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ProcACÓRDÃO Nº 550/98 Proc. nº. 493/97 TC - 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A... foi condenado pelo Tribunal Judicial de Comarca do Fundão, tribunal singular, como autor material de um crime de violação na forma tentada em concurso com um crime de ofensas corporais simples, p. e p. pelos artigos 201º, nº. 1; 22º, nºs. 1 e 2, c); 23º, nº. 1 e 2; 74º e,142º, nº. 1, respectivamente, todos do Código Penal de 1982.
Pela prática de tais crimes foi o arguido condenado na pena de três anos de prisão (crime de violação) e quatro meses de prisão (crime de ofensas corporais simples), o que em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido se traduziu na pena unitária de três anos e dois meses de prisão.
Inconformado com a decisão do tribunal singular da Comarca do Fundão, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que manteve a sentença condenatória.
Deste acórdão interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei nº. 28/82, de 15.11, com as alterações introduzidas pela Lei nº. 85/89, de 7.09, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
'1º Aquando da dedução de acusação, o MP predeterminou a pena concreta até 5 anos de prisão,
2º Fixando a competência do tribunal, à luz do artº. 16º, nº. 3 do CPP, no tribunal singular.
3º O arguido tinha direito a ser julgado por um tribunal colectivo à luz do artº
14º, nº. 2, b) do CPP,
4º Vê retirado esse direito por uma decisão do MP.
5º A competência do tribunal colectivo é fixada atendendo à gravidade do crime,
6º Por o tribunal colectivo ser um tribunal mais garantístico que um juiz singular.
7º Essa opção garantística do legislador é posta em causa com o artº 16º, nº 3 quando permite ao MP alterar, para tribunal singular, a competência do tribunal.
8º O artº 16º, nº 3, nessa parte, infringe as garantias de defesa previstas no artº
32º, nº 1 da CRP,
9º Estando assim ferido de inconstitucionalidade material.
10º O artº 16º, nº 3 viola os princípios do juiz natural, da jurisdição, da legalidade e da igualdade,
11º Postulados naquelas garantias constitucionais.
12º A renúncia ao recurso da matéria de facto pelo silêncio do arguido face à documentação das declarações prestadas oralmente na audiência, de acordo com os artºs 428º, nº 2 e 364º, nº 1,
13º Traduz-se numa importante redução garantística do direito ao recurso.
14º Tratando-se duma renúncia por omissão, afecta o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
15º Essa limitação infringe o artº 32º, nº 1 da CRP,
16º Pois o duplo grau de jurisdição está implicitamente consagrado naquela regra constitucional. Pelo que,
17º Os artºs. 364º, nº 1 e 428º, nº 2 estão feridos de inconstitucionalidade material.
18º Deve o acórdão recorrido ser revogado, com as legais consequências'.
O Exmº. Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal concluiu a sua alegação defendendo a improcedência do recurso por entender que '... a norma constante do artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal não viola qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental.
2º - As normas constantes dos artigos 364º, nº 1, e 428º, nº 2, do Código de Processo Penal – ao facultarem ao arguido, julgado em tribunal singular, a possibilidade de requerer o registo da prova e a reapreciação da decisão de facto pela Relação – respeitam inteiramente as garantias de defesa do arguido em processo final'. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. Como atrás se deixou indicado, o recorrente suscita a questão da inconstitucionalidade dos artigos 16º, nº. 3, 364º, nº. 1 e 428º, nº. 2 do Código de Processo Penal por alegada violação dos princípios do juiz natural, da jurisdição, da legalidade, da igualdade e o princípio do duplo grau de jurisdição, respectivamente. O artigo 16º, nº. 3 do Código de Processo Penal trata da competência do tribunal singular, dispondo:
'Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos no artigo 14º, nº. 2, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou em requerimento, quando for superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos.' Por seu lado dispõe o artigo 364º, nº. 1:
'As declarações prestadas oralmente em audiência que decorrer perante tribunal singular são documentadas na acta sempre que, até ao início das declarações do arguido previstas no artigo 343º, o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente declararem que não prescindem da documentação. A declaração fica a constar da acta e aproveita aos restantes sujeitos processuais.' Por último, o artigo 428º, nº. 2 estabelece:
'Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs. 2 e 3, a falta da declaração referida no artigo 364º, nºs. 1 e 2, e no artigo 389º, nº. 2, vale como renúncia ao recurso em matéria de facto'. Sobre a primeira das questões cuja inconstitucionalidade vem suscitada pelo recorrente, relativa ao artigo 16º, nº. 3 do Código de Processo Penal, é jurisprudência firme deste Tribunal que tal norma não é inconstitucional, posição que no presente acórdão, se reitera, enunciando-se, a título meramente exemplificativo, alguns arestos (ac. nº.393/89, in DR, II Série, de 14.09.89;
435/89, in DR, II Série, 21.09.89; 41/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 15º, pág. 151; ac. nº. 9/91, in DR, II Série, 18.06.91;
212/91, in DR, II Série, 13.09.91; ac. nº. 265/95, in DR, II Série, 19.07.95, além de muitos outros não publicados). No acórdão nº. 9/91 deste Tribunal decidiu-se que '(...) o princípio da reserva da função jurisdicional não sai ferido do regime normativo em causa. Com efeito, resulta evidente que, no âmbito de aplicação dos normativos em questão, quem julga é sempre o juiz e não o Ministério Público, isto é, é ao juiz que compete decidir se há ou não condenação e, em função de tal juízo, determinar em conformidade e, caso haja lugar a condenação, qual a medida concreta da pena aplicável, nesta operação movendo-se sempre dentro dos limites da moldura penal abstractamente fixada na lei. Assim, a pena aplicável pelo juiz é aquela que se encontra definida na lei, donde resulta, como se escreveu no Acórdão nº. 206/90, que tal pena está definida na lei 'não apenas na lei substantiva que define o tipo legal de crime, mas também na norma do artigo 16º do Código de Processo Penal, que, conjugado com o nº. 4 do mesmo preceito, fixa em três anos de prisão o limite máximo da pena aplicável – em termos de precisão e nitidez suficientes para cumprir, a mais que uma função de garantia do arguido, as exigências feitas ao legislador pela separação que deve existir entre poderes (a competência) dele e os do julgador; e, bem assim, para poder servir de fundamento normativo da decisão a proferir pelo juiz e para possibilitar o controlo dessa mesma decisão, impedindo o arbítrio'. Por seu lado, a propósito do princípio da legalidade da acção penal, escreveu-se no Acórdão deste Tribunal nº. 41/90, 'com o mencionado artigo 16º, nº. 3, o que se pretende é aliviar os tribunais colectivos, de funcionamento mais ‘pesado’, daqueles casos a que – segundo um juízo de prognose, formulado com base nos critérios legais de aplicação das penas – virão a ser aplicadas penas que se compreendem na competência punitiva do juiz singular. E com isso, sem que se desprotejam os cidadãos, quer-se tornar a justiça penal mais eficaz. Assim sendo, ainda que no artigo 16º, nº. 3, do Código de Processo Penal se veja uma manifestação do princípio da oportunidade, como ela sempre seria uma sua expressão muito moderada, nunca poderia deixar de ser consentida por aquele preceito constitucional'. Constitui também jurisprudência pacífica deste Tribunal o entendimento segundo o qual o artigo 16º, nº. 3 do Código de Processo Penal não viola as garantias do processo penal, mormente as constantes do artigo 32º, nºs. 1 e 7 da Constituição. No Acórdão nº. 393/89 escreveu-se: 'O preceito sub iudicio, ao determinar o tribunal competente, não o faz de forma arbitrária, discricionária ou discriminatória. Lançando mão de critérios objectivos, como são os critérios legais para a determinação concreta da pena, limita-se ele a permitir que o tribunal competente para o julgamento de certos crimes seja encontrado pelo recurso ao chamado método de determinação concreta da competência.
(...) Dir-se-á, por último, que o facto de o arguido ser julgado pelo tribunal singular (em vez de o ser pelo tribunal colectivo) não importa uma diminuição das garantias de defesa tal que deva ser havida como constitucionalmente ilegítima.
(...) Pois bem: é óbvio que o julgamento feito pelo tribunal singular oferece ao arguido menores garantias do que aquele que é feito pelo tribunal colectivo, uma vez que – e antes de mais – aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e, assim, a possibilidade de uma decisão menos justa. Só que – independentemente da questão de saber se sim ou não o legislador poderia atribuir ao juiz singular competência para aplicar uma pena de prisão superior a três anos, no caso, naturalmente, de se convencer que essa seria a decisão mais certa (cf. sobre isto, Jorge Figueiredo Dias, Estudo por último citado) – independentemente disso, a verdade é que o artigo 16º, nº. 4, do Código de Processo Penal, atrás transcrito, limita a convicção do juiz, cuja intervenção foi requerida ao abrigo do nº. 3 do mesmo preceito legal, pelo máximo da pena que está na sua competência normal aplicar (ou seja: limita-a a três anos de prisão). Assim, não podendo o juiz aplicar uma pena superior àquela cuja aplicação lhe é, em geral, consentida, não pode dizer-se que haja encurtamento – e, muito menos, um encurtamento inadmissível – das garantias de defesa. Ora, o que o princípio da defesa não consentiria era, justamente, um encurtamento intolerável de tais garantias'. A afirmação de que o artigo 16º, nº. 3 confere ao Ministério Público a disponibilidade de 'escolher' o tribunal de julgamento – o tribunal singular ou o colectivo – o que poderia propiciar uma manipulação ad hoc da competência de julgar, é facilmente rebatida com a chamada de atenção para o facto de o Ministério Público não ser 'parte' no processo penal, interessada na condenação do arguido 'a qualquer preço', mas como se disse no já citado Acórdão n. 9/91
'(...) antes resulta da sua posição no conjunto do processo criminal que o seu interesse é a descoberta da verdade e a realização do direito, pautando-se, por isso, a sua intervenção por uma incondicional 'intenção de verdade e de justiça
– tão incondicional como a do juiz' (cf. Figueiredo Dias, op. cit., p. 31). Daí que 'o Ministério Público, quando possa escolher o tribunal de julgamento, há-de fazê-lo orientando-se por critérios de estrita legalidade e objectividade' (cf. Acórdão nº. 393/89) e nos casos em que tal escolha eventualmente possa ser determinada por critérios diferentes dos da lei, então sempre restaria ao arguido recorrer da sentença para o tribunal da relação (...), recurso esse que não pode deixar de ser entendido como um elemento essencial do direito de defesa do arguido (cf. Acórdão nº. 44/90, in DR, II Série de 4.07.90). A que acresce que, para ajuizar da constitucionalidade de uma dada norma legal há-de partir-se da sua correcta aplicação e não já de uma aplicação perversa ou originada em fins anómalos e 'inconfessáveis' (cf. Acórdão nº. 206/90)'. Quanto à alegada violação do princípio da igualdade, remete-se para o seguinte trecho do Acórdão nº. 206/90:
'A regra que resulta da lei é clara e não consente o arbítrio ou um tratamento discriminatório ou dissemelhante: em todos os casos em que se afigurar objectivamente ajustada ao caso concreto, de acordo com critérios objectivos pré-determinados na lei, uma pena de prisão ou uma medida de segurança de internamento de duração não superior a três anos, o Ministério Público deve requerer a intervenção do tribunal singular', pelo que no estrito quadro de vinculação objectiva assinalado está assegurado um tratamento efectivamente igual para situações objectivamente iguais, em nada resultando ofendido o princípio da igualdade. Com a alteração à redacção do artigo 16º, nº. 3 do Código de Processo Penal operada pelo Decreto-Lei nº. 317/95, de 28 de Setembro, em resultado da revisão do Código Penal levada a efeito pelo Decreto-Lei nº. 48/95, de 15 de Março, foi elevado o limite máximo da pena de prisão de 3 para 5 anos, mas tal alteração do limite máximo em nada fez modificar a jurisprudência firme deste Tribunal (cfr. Acórdão nº. 1252/96, de 18.12 – inédito).
3. O recorrente suscitou também a questão da inconstitucionalidade do artigo
364º, nº. 1 em conjugação com o artigo 428º, nº. 2, ambos do Código de Processo Penal, por alegada violação do princípio do duplo grau de jurisdição. Em inúmeros acórdãos tem o Tribunal Constitucional fixado jurisprudência uniforme no sentido de ser uma das garantias de defesa – de que cuida o artigo
32º, nº. 1 da Constituição – o direito ao recurso das sentenças penais condenatórias, o que significa que, no domínio processual penal, há que reconhecer, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição (cfr., entre outros, ac. nº. 234/93, in DR, II Série, 2.06.93; ac. nº. 322/93, in DR, II Série, 29.10.93; ac. nº. 141/94, in DR, II Série, 7.01.95 e ac. nº. 180/97, in DR, II Série, 19.04.97). Porém, como decidido nos acórdãos nºs. 61/88, 124/90 e 322/93 '(...) tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência da imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito: basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso'. A referida jurisprudência respeita, no entanto, a normativos diferentes dos questionados pelo recorrente, a saber: o artigo 363º do Código de Processo Penal e ao conjunto normativo constituído pelos artigos 410º, nºs. 2 e 3 e 433º, do mesmo diploma. Ora, o artigo 428º do Código de Processo Penal estatui sobre os poderes de cognição dos tribunais da relação em matéria processual penal, estando previstos poderes cognitivos em matéria de direito e de facto, o que permite afirmar que está assegurado o duplo grau de jurisdição, no caso de a decisão ter sido proferida em 1ª instância por um tribunal singular. O princípio do duplo grau de jurisdição, abrangendo o conhecimento da matéria de facto e da matéria de direito, está apenas condicionado pela declaração a que se reporta o artigo 364º do Código de Processo Penal, ou seja, a declaração do arguido (ou de outros intervenientes processuais) de que pretende o registo da prova, nomeadamente das declarações orais prestadas em audiência perante o tribunal singular, declaração que tem de ser feita até ao início das declarações do arguido. Dito isto, não poderá certamente afirmar-se a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 364º, nº. 1 e 428º, nº. 2 do Código de Processo Penal por violação do princípio do duplo grau de jurisdição pois este está assegurado por aqueles mesmos preceitos. Sucede é que o conhecimento da matéria de facto, pelo tribunal de recurso, fica na disponibilidade do arguido e de acordo com a sua conduta processual. Não é, assim, a lei que directamente obsta ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, mas o próprio arguido que a ele renuncia. E nada parece impedir que o faça, em conformidade com a estratégia de defesa por ele adoptada, não constituindo medida arbitrária ou desproporcionada o sentido que a lei atribui à falta da declaração prevista no artigo 364º, nº 1 do CPP, fazendo-a equivaler à renúncia ao recurso em matéria de facto, como forma presumida de manifestação de vontade do próprio arguido. Não violam, em suma, aquelas normas o artigo 32º, nº 1 da CRP.
4. Decisão: Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida Lisboa, 29 de Setembro de 1998 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa