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Proc. nº 167/98
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 3ª secção da Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Não se conformando com a decisão que indeferiu o pedido de revogação da prisão preventiva que lhe fora aplicada no processo nº 1690/93, a correr os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, o arguido - ora recorrente -, A..., recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando - entre outras razões - a pretensa inconstitucionalidade do artigo 80º, nº 1, do Código Penal. Afirmou o ora recorrente, em síntese, que: 'encontra-se preso há quase um ano, dado ter cumprido seis meses de prisão preventiva à ordem de um processo crime então pendente no Tribunal do Seixal. Devendo, em nossa opinião, tal tempo de prisão ser acrescentado ao tempo de prisão preventiva já sofrido à ordem destes autos (desde o transacto dia 16 de Maio de 1997 como os autos dão conta) dada a inconstitucionalidade material evidente do art. 80º, nº 1, do Código Penal, quando interpretado no sentido de que em situações como a do caso do arguido
(absolvição após o cumprimento de meio ano de reclusão) não se poderá efectuar tal desconto; pelo que tal entendimento se mostra violador da Lei Fundamental, mormente do princípio constitucional nela consagrado no art. 32º, nº 2, da presunção da inocência.
2 - O Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão de 10 de Fevereiro de 1998, julgou improcedente o recurso, tendo dito, no que à questão de constitucionalidade diz respeito, o seguinte: 'a invocada inconstitucionalidade do art. 80º, nº 1, do Código Penal, mostra-se temporalmente deslocada pois que o dito artigo 80º, nº 1, se reporta a desconto do tempo de prisão preventiva sofrida na pena de prisão que vier a ser aplicada, e é certo que o recorrente ainda nem sequer foi condenado, não tendo, assim, havido aplicação ou não, e mesmo possibilidade de aplicação ou não, da citada disposição legal'.
3 - É desta decisão que vem interposto o presente recurso. Pretende o recorrente, segundo o respectivo requerimento de interposição, ver apreciada a constitucionalidade do disposto no artigo 80º, nº 1, do Código Penal, por violação do princípio da presunção da inocência, consagrado no disposto no art.
32º, nº 2, da Constituição, na medida em que não permite que o tempo de prisão preventiva sofrida no âmbito de um processo judicial seja descontado noutro período subsequente de prisão preventiva, aplicada no âmbito de outro processo.
4 - Já neste Tribunal foi o arguido notificado para apresentar alegações, o que fez, tendo concluído da seguinte forma: 'O artigo 80º, nº 1, do Código Penal, encontra-se ferido de inconstitucionalidade material, por violação do art. 32º, nº 2, da Lei Fundamental. Mesmo que assim não se entenda, sempre tal preceito se encontra ferido de inconstitucionalidade material, por violação da apontada norma (a do art. 32º, nº 2, da Constituição) quando interpretado no sentido de não ser possível o desconto da pena de prisão preventiva sofrida por arguido no âmbito do processo crime que culminou com a sua absolvição, tendo depois vindo a ser detido à ordem de outro processo crime no qual viria a ser condenado'.
5 - Notificado para responder, querendo, às alegações do recorrente, o Ministério Público concluiu da seguinte forma: 'A decisão recorrida, ao limitar-se a notar que a aplicação da norma constante do nº 1 do art. 80º do Código Penal pressupõe necessariamente que o arguido haja sido condenado à ordem do processo em que pretende obter o desconto de prisão preventiva anteriormente sofrida, não fez deste preceito a aplicação, pretensamente inconstitucional, sustentada pelo arguido. Não é obviamente admissível que o recorrente suscite, no âmbito do recurso de constitucionalidade interposto de certa decisão, questões novas, emergentes de factos supervenientes, e que tal decisão não apreciou nem podia ter apreciado'.
6 - Notificado para responder, querendo, à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o arguido nada disse.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II - Fundamentação
7 - Objecto do recurso interposto ao abrigo da al. b), do nº 1, do art. 70º, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), é a questão da inconstitucionalidade de norma - ou dimensão normativa - de que a decisão recorrida faça efectiva aplicação, quando e na medida em que tal inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo (cfr., entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs
367/94 e 364/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pp. 147 e ss e Diário da República, II Série, de 9 de Maio de 1996, respectivamente).
8 - Assim, a possibilidade de conhecer do objecto do presente recurso depende, para além do mais, da questão de saber se a decisão recorrida - o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Fevereiro de 1998, que indeferiu o requerimento de revogação da prisão preventiva - fez ou não efectiva aplicação do art. 80º, nº 1, do Código Penal, com o sentido arguido de inconstitucional pelo recorrente durante o processo.
9 - E, colocada a questão nestes termos, é manifesto que não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, por ser evidente que o acórdão recorrido não aplicou do art. 80º, nº 1, do Código Penal, com o sentido cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitou durante o processo. Vejamos porquê. Antes da prolação da decisão recorrida o recorrente apenas suscitou a questão da constitucionalidade do art. 80º, nº 1, do Código Penal, quando interpretado no sentido de não permitir o desconto do tempo de prisão preventiva já cumprido à ordem de outro processo - em que o arguido foi absolvido -, na pena de prisão que viesse a ser aplicada no âmbito dos presentes autos. Ora, é por demais evidente que a decisão recorrida não aplicou - como refere o Procurador-Geral Adjunto no seu parecer nem poderia, pela natureza das coisas, fazê-lo - a dimensão normativa do artigo 80º, nº 1, do Código penal, arguida de inconstitucional. Como bem sublinha aquele Magistrado, a questão da possibilidade de descontar - ou não - o tempo de prisão preventiva já cumprido à ordem de outro processo só se coloca 'se e quando vier a ser proferida decisão condenatória nestes autos contra o arguido cumprindo-lhe então requerer que, atenta a eventual e demonstrada conexão existente entre o crime a que os autos se reportam e os factos sobre que versaria o processo em que diz ter sido absolvido, tal norma seja interpretada em termos de permitir o desconto de toda a prisão preventiva sofrida na pena aplicável'. Aliás, isso mesmo tinha já sido evidenciado pelo próprio acórdão recorrido quando aí se referiu que 'a inconstitucionalidade do artigo 80º, nº 1, do Código Penal, mostra-se temporalmente deslocada pois que o dito artigo 80º, nº 1, reporta-se a desconto do tempo da prisão preventiva sofrida na pena de prisão que vier a ser aplicada e é certo que o recorrente ainda nem sequer foi condenado, não tendo assim, havido aplicação ou não, e mesmo possibilidade de aplicação ou não, da citada disposição legal'. Em suma: do exposto flui com clareza que a decisão recorrida não aplicou a norma constante do art. 80º, nº 1, do Código Penal, com o sentido cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, não se verificando, desta forma, um dos pressupostos de que depende a possibilidade de conhecimento do objecto do presente recurso.
10 - O Ministério Público nota ainda - e bem - que o recorrente no requerimento de interpretação do recurso de constitucionalidade levanta uma questão diferente da que até então tinha suscitado. Pretende, aí, sustentar a inconstitucionalidade do artigo 80º, nº 1, do Código Penal, quando interpretado no sentido de não permitir que o período de prisão preventiva que sofreu à ordem do processo que contra ele correu na comarca do Seixal seja descontado já não na pena em que, a final, viesse a ser condenado à ordem dos presentes autos, mas em subsequentes períodos de prisão preventiva a cumprir à ordem de outros processos. Independentemente de qualquer juízo sobre o mérito da questão de constitucionalidade assim colocada, a verdade é que dela nunca se poderia conhecer no âmbito do presente recurso. E por duas razões. Em primeiro lugar porque ela foi abandonada pelo recorrente nas respectivas alegações, em que voltou à questão inicial; e em segundo lugar porque a questão, colocada naqueles termos, não havia sido suscitada pelo recorrente durante o processo.
11 - Finalmente, nas alegações de recurso o recorrente traz ao conhecimento deste Tribunal um facto superveniente cuja relevância importa analisar. Refere o recorrente que foi entretanto condenado no âmbito do presente processo, por decisão de 24 de Abril de 1998, não tendo sido feito o desconto da prisão preventiva sofrida à ordem do processo em que terá sido absolvido, verificando-se então a suscitada aplicação inconstitucional do artigo 80º, nº1, do Código Penal. Tal facto, porém, em nada altera a conclusão a que já antes se chegou no sentido da impossibilidade de conhecer do objecto do presente recurso. É que o recurso que agora se julga tem por objecto a alegada inconstitucionalidade da dimensão normativa do artigo 80º, nº 1, do Código Penal, alegadamente utilizada pela decisão recorrida, e não o sentido normativo com que esse preceito foi aplicado por qualquer outra decisão superveniente. Tal conclusão não impede, porém, que o recorrente venha mais tarde - se verificados todos os pressupostos processuais de que tal depende, designadamente a suscitação tempestiva e adequada da questão perante o Tribunal que proferiu a decisão condenatória - a recorrer para este Tribunal da decisão que, de forma definitiva, aplique o artigo 80º, nº 1, do Código Penal, com o sentido cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitou durante o processo.
III - Decisão Assim, e pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta. Lisboa, 29 de Julho de 1998 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento Luis Nunes de Almeida