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Proc. nº 742/98 TC – 1ª Secção Rel.: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - J..., com os sinais dos autos, foi punido por deliberação do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) de 30/3/98 com a pena de aposentação compulsiva. Requerida a suspensão de eficácia desta deliberação, veio o ora reclamante requerer a 'suspensão preventiva da eficácia da 'resolução' a que se refere a parte final do artigo 80º, nº 1 da LPTA, que o CSTAF venha a proferir no âmbito do processo disciplinar nº 432 no qual, por decisão datada de 30 de Março de
1998, foi aplicada ao requerente 'a pena de aposentação compulsiva' (sic). Neste requerimento , alegados que foram os requisitos de que supostamente dependeria o deferimento do pedido, o requerente invocou o seguinte:
'Prevenindo a necessidade de eventual recurso para o Tribunal Constitucional, é mister desde já invocar duas gritantes inconstitucionalidades. Em primeiro lugar, invoca-se a inconstitucionalidade da alínea c), nº 1, do o artigo 26º do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, [Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ETAF], na parte em que defere ao Supremo Tribunal Administrativo [STA], Secção de Contencioso Administrativo, pelas subsecções, a competência para conhecer dos actos, como o presente, praticados pelo CSTAF. Na verdade, nos termos do artigo 98º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF] e do artigo 217º, nº 2, da Constituição, a entidade ré – rectius, requerida – detém o poder de «gestão» e de «acção disciplinar» sobre os juízes chamados a decidir. Sobre os juízes chamados a decidir, a mesma entidade ré detém ainda o poder de, nos termos do artigo 98º, nº 2, alínea e), do ETAF, «ordenar averiguações e inquéritos, bem como inspecções e sindicâncias». Nos termos do artigo 162º, nº 3, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho (aplicável ao STA por força do artigo 77º do ETAF), a entidade ré detém o poder de mandar
«proceder a inspecção, inquérito ou processo disciplinar a juízes do Supremo». Sendo que, nos termos do artigo 16º do Regulamento das Inspecções Judiciais aprovado pelo Conselho Superior de Magistratura, aplicável por força do 37º do Regulamento do CSTAF, os juízes chamados a decidir estão sujeitos à «acção pedagógica» dos inspectores da entidade ré. A entidade ré detém igualmente o poder de, nos termos do artigo 98º, nº 2, alínea d), do ETAF, «distribuir» os juízes chamados a decidir. Outrossim, a entidade ré detém o poder de demitir os juízes chamados a decidir, inclusivamente – os que estão em comissão de serviço – das suas carreiras originais (de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público), nos termos do artigo 98º, nº 5, do ETAF. Em segundo lugar, invoca-se a inconstitucionalidade do artigo 102º do ETAF (e do artigo 6º do Regulamento do CSTAF, que é ainda inconstitucional por violação do artigo 115º, nº 7, da Constituição, na redacção da Lei Constitucional nº 1/82), segundo o qual é a secretaria STA que «assegura» ao CSTAF «os respectivos serviços, sob a direcção do secretário do Tribunal». Efectivamente, a entidade ré sempre beneficiou e benificia de vários «serviços» prestados pelo Tribunal chamado a decidir, como, por exemplo, instalações. Realização de todas as reuniões na mesma sala do Tribunal. Com assento nas mesmas cadeiras dos juízes. Pagamento de todas as despesas necessárias – desde o papel à tinta e ao registo do correio – à instauração e prosseguimento do processo disciplinar ao requerente e à prolação da decisão ora atacada. Fornecimento de todos os funcionários de que a entidade ré necessitou. Nomeadamente em apoio aos respectivos serviços de polícia, maxime, nos interrogatórios e correspondente tortura a que o requerente foi sujeito. Quer dizer; sem os serviços que o Tribunal chamado a decidir prestou à entidade ré – nomeadamente, em instalações, em dinheiro, em material e em pessoal – o ora requerente jamais teria sido perseguido disciplinarmente no âmbito do referido processo 432. Tal processo não existiria. E sabe-se que a independência dos tribunais só está assegurada, do ponto de vista funcional, se, além da independência dos juízes, estiver salvaguardada também a independência dos funcionários. Por isso é que, entre as «garantias da imparcialidade» como se exprime a epígrafe do Capítulo VI do Título II do Livro I do Código de Processo Civil, que se inicia com o artigo 122º - se encontram os impedimentos, as escusas e as suspeições oponíveis aos funcionários.
«Das garantias de imparcialidade» é igualmente, a epígrafe da Secção VI Capítulo I da Parte II do Código de Procedimento Administrativo, que se inicia com o artigo 44º.. Podendo ver-se, igualmente, os artigos 125º e 134 do Código de Processo Civil e artigo 47º do Código de Processo Penal. De resto, o artigo 80º do Decreto Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro – Lei Orgânica das Secretarias Judiciais e Estatuto do Funcionário de justiça – estabelece as «incompatibilidades» dos «funcionários de justiça», entre as quais figura a proibição de «exercer qualquer outra função remunerada, pública ou privada, salvo o exercício de funções docentes, quando legalmente admissíveis e devidamente autorizadas» (alínea b)). O que bem se compreende, pois são os funcionários que «asseguram o expediente, a autuação e regular tramitação dos processos pendentes» - artigo 161º, nº 1, do Código de Processo Civil. Acresce que o Tribunal chamado a decidir deixa-se presidir pelo próprio presidente da entidade ré. Que detém, igualmente, poder disciplinar sobre os funcionários do Tribunal. Consequentemente há violação do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro, segundo o qual, o requerente tem direito a «um tribunal independente e imparcial». E há violação do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2º da Constituição e do disposto nos artigos 8º, nºs 1 e 2, e 203º da Constituição, que consagram a «separação de poderes» e o direito do requerente a «tribunais
[que sejam] independentes». Além de haver violação – porque, na hipóteses dos autos, se trata de contencioso disciplinar – do direito de defesa, consagrado nos artigos 32º, nº 1, e 269º, nº
3, da Constituição. Violando-se ainda o direito fundamental do requerente a um «processo equitativo»
(artigo 20º, nº 4, da Constituição). Sobre o requerimento foi proferido acórdão pela Secção de Contencioso Administrativo que rejeitou o pedido, fundamentalmente, por duas ordens de razões. a. Não ser possível a suspensão de eficácia de um acto que ainda não existe na ordem jurídica; b. Não ser possível a suspensão de eficácia da 'resolução fundamentada' a que alude o artigo 80º, nº 1 da LPTA, para cuja impugnação o legislador colocou
à disposição do interessado um meio processual próprio – o pedido de declaração de ineficácia regulado no nº 3 do mesmo artigo 80º.
Deste acórdão interpôs o ora reclamante recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82 invocando a inconstitucionalidade dos artigos 26º, nº 1 alínea c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) 80º, nº 1 da LPTA e 170º, nº 2 da Lei nº 21/85. O recurso não foi admitido, por despacho de fls. 85, nos seguintes termos:
'O acórdão de fls. 83 e segs. não aplicou nem conheceu de qualquer norma apontada de inconstitucionalidade pelo requerente, limitando-se a rejeitar os pedidos formulados, 'com fundamento na idoneidade do meio processual'. Assim não é admissível recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art.
70º, nº 1, al. b) da Lei nº 28/82, de 15/11, como pretende o requerente. Nestes termos, por falta de cobertura legal, não se admite o recurso para o T.C.'
É deste despacho que vem a presente reclamação, alegando o reclamante, em síntese, que, ao decidir pela 'inidoneidade do meio processual', o acórdão recorrido aplicou 'lógica, necessária e legalmente' as referidas normas. No seu parecer, o Exmº. Magistrado do Ministério Público defende que os termos da decisão do acórdão recorrido implicaram, naturalmente, a preclusão da apreciação das questões suscitadas pelo reclamante conexionadas com as normas arguidas de inconstitucionalidade, pelo que a reclamação deve ser indeferida. Com dispensa de vistos nos termos do artigo 77º, nº 3 da LTC, cumpre decidir.
2 - Pressuposto da admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional é, entre outros, o de as normas cuja inconstitucionalidade se impugna serem aplicadas na decisão recorrida como fundamento do julgado. O Tribunal Constitucional vem ainda aceitando que a aplicação da norma seja implícita (cfr., entre outros, Acórdão nº 235/93 in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional' 24º vol. p. 779). Indiscutível, no caso, que o acórdão recorrido não fez expressa aplicação das normas em causa – e nem o reclamante ousa afirmá-lo – a questão que, antes do mais, se impõe resolver é a de saber se o mesmo aresto aplicou implicitamente as ditas normas. Ora, no que concerne às normas constantes dos artigos 80º, nº 1 da LPTA e 170º, nº 2 da Lei nº 21/85 e na interpretação que o reclamante diz ter sido 'lógica necessária e legalmente' feita no acórdão recorrido, a resposta é negativa. Na verdade, quedando-se o acórdão recorrido na resolução de uma questão prévia que obstou ao conhecimento do mérito do pedido, evidente é que nenhuma daquelas normas – e na interpretação de que a resolução fundamentada prevista no artigo
80º, nº 1 da LPTA pode ser emitida contra um juíz e que o recurso interposto de decisões expulsivas de juízes não tem, por si só, efeito suspensivo – foi implicitamente aplicada. Respeitando elas a uma eventual decisão de mérito que conduziria ao deferimento ou indeferimento do pedido de suspensão de eficácia, não pode afirmar-se que a sua aplicação esteja inserida no processo lógico que no caso, levou à rejeição do mesmo pedido. E nem a pretensão do reclamante de que a 'resolução fundamentada' fosse considerada inexistente ou nula – o que, segundo ele, por a nulidade poder ser declarada a todo o tempo e por qualquer tribunal, impõe o reconhecimento de que, não o fazendo, o acórdão recorrido decidiu no sentido da 'não nulidade' ou da
'não inexistência' –permite outra conclusão, pois a declaração de nulidade ou inexistência da 'resolução' em causa não deixaria de resultar de um conhecimento de mérito, só possível se ultrapassados óbices formais de ordem processual. Não se encontra também no acórdão recorrido qualquer pronúncia expressa sobre a competência da Secção do Contencioso Administrativo do STA (artigo 26º nº. 1 alínea c) do ETAF). Mas aqui, quer enquanto decide que o pedido de suspensão de eficácia carece de objecto, quer quando julga haver erro na forma de processo, o tribunal a quo está necessariamente a fazer um juízo implícito, positivo, de competência. Na verdade, a decisão tem como antecedente lógico o reconhecimento de que o tribunal está investido de poderes para emitir a aludida pronúncia. Pode assim afirmar-se que o acórdão recorrido aplicou, implicitamente, a norma do artigo 26º nº. 1 alínea c) do ETAF, cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitara na sua petição.
Preenchidos pois, estes requisitos de admissibilidade do recurso, importa averiguar (porque a decisão terá força de caso julgado nos termos do artigo 77º nº. 4 da Lei nº. 28/82), se, por outras razões, o recurso não deve, em todo o caso, ser admitido. Recorde-se que o reclamante dirigiu a sua pretensão de suspensão de eficácia à Secção de Contencioso Administrativo do STA.
Ora, admitindo-se que o Tribunal solicitado se julgou competente para conhecer dessa pretensão, não se vê como considerar tal decisão desfavorável ao requerente em termos de o legitimar para a interposição de recurso de constitucionalidade. Se é certo que desde logo o requerente sustentou a recusa de aplicação do artigo
26º nº. 1 alínea c) do ETAF, recusa implicitamente denegada pelo tribunal 'a quo', sendo o reclamante em tal medida parte vencida na questão de inconstitucionalidade suscitada, a verdade é que a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade exige, para que este seja admitido, que a decisão
'dominante' ou 'principal' seja de igual modo desfavorável. No caso, esta decisão, embora sem corresponder ao peticionado, foi objectivamente favorável ao requerente e, nos termos do artigo 680º nº. 1 do CPC, só se considera parte vencida aquela que é objectivamente afectada pela decisão. Carece, assim o reclamante de legitimidade para recorrer, por não ser parte vencida nos termos do citado preceito do CPC (artigo 72º nº. 1 b) da Lei nº.
28/82).
Decisão Pelo exposto e em conclusão decide-se indeferir a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs., a cobrar nos termos do artigo 54º do DL nº. 387-B/87, de 29 de Dezembro. Lisboa, 16 de Dezembro de 1998 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa