Imprimir acórdão
Proc. nº 372/97
2ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. J. R. participou criminalmente, na Delegação da Procuradoria da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Almada contra a Presidente da Câmara Municipal de Almada e outros, pela prática de um «crime de desobediência previsto e punido pelo artº 388º do Cód. Penal».
Por despacho de 29 de Abril de 1996, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, não exercendo a acção penal.
O denunciante requereu, então, a abertura da instrução relativamente
à pretendida prática de um crime de desobediência, requerendo ainda a sua constituição como assistente nos autos.
Distribuídos os autos no Tribunal Judicial da Comarca de Almada, foi proferido despacho pelo Juiz a quo, em 28 de Outubro de 1996, indeferindo o pedido de constituição como assistente e a realização da instrução, por inadmissibilidade legal. Entendeu-se nesse despacho que «o denunciante não é manifestamente o titular do interesse que consubstancia o objecto jurídico imediato do crime. O titular daquele é o Estado». E que, «ainda que um particular seja prejudicado com a prática de um crime de desobediência, não pode ser considerado ofendido para efeitos de constituição de assistente, porque não
é o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato daquele delito», definido no artigo 388º do Código Penal, inserido em secção que se refere aos crimes contra a autoridade pública.
2. Inconformado, o denunciante interpôs recurso de agravo desse despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa. Na sua motivação de recurso alegou que «o ora recorrente faz uma leitura diferente da lei, designadamente do artº 68º do CP», entendendo que o crime de desobediência, «no caso dos autos, poderá estar concorrente com o crime de corrupção (artº 68º/e/ do CPP) e está concorrente com o crime de dano», e que só a abertura da instrução poderia
«permitir dizer quantos e que tipo de crimes cometeram os participados». Entendeu, assim, que, perante aquela «concorrência» de crimes, o despacho recorrido efectuara uma «restrição técnica» do conceito de ofendido, o que consubstanciaria uma «interpretação limitativa dada ao artº 68º do CPP» violadora do artigo 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Na sua resposta, o Ministério Público levantou questão prévia tendente à rejeição do recurso, que formulou nos termos seguintes:
Os assistentes em processo penal têm a posição de auxiliares do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei (art. 69º, nº 1 do C.P.P.).
Os Assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz até 5 dias antes do início do debate instrutório ou da audiência, conforme os casos
(art. 68º, nº 2 do C.P.P.)
E o art. 287º, nº 1 do C.P.P. [...] só ao arguido e ao Assistente reconhece a possibilidade de requererem a abertura de instrução. [...]
[...] o participante José Diogo Raimundo apenas se apresenta a intervir nos autos como Assistente após a notificação do despacho do Ministério Público que os mandou arquivar, tem de os aceitar no estado em que se encontram, isto é no estado de arquivamento. [...]
E concluiu ainda a sua motivação pela forma seguinte:
[...] invoca agora o recorrente, e apenas em sede de motivações de recurso que em causa estará um crime de dano e até de corrupção. Questões novas que nunca tinha trazido aos autos, quer na participação inicial quer no requerimento de abertura de instrução.
No caso sub judice o participante no requerimento de abertura de instrução limita-se a indicar factos e a requerer diligências no sentido de averiguar o participado crime de desobediência. Delimitou, por essa forma, o objecto da instrução, o objecto da investigação.
3. Por acórdão de 11 de Julho de 1997, a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido. Entendeu-se, nesse aresto, que tanto no requerimento de instrução, como já anteriormente, na participação, o denunciante apenas indicou factos e requereu a realização de diligências de prova «no sentido de ser averiguado o crime de desobediência p. e p. no artº
308º e não qualquer crime de dano ou de corrupção», não tendo igualmente resultado das diligências realizadas durante o inquérito indícios da prática de qualquer outro crime.
Concluiu assim que aquela questão – da presumida «concorrência» dos crimes referidos – era «questão nova», que nunca fora trazida aos autos, pelo que não podia tal argumento servir de fundamento para a requerida constituição de assistente. E, após transcrever o artigo 68º, nº 1, alínea a), do CPP, pode ler-se seguidamente:
Ora, estando apenas em questão no processo o crime de desobediência p. e p. no artº 388º do Código Penal de 1982, integrado no Título V «Dos Crimes contra o Estado», não pode sofrer contestação que o denunciante não é titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Mas sim, o próprio Estado com vista a garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública, não podia aquele constituir-se assistente no processo, face ao disposto na disposição processual em último lugar citada, por falta de legitimidade [...]
4. É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação da questão de inconstitucionalidade da «interpretação limitativa dada ao artº 68º do CPP», e consistente na «restrição técnica do conceito de ofendido», por violação do artigo 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal, onde o recorrente concluiu as respectivas alegações pela forma seguinte:
[...] o Tribunal apoiou-se num conceito restritivo, redutor e de conveniência política do artº 68º/1/a/ do CPP para não exercer a sua função jurisdicionalizada, o que briga e afronta o comando do artº 205º/2/ da Lei Fundamental.
[...] O balanceamento interpretativo de tal norma inconstitucional, neste caso concreto, revela-se arbitrário, desproporcionado e desadequado às circunstâncias concretas das infracções criminais em causa, deixando o queixoso completamente desamparado legal e constitucionalmente.
Na sua resposta, o Ministério Público levantou questão prévia relativa ao não conhecimento do recurso, «por a decisão recorrida não ter aplicado a norma que dele é objecto com o sentido, pretensamente inconstitucional, que lhe atribui o recorrente». E, quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada, concluiu pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:
Na verdade, o assentar-se em que só goza de legitimidade para se constituir assistente, coadjuvando nessa qualidade a actuação processual do Ministério Público, enquanto titular de acção penal, o sujeito ou sujeitos cujos interesses são especialmente protegidos pela norma incriminadora é simples afloramento, ditado por razões lógico-jurídicas, das regras que determinam a legitimação para agir – não podendo conferir-se essa qualidade a quem carece de um interesse juridicamente protegido em tal actuação processual.
Ora, tratando-se de crime público em que o bem jurídico tutelado é exclusivamente de natureza pública, não se vê em que se traduz a pretendida – e inconstitucional – limitação ou restrição ao exercício dos direitos e interesses ilegítimos de um particular, sendo manifesto que os interesses privados que porventura pudessem ter sido indirectamente atingidos pelos factos que consubstanciam a comissão do crime de desobediência, traduzido no desrespeito pela decisão que ditou certa providência cautelar, sempre poderiam ser perfeitamente realizados através dos mecanismos previstos no Código de Processo Civil.
Por fim, suscitou ainda a questão da litigância de má-fé do recorrente, nos termos do artigo 456º, nº 2, do CPC, e considerou que os termos utilizados e as imputações feitas, no processo, aos magistrados que nele intervieram, «traduzem, independentemente da sua possível conotação criminal, pelo menos violação grave do dever de recíproca correcção, decorrente nomeadamente do disposto no artigo 266º-B, nº 2 do Código de Processo Civil».
5. Na sua resposta, o recorrente reiterou as anteriores afirmações, sustentando que se verifica «crime de denegação de justiça por inércia política do MP, o qual deve ser responsabilizado e incriminado», e que o «comportamento do MP é susceptível de ser enquadrado neste caso nos termos do artº 416º do CP, como não litigante por má fé política, isto é, por denegação de justiça perante si e perante os políticos». E conclui no sentido de se ter verificado a aplicação da norma constante do artigo 68º, nº 1, alínea a) do CPP, «com interpretação restritivo-política inconstitucional, colidindo frontalmente com o princípio de reprimir a violação da legalidade democrática afirmado pelo artº
205º/2/ da Lei Fundamental».
Corridos os vistos legais, quanto à questão prévia e à questão de fundo, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
6. Desde logo, é no mínimo duvidoso que a norma constante do artigo
68º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, tenha sido aplicada com o sentido questionado pelo recorrente, ou seja, restringindo o conceito de ofendido, para efeitos de constituição como assistente em quaisquer processos respeitantes a crimes públicos, pois que a decisão recorrida apenas se reporta ao concreto crime de desobediência, único que as instâncias consideraram como denunciado. E, como é sabido, não cabe a este Tribunal censurar esse juízo, não sendo o recurso de constitucionalidade meio idóneo ou próprio para o sindicar.
Mas, ainda que se entenda que o que o recorrente questiona é a constitucionalidade da norma, na medida em que não permite a constituição de assistente quando está em causa o crime público de desobediência - única norma que foi efectivamente aplicada nos autos -, a mesma não se mostra inconstitucional.
A norma em causa atribui a qualidade de ofendidos aos «titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação», reconhecendo a estes a legitimidade para agir, que é pressuposto processual geral. Não se reconhecem aqui específicos interesses particulares directamente decorrentes da actuação delituosa.
Ora, o crime de desobediência visa proteger interesses específicos do Estado, mais concretamente, como refere o Ministério Público nas suas alegações, «no acatamento pelos particulares de certas decisões das autoridades públicas que os vinculam». Assim, é o Estado o ofendido, porque legítimo titular do interesse ofendido pela prática do crime de desobediência.
E tal interpretação em nada briga com o disposto no artigo 202º, nº
2, da Constituição – correspondente, na versão, anterior à Lei Constitucional nº
1/97, de 20 de Setembro, ao artigo 205º, nº 2 -, que determina que «na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados», norma em que se não descortina qualquer imposição do reconhecimento de legitimidade a particulares para a constituição como assistentes em processo penal, em crimes como o de desobediência, em que o único titular do interesse protegido é o próprio Estado.
7. Quanto à imputação de má-fé, ainda que se considere que o recorrente se excedeu na argumentação utilizada, não resultam dos autos elementos que permitam concluir, sem quaisquer dúvidas, que ele tenha procurado intencionalmente «confundir o objecto e âmbito do presente recurso», por forma a justificar uma eventual condenação por litigância de má fé.
8. Já quanto à violação do dever de recíproca correcção, decorrente do artigo 266º-B, nº 2, do Código de Processo Civil, e uma vez que o teor das intervenções processuais do mandatário do recorrente, pela forma como se refere ao modo como os magistrados do Ministério Público exerceram as suas funções, pode conter factos passíveis de infracção disciplinar, cabe dar conhecimento à Ordem dos Advogados, para os efeitos tidos por convenientes, nos termos do disposto no artigo 95º, nº 1, do respectivo Estatuto, extraindo-se certidão das seguintes peças processuais: o requerimento de interposição de recurso, de fls. 186 a 188; o alegações de recurso, de fls. 202 a 211; o resposta do recorrente, de fls. 232 a 238.
III – DECISÃO
9. Nestes termos, decide-se: a. Negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no tocante ao nela decidido quanto à questão de constitucionalidade suscitada; b. Indeferir a requerida condenação do recorrente como litigante de má-fé; c. Dar conhecimento à Ordem dos Advogados do teor das intervenções processuais do mandatário do recorrente, com remessa das atinentes peças processuais.
Lisboa, 17 de Novembro de 1998 Luis Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa