gestão dos seus recursos humanos, em particular o pleno aproveitamento dos excedentes e a sua efectiva mobilidade, podendo a aplicação de tais medidas ser alargada à administração local' [cf. a alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º], com isso visando 'a reformulação da matéria contida nos Decretos-Leis nºs 164/82, 165/82, 166/82, 167/82, 168/82 e 171/82, todos de 10 de Maio, no sentido de obter uma melhor descentralização, racionalização, simplificação burocrática e desconcentração do aparelho administrativo do Estado' (cf. n.º 2 do artigo 1º). E autorizou-o, bem assim, a legislar 'em matéria referente ao descongestionamento e subsequente extinção do quadro geral de adidos, incluindo os excedentes constituídos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 294/76, de 24 de Abril, e legislação complementar' [cf. a alínea b) do n.º 1 do artigo 1º], com o que visou 'a adopção de medidas de aposentação obrigatória, quando for caso disso, e ainda medidas que abranjam os funcionários e agentes na situação de licença sem vencimento nos termos do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 294/76'. E o Governo, em execução desta autorização legislativa, em 3 de Fevereiro de 1984 - para além do mencionado Decreto-Lei n.º 44/84, em que definiu 'os princípios gerais enformadores do recrutamento e selecção de pessoal e do processo de concurso na função pública' - editou também os Decretos-Leis nºs 41/84 (define o processo de apresentação e apreciação de diplomas relacionados com estruturas orgânicas e quadros de pessoal, e regulamenta instrumentos de mobilidade nos serviços da Administração Pública),
42/84 (extingue a quadro geral de adidos criado pelo Decreto-Lei n.º 294/76, de
24 de Abril), 43/84 (constituição de excedentes na função pública e critérios da sua gestão e recolocação) e 45/84 (subsídio de deslocação e incentivos para a fixação na periferia do pessoal da função pública).
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. Entende a recorrente que a Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, viola o n.º 2 do artigo 168º da Constituição, que impõe que as leis de autorização legislativa definam o respectivo sentido. E isso porque - diz - aquela lei 'não permite 'a determinação das linhas de força, no plano substantivo, que nortearão o exercício dos poderes delegados', (...) a
'determinação das linhas gerais das alterações a introduzir' ou, ainda, (...) 'a descoberta do programa de legislação estabelecido pelo Parlamento de modo que oriente o legislador delegado' e torne 'reconhecível e até previsível pelo cidadão qual o sentido da legislação que vai ser emanada ao abrigo dos poderes delegados'.
Pois bem: o sentido da autorização legislativa não tem por que corresponder a uma enunciação minuciosa de todos os aspectos a regulamentar; basta que forneça ao Governo os princípios-base da legislação a produzir, por forma a poder servir-lhe de orientação e, assim, de parâmetro ou de medida [cf., entre outros, os acórdãos nºs 414/96 e 233/97 (publicados no Diário da República, II série, de 16 de Julho de 1996 e de 12 de Maio de 1997, respectivamente)].
Ora, a simples leitura do texto da autorização legislativa é suficiente para colher os 'princípios-base', as 'linhas de força' ou 'linhas gerais' da legislação a produzir e, inclusive, da finalidade que se pretendeu alcançar com as 'alterações a introduzir' no ordenamento jurídico, mediante a reformulação da legislação existente sobre a matéria.
A Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, tem, pois, sentido constitucionalmente suficiente.
Esta conclusão impõe-se tanto mais quanto é certo que - como se mostrou no acórdão n.º 302/95 (publicado no Diário da República, II série, de 29 de Julho de 1995), ilustrando-se a asserção com a indicação de várias leis de autorização -, a Lei n.º 14/83 foi editada numa época em que as leis de autorização legislativa se limitavam à definição de um mínimo de sentido. Ao que acresce (quanto ao que especificamente aqui importa, que são os concursos para o provimento de lugares de técnico superior principal da função pública) que não se tratou propriamente de autorizar o Governo a produzir legislação ex novo, mas antes de lhe permitir 'a reformulação da matéria contida' nos artigos atrás apontados dos Decretos-Leis nºs 165/82 e 171/82, ambos de 10 de Maio.
A Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, não viola, pois, o n.º 2 do artigo
168º da Constituição da República.
5.2. A recorrente sustenta também que a Lei n.º 14/83, 'pelo seu conteúdo, é subsumível no conceito de 'legislação do trabalho', sendo, no entanto, certo que 'as associações sindicais não participaram na [sua] elaboração'. Por isso - acrescenta -, 'a mesma, por ofensa aos artigos 3º, nºs 2 e 3, 57º, n.º 2, a), e 277º, n.º 1, enferma de inconstitucionalidade formal
(...), daí tendo resultado afectado (...) o procedimento legislativo que produziu o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, o qual, pois, padece de inconstitucionalidade consequente (derivada ou reflexa)'.
5.2.1. Importa, então, começar por saber o que deve entender-se por legislação do trabalho para os fins da alínea a) do n.º 2 do artigo 57º da Constituição, na versão de 1982, em vigor à data da emissão da Lei n.º 14/83 - correspondente à alínea a) do n.º 2 do artigo 56º, após as revisões constitucionais de 1989 e de 1997 -, a qual prescreve que constituem direitos das associações sindicais 'participar na elaboração da legislação do trabalho'.
Este Tribunal tem entendido que constitui legislação do trabalho a que visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho e, bem assim, os direitos dos trabalhadores enquanto tais e os das respectivas organizações - ou seja, a legislação que visa regulamentar os direitos fundamentais dos trabalhadores [cf., entre outros, os acórdãos nºs 31/84, 451/87, 15/88, 107/88,
185/89, 218/89 e 201/90 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 2º, 10º, 11º, 13º-I e 16º, páginas 123, 161, 153, 7, 229, 237 e 493, respectivamente); n.º 61/91 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º
405, páginas 91); nºs 355/91 e 93/92 (publicados nos Acórdãos citados, volumes
19º e 21º, páginas 585 e 91, respectivamente); n.º 124/93 (publicado no Diário da República, I-A, de 3 de Março de 1993); n.º 430/93 (publicado no Boletim citado n.º 429, páginas 140); nºs 229/94 e 362/94 (publicados no Diário da República, I-A, de 23 de Abril e de 15 de Junho, de 1994); e n.º 238/95
(publicado no Diário da República, II, de 28 de Junho de 1995)].
No que respeita à função pública, especificou-se no citado acórdão n.º 362/94 que constitui legislação do trabalho 'o que se estatui em matéria de regime geral e especial dessa espécie de vinculo de trabalho subordinado, condições de trabalho, vencimentos e demais prestações de carácter remuneratório, regime de aposentação ou de reforma e regalias de acção social e de acção social complementar'.
5.2.2. Vejamos, então, se, no caso, se está em presença de legislação do trabalho.
(a). A Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto:
A Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto, na parte em que autorizou o Governo a legislar sobre concursos para o provimento de lugares de serviços públicos, deverá (ou não) qualificar-se como legislação do trabalho, consoante se entenda deverem (ou não) merecer esse qualificativo as leis de autorização legislativa que versem matéria laboral, que é o que sucede com ela.
Não pode, na verdade, deixar de entender-se que esta lei, ao autorizar o Governo a reformular o regime dos concursos para o provimento de lugares na função pública, versa sobre matéria laboral. Trata-se, com efeito, de matéria que, para além de integrar o regime da função pública, respeita à regulamentação de um direito fundamental dos cidadãos, consagrado no artigo 47º, n.º 2, da Constituição da República - a saber: o 'direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso'.
Pois bem: o Tribunal tem entendido, mas com vozes discordantes
(entre elas, a do ora relator), que 'as leis de autorização legislativa relativas a legislação laboral se devem qualificar, elas também, como legislação do trabalho, para efeitos de assegurar a audição das organizações de trabalhadores, pressuposto da sua participação na elaboração de tais leis' [cf. o citado acórdão n.º 107/88 e o acórdão n.º 64/91 (publicado nos Acórdãos citados, volume 18º, páginas 67)].
No entendimento, porém, de outros juízes (entre eles - repete-se - o ora relator), as leis de autorização legislativa ainda não são legislação do trabalho: sendo, embora, verdadeiras e próprias leis, elas distanciam-se de outras leis sob o ponto de vista da sua eficácia jurídica, pois que 'não produzem efeitos jurídico-materiais no domínio social sobre que o Governo pretende legislar', mas apenas 'efeitos instrumentais, criando condições para que possa verificar-se uma mudança do direito material aí vigente levada a efeito pelo Governo' - para se usar a terminologia da declaração de voto do Conselheiro Alves Correia, aposta ao acórdão n.º 64/91. Tais leis assumem, por isso, a natureza de normas de competência (cf. a declaração de voto aposta ao acórdão n.º 107/88, subscrita pelo Conselheiro Cardoso da Costa e pelo ora relator).
Claro é que, quando se entenda que as leis de autorização legislativa sobre matéria laboral se devem qualificar como legislação do trabalho para os fins da alínea a) do n.º 2 do artigo 57º da Constituição
(versão de 1982), haverá de concluir-se que impende sobre a Assembleia da República - e não apenas sobre o Governo - o dever de ouvir as associações sindicais (e, quando for o caso, as comissões de trabalhadores). Ou seja: concluirá que a Assembleia deve cumprir esse dever antes de aprovar a lei de autorização legislativa, não bastando que, antes de aprovar o decreto-lei autorizado, o Governo promova a participação daquelas organizações.
Quem, porém, como o ora relator, sustenta que as leis de autorização legislativa ainda não são legislação do trabalho - entendimento que aqui se reitera - concluirá (em palavras da citada declaração de voto do Conselheiro Alves Correia) que 'não se apresenta como constitucionalmente adequado exigir a participação das organizações de trabalhadores na sua elaboração'. Tal participação - acrescenta-se - será muito mais útil e eficaz se incidir sobre o projecto de decreto-lei que o Governo elaborar no uso da autorização legislativa.
Registe-se, no entanto, que, se o Governo, antes de aprovar o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, tivesse promovido a audição das associações sindicais, perderia todo o sentido ir averiguar se a Assembleia da República promoveu (ou não) a sua audição antes de aprovar a Lei n.º 14/83. Isto, claro está, quando se entendesse que as leis de autorização legislativa sobre matéria laboral constituem legislação do trabalho.
É que - à semelhança do que este Tribunal fez ainda recentemente no acórdão n.º 257/97 (por publicar), tirado a propósito da Lei n.º 10/83, de 13 de Agosto, ao abrigo da qual o Governo editou o Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, que aprovou o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local -, haveria então que ponderar que, tendo sido aquele diploma legal (e não a Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto) o corpo de normas aplicado no julgamento do caso, a audição promovida a seu respeito tinha consumido a falta de audição quanto à lei autorizadora.
Todavia, a dilucidação final desta questão só interessará, se não houver de concluir-se pela inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 44/84, de 3 de Fevereiro, em razão também da falta de audição, quanto a ele, das organizações sindicais. De contrário, concluindo-se pela inconstitucionalidade deste diploma legal, já a questão da inconstitucionalidade da lei será irrelevante, pois que o decreto-lei é, ele próprio, inconstitucional.
(b). O Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro:
Tendo a expressão legislação do trabalho o significado e o alcance atrás apontados (supra, 5.2.1), há-de convir-se que as normas constantes dos artigos 5º a 48º do Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro - que regulam os concursos para o provimento de lugares da função pública - constituem legislação do trabalho, pois que, para além de integrarem o regime da função pública, regulamentam um direito fundamental dos cidadãos, consagrado no artigo 47º, n.º
2, da Constituição da República - a saber: o 'direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso'.
Contendo os mencionados artigos 5º a 48º do Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, normas que devem ser qualificadas como legislação do trabalho, sobre ela deviam ter sido ouvidas as associações sindicais representativas dos trabalhadores da Administração Pública, pois que o direito de participar na elaboração da legislação desse tipo estava-lhes constitucionalmente garantido pelo já referido artigo 57º, n.º 2, alínea a), da Constituição (cf. os já citados acórdão n.º 451/87 e 229/94).
Para se poder falar em participação na elaboração da legislação do trabalho, necessário é que o projecto da legislação a produzir seja levado ao conhecimento das organizações representativas dos trabalhadores antes de aprovado, por forma a que elas se possam pronunciar sobre o mesmo [cf. os acórdãos nºs 22/86 (publicado nos Acórdãos citados, volume 7º-I, páginas 21) e
362/94, já citado].
Este Tribunal tem também entendido que, se no preâmbulo do diploma legal sub iudicio (ou nos respectivos trabalhos preparatórios) não houver qualquer menção ou referência à audição das associações sindicais, tem de presumir-se que esta não teve lugar (cf. o já citado acórdão n.º 93/92).
No presente caso, há, então, que concluir que as associações sindicais interessadas - para além de, como já se viu, não terem sido ouvidas sobre a Lei n.º 14/83, de 25 de Agosto - também o não foram sobre o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, pois que nenhuma referência é feita a tal audição no respectivo preâmbulo.
O Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, está, assim, inquinado de um vício procedimental - falta de audição das associações sindicais representativas dos trabalhadores da Administração Pública, imposta pelo artigo
57º, n.º 2, alínea a), da Constituição, na versão de 1982 -, sendo, por isso, inconstitucional, por violação deste preceito da Lei Fundamental.
Esta conclusão não é afectada pela doutrina afirmada no acórdão n.º
218/89, já citado (e repetida no acórdão n.º 430/93, também citado), segundo a qual não podem considerar-se legislação do trabalho as normas de um diploma legal que se limitam 'a reproduzir princípios gerais constantes de outras leis anteriores', ainda quando as mesmas se referem ao 'regime jurídico do pessoal respectivo'.
Na verdade, no caso - diferentemente do que se verificava nas hipóteses apreciadas nos acórdãos nºs 218/89 e 430/93 - não se tratou de reproduzir 'princípios gerais constantes de leis anteriores', no diploma orgânico de um determinado serviço. Tratou-se, isso sim, de reformular o regime jurídico dos concursos para o provimento de lugares da função pública. E, ao proceder a essa reformulação, o Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, revogou o Decreto-Lei n.º 171/82, de 10 de Maio, e a 'legislação complementar', e regulou, de forma unitária, o 'processo de concurso' para o 'recrutamento e selecção' do pessoal dos quadros dos 'serviços ou organismos da administração central, dos organismos de coordenação económica e dos demais institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos' (cf. artigos 1º, n.º 1, e 5º, n.º 1) - excepção feita ao recrutamento de pessoal dirigente [cf. artigo 2º, n.º 1, alínea a)]. [Regista-se, contudo, que o recrutamento e selecção do pessoal docente, de investigação, médico, de enfermagem e administradores hospitalares ficou a poder 'obedecer a processo de concurso próprio' (cf. artigo 2º, n.º 2)].
Acresce que a disciplina dos concursos, consagrada neste Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, não é uma mera reedição da regulamentação constante dos Decretos-Leis nºs 165/82 e 171/82, ambos de 10 de Maio, antes dela difere em pontos importantes. Assim, e apenas a título de exemplo, apontam-se alguns aspectos inovatórios na nova disciplina: os concursos podiam ser de habilitação, de afectação e de provimento, internos ou externos, de ingresso ou de acesso (artigos 6º a 10º do Decreto-Lei n.º 171/82 e artigos 11º a 13º do Decreto-Lei n.º 165/82), ao passo que, com o Decreto-Lei n.º 44/84, passaram a ser internos ou externos, de ingresso ou de acesso (cf. artigo 7º); a par de um processo de concurso comum, passou a prever-se um processo de concurso especial
(cf. artigos 9º a 41º e 42º a 48º, respectivamente); a regulamentação das operações de recrutamento e selecção passou a constar do próprio Decreto-Lei n.º
44/84 (cf. artigo 8º), enquanto que, no domínio do Decreto-Lei n.º 171/82, tais operações eram estabelecidas em regulamentos aprovados ministerialmente, por portaria ou por despacho conjunto (cf. artigo 18º); o Decreto-Lei n.º 44/84 passou a regular a constituição, a composição, o funcionamento e a competência do júri de concurso (cf. artigos 15º a 18º), o que antes não acontecia.
Por esta última razão, também não pode, na tentativa de afastar a inconstitucionalidade das normas em causa, fazer-se apelo à falta de inovação relativamente ao regime anterior.
Deve, assim, concluir-se que os artigos 5º a 48º do Decreto-Lei n.º
44/84, de 3 de Fevereiro, em virtude de a sua edição não ter sido precedida de audição das associações sindicais interessadas, violam o artigo 57º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República, na versão de 1982.
Este vício de inconstitucionalidade, que se aponta ao Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro, é um vício do próprio diploma legal, não sendo, pois, consequência da inconstitucionalidade de que padecesse a Lei n.º 14/83, de
25 de Agosto.
A recorrente, no entanto, ao pedir que se julgue inconstitucional aquele decreto-lei, faz decorrer a sua inconstitucionalidade, 'derivada ou reflexamente', da inconstitucionalidade que, em seu entender, inquina a Lei n.º
14/83, de 25 de Agosto.
Este facto, porém, não impede que o Tribunal julgue as mencionadas normas inconstitucionais, pois que, não podendo conhecer ultra vel extra petitum
(o pedido formulado no recurso define o objecto do mesmo: cf. artigo 684º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil), no entanto - em aplicação dos brocardos latinos da mihi factum, dabo tibi ius e iura novit curia, que as nossas leis acolhem (cf. artigo 51º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, e artigos
660º, n.º 2, 661º, n.º 1, 664º e 713º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 69º daquela lei) -, pode fazê-lo com fundamentos diversos dos invocados, ou seja, servindo-se de razões ou motivos de inconstitucionalidade diferentes daqueles que o recorrente tiver apontado.
É o que acontece no caso, pois, julgar certas normas inconstitucionais, com fundamento em que elas violam a Constituição, quando o recorrente pede que esse julgamento de inconstitucionalidade se faça decorrer da inconstitucionalidade de outras normas que também fazem parte do objecto do recurso, é proferir um julgamento de inconstitucionalidade sobre normas incluídas nesse objecto, embora por razões diversas das invocadas.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). julgar inconstitucional - por violação do disposto no artigo 57º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República, na versão de 1982 - os artigos 5º a 48º do Decreto-Lei n.º 44/84, de 3 de Fevereiro;
(b). conceder, nesses termos, provimento ao recurso; e, em consequência, revogar nessa medida a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, a fim de ser reformada em conformidade com o aqui decidido. Lisboa, 1 de Julho de 1998 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida