Imprimir acórdão
Proc. nº 713/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. M. demandou, em 1 de Março de 1991, perante o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, a CTM - Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos, EP, em liquidação, pedindo o reconhecimento de um crédito, do valor de 3 057 960$00, correspondente à pensão complementar da pensão de reforma que lhe vinha sendo atribuída pela Segurança Social. Requereu também a inclusão e graduação do mesmo crédito no mapa de créditos a publicar pela comissão liquidatária da CTM, nos termos dos artigos 7º e 8º do Decreto-Lei nº 137/85, de
3 de Maio, isto é, do diploma que determinou a extinção da CTM.
Segundo alegação do Autor, a referida pensão complementar – a que teria direito vitaliciamente nos termos de acordo oportunamente celebrado com a CTM – deixou de ser paga, segundo comunicação feita pela Ré, em consequência da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 137/85.
Na contestação, a CTM invocou: o pagamento já efectuado pela Comissão Liquidatária a todas as pessoas que, no momento da extinção da empresa, se encontravam a receber complementos de reforma; a renúncia do Autor ao direito a receber qualquer outra quantia além da já recebida (remissão abdicativa); a proibição de estabelecer e regular, em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, benefícios complementares em relação àqueles que são assegurados pelas instituições de previdência, proibição que resulta do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 31 de Dezembro.
No despacho saneador proferido em 18 de Março de 1994, o Juiz do 16º Juízo Cível da Comarca de Lisboa julgou procedente a excepção peremptória de remissão de dívida invocada pela CTM e absolveu a Ré do pedido.
Por acórdão de 30 de Abril de 1996, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso interposto pelo Autor, confirmando a decisão recorrida.
Em recurso novamente interposto por M., o Supremo Tribunal de Justiça, em 30 de Abril de 1997, negou a revista, por considerar extinto o direito do Autor em consequência de contrato de remissão ou, quando assim se não entenda, em consequência de contrato de transacção extrajudicial.
2. Inconformado, M. interpôs recurso de constitucionalidade, fundado na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando que a decisão recorrida fez aplicação da norma constante do artigo 4º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, já declarada inconstitucional com força obrigatória geral.
O recurso para o Tribunal Constitucional não foi admitido, com fundamento em que
“O acórdão recorrido não aplicou a norma da alínea c) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, já declarada inconstitucional pelo acórdão de 28/5/95, publicado no D.R. - I Série, de 8.5.95. [Pretende-se por certo referir o acórdão nº 162/95, de 30 de Março de 1995, publicado no D. R., I Série - A, nº 106, de 8.5.1995]
Também não se baseou em qualquer outra norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada nesta acção.”
3. O recorrente apresentou reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, alegando nomeadamente:
“Assiste ao reclamante o direito de ver apreciada a matéria dos autos face à novíssima jurisprudência [do Tribunal Constitucional] por uma razão
(entre outras) muito simples, a qual consiste na inovação trazida pelo acórdão
162/95 a propósito da debatida ’remissão abdicativa’.
Com efeito, como já se disse, entendeu-se com frequência, até à publicação do citado aresto, que a remissão abdicativa era questão substantiva a apreciar pelos Tribunais Judiciais e que nada tinha a ver com a ilegalidade ou inconstitucionalidade da alínea c) do nº 1 do artº 4º do Dec.-Lei nº 137/85.
[...]
Há que extrair, como consequência necessária, que a subsistirem as relações laborais, ou melhor dizendo, a vigência dos contratos de trabalho, questão maioritariamente consagrada no T.C., a remissão dos créditos operada pelo reclamante não tem o suporte legal que o acórdão recorrido lhe confere. De facto, se não houve quebra de vínculo, o trabalhador não remitiu validamente o seu direito pois há subordinação e não liberdade para o fazer.”
A CTM, sublinhando o facto de a presente reclamação ser uma reclamação “tipo”, normalmente utilizada pelos ex-trabalhadores que se encontravam ao serviço da Ré à data da sua extinção, afirmou ser manifesto que
“[...] A norma constante do artº 4º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão do TC nº 162/95, nunca poderia ter como destinatário o ora reclamante que, como vimos, já não tinha qualquer vínculo laboral com a Ré na data da extinção.
Não se vê, assim, como é que se pode ‘acusar’ o ac. do STJ de ter aplicado, ou desaplicado, a citada norma que nenhuma relevância tem para o caso sub judice.”
4. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer onde concluiu que a norma declarada inconstitucional – no segmento ou dimensão em que o foi – não terá sido aplicada no acórdão de que se pretende recorrer, dada a especificidade do caso relativamente àqueles que estiveram na origem do acórdão do Tribunal Constitucional nº 162/95. II
5. O reclamante fundou o seu recurso na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por considerar que o acórdão recorrido aplicou norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional (a norma do artigo 4º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio), ou, dito de outro modo, por considerar que o Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão contrária ao acórdão nº 162/95 do Tribunal Constitucional.
É o seguinte o teor da disposição em causa:
Artigo 4º
A extinção da CTM implica: [...]
c) A extinção, por caducidade imediata, de todos os contratos de trabalho em que seja parte a CTM, com excepção dos outorgados com pessoal de mar embarcado, os quais se extinguirão imediatamente após o respectivo desembarque no porto nacional de destino, sem prejuízo do direito aos salários e outras remunerações em dívida até à data da extinção do contrato de que se trate.
Para apurar se se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade deste recurso de constitucionalidade, importa verificar se a decisão de que se pretende recorrer aplicou a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
6. Compete ao Tribunal Constitucional determinar o sentido das suas declarações de inconstitucionalidade. Ora, este Tribunal foi já por diversas vezes chamado a pronunciar-se sobre a questão da interpretação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 4º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, constante do acórdão nº
162/95.
No acórdão nº 528/96 (publicado no Diário da República, II Série, nº
165, de 18.7.1996), o Tribunal explicitou que “o alcance mínimo da declaração de inconstitucionalidade constante desse acórdão [o acórdão nº 162/95] é o de que existe a obrigação de aos trabalhadores das extintas empresas públicas CTM e CNN ser paga uma indemnização, em consequência da cessação dos seus postos de trabalho, de montante idêntico ao que lhes seria devido caso houvesse lugar a um despedimento colectivo”.
Reportando-se concretamente à questão da remissão abdicativa, o Tribunal considerou, no acórdão nº 1121/96 (inédito), que a norma constante do artigo 4º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, foi aplicada pela decisão recorrida, na medida em que a aceitação da validade da remissão abdicativa “pressupõe [...], no iter lógico que conduz à decisão, a premissa de que os contratos de trabalho se haviam oportunamente extinguido antes da celebração do negócio dispositivo dos direitos dos trabalhadores, sendo certo que tal extinção decorria da entrada em vigor da norma da alínea c) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 137/85, norma essa declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, com efeitos desde a sua entrada em vigor (ex tunc)”.
Esta conclusão foi reafirmada em acórdãos recentes (acórdãos nºs
297/98 e 298/98, ainda inéditos).
7. Simplesmente, há que ter em conta a especificidade do caso dos autos, de resto já sublinhada pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer.
Observe-se a matéria dada como provada no processo: o Autor, ora reclamante, tinha sido durante muitos anos trabalhador ao serviço da CTM; encontrava-se, no momento da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 137/85, na situação de pensionista; não foi portanto a extinção da CTM, operada por aquele diploma legal, que produziu a cessação do vínculo laboral entre o Autor e a Ré.
A cessação da relação laboral tinha portanto ocorrido anteriormente
à entrada em vigor da norma cuja aplicabilidade se discute no presente processo. No caso concreto, a entrada em vigor do questionado preceito legal nunca poderia provocar a extinção da relação laboral propriamente dita, que, tal como decorre da matéria apurada nos autos, se encontrava extinta.
Assim sendo, não existe contradição entre a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de que o reclamante pretende recorrer e o acórdão nº 162/95 do Tribunal Constitucional.
Na verdade, tal decisão não aplicou a alínea c) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 137/85, na dimensão em que tal norma foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral – isto é, enquanto interpretada em termos de admitir uma nova causa de extinção do contrato individual de trabalho, sem reconhecer aos trabalhadores que perderam o seu posto de trabalho em consequência da extinção da empresa o direito a receber uma indemnização de montante correspondente ao que lhes seria devido se tivesse havido despedimento colectivo.
Tanto basta para concluir que não se encontra preenchido o pressuposto processual típico deste recurso de constitucionalidade.
III
8. Em face do exposto, é desatendida a presente reclamação, confirmando-se o despacho reclamado.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em cinco
unidades de conta.
Lisboa, 23 de Setembro de 1998
Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa