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Proc. n.º 441/94
1ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. M. e mulher instauraram acção de despejo contra A. P. e mulher pedindo a desocupação do prédio que estes habitam na cidade do Porto, por caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre o réu marido e a usufrutuária do prédio, resultante do falecimento desta em 6 de Agosto de 1992, com a consequente consolidação da propriedade plena na autora, até então proprietária da raiz. Na contestação, os réus sustentaram, além do mais, que o artigo 5º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente RAU), é inconstitucional, por ao revogar o artigo 1051º, n.º 2 do Código Civil, violar a directriz do artigo 2º, alínea c), da respectiva lei de autorização legislativa (Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto), no sentido da
'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'. Por despacho saneador, o juiz do Tribunal Cível da Comarca do Porto, negando embora que a referida inconstitucionalidade se verificasse, julgou a acção improcedente.
2. Inconformados, apelaram os autores para o Tribunal da Relação do Porto, tendo os réus renovado nas suas contra-alegações a questão da constitucionalidade que haviam suscitado. Por Acórdão de 4 de Julho de 1994, o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e condenando os réus a despejar o locado. Lê-se nesse aresto, quanto à questão de constitucionalidade suscitada:
'Da conjugação das normas do DL 321-B/90 com o preceito constitucional que visa a satisfação do direito social à habitação, resulta que o legislador ordinário entendeu como socialmente útil, em vez duma excessiva protecção do inquilino, consagrar um regime que não cerceasse de forma excessiva os direitos dos proprietários. Desse facto é exemplo a consagração dos contratos de duração limitada (art. 98 a 101 o RAU) em que se veio permitir a denúncia do contrato por vontade do proprietário como claro desvio ao princípio estabelecido no art.
1054 do C.Civil em que a denúncia apenas pode ter lugar no tempo e pela forma designados na lei. Há aqui a manifestação de reduzir o carácter vinculativo do contrato por forma a que, liberalizando-o, os proprietários se sintam mais confiantes em que o arrendamento não represente uma indisponibilidade futura do locado e ponham no mercado da habitação mais casas, construídas ou a construir. A regra da renovação automática não serve um fim socialmente útil como o reconhece o legislador. Também a injunção do art. 1051, n.º 2 constituía uma limitação à vontade do proprietário. Este via-se constrangido a ver constituído um direito de arrendamento sobre o locado, com as renovações automáticas acima referidas, quando se tinham extinto os poderes legais com base nos quais o contrato tinha sido celebrado (art. 1439 e 1443 do C.Civil). Como referem Menezes Cordeiro e Castro Fraga (Novo Regime do Arrendamento Urbano, 40) «esta medida (o n.º 2 do art. 1051) era disfuncional e, provavelmente, inconstitucional. Disfuncional, por admitir que alguém possa onerar o que não lhe pertence; inconstitucional por conduzir a uma autêntica expropriação por utilidade particular, sem qualquer indemnização». E mais adiante acrescentam que «como resquício do regime agora revogado, o legislador veio estabelecer o direito a novo arrendamento quando o contrato caduque por força da al. C) do art. 1051». A injunção era de tal forma violadora do mútuo consenso que foi entendido não corresponder a uma saudável conjugação de esforços em benefício da sociedade e do país, como se referiu no preâmbulo do decreto, para propiciar um clima de confiança que dinamizasse o mercado da habitação no aspecto em análise. Conclui-se, pois, que não era socialmente útil.'
3. É deste Acórdão que vem interposto pelos demandados o presente recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Nas suas alegações, os recorrentes concluíram:
'O Governo, ao legislar sobre o arrendamento urbano por autorização legislativa da Assembleia da República, nos termos da Lei 42/90, de 10 de Agosto, estava obrigado, segundo a alínea c) do seu n.º 2, à ‘preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário’. Sendo o arrendamento urbano matéria de competência exclusiva da Assembleia da República, o Governo apenas poderia legislar nos estritos limites da lei de autorização. Com a publicação do Dec-Lei 321-B/90, ao não acautelar as situações pré-existentes, pondo-as em causa, claramente colocou em crise os contratos antes celebrados à luz de legislação que muito mais favoravelmente tutelava a posição do arrendatário. Assim, a norma do n.º 2 do artigo 5º do Dec-Lei 321-B/90, violou de forma manifesta a alínea c) do n.º 2 da lei de autorização legislativa. O que se constitui em óbvia inconstitucionalidade orgânica.' Por sua vez, os recorridos contra-alegaram que:
'(...) tal como foi sustentado, e muito bem, no Acórdão recorrido, ‘a regra da renovação automática não serve um fim socialmente útil. Consequentemente, ao revogar o aludido n.º 2 do artigo 1051º do Código Civil não permitindo a continuidade do contrato por efeito da sua caducidade, o legislador não feriu nenhuma regra socialmente útil, pois o que se tem vindo a verificar é, precisamente, que mais protegidos ficam os interesses do ‘arrendatário’ quanto maior fôr a liberdade contratual nesta matéria. Na verdade, foi exactamente pelo reconhecimento de que as medidas restritivas, essas sim prejudicavam o mercado do arrendamento, que o legislador considerou socialmente útil suprimir aquela disposição legal.'
4. Corridos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir. II. Fundamentos:
5. Objecto do presente recurso de constitucionalidade é a norma do artigo 5º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente RAU), pela qual foi revogado o artigo 1051º, n.º 2 do Código Civil. Segundo este artigo 1051º, n.º 2:
'No arrendamento urbano, o contrato não caduca pela verificação dos factos previstos na alínea c) do número anterior, se o inquilino, no prazo de 180 dias após o seu conhecimento, comunicar ao senhorio, por notificação judicial, que pretende manter a sua posição contratual.' Na alínea c) do n.º 1 do artigo 1051º do Código Civil, por sua vez, previa-se a caducidade do contrato de locação por cessar o direito ou findarem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato havia sido celebrado. Este artigo 1051º do Código Civil havia já sido objecto de várias reformas, designadamente, no que toca à caducidade do arrendamento prevista na sua alínea c) (cfr., criticamente, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, 3ª ed., Coimbra, 1986, pág. 417): o a manutenção da posição do locatário no caso da caducidade prevista na alínea c) fora introduzida pelo Decreto-Lei n.º 67/75, de 19 de Fevereiro, para toda a locação e com direito a actualização da renda nos termos legais; o pelo Decreto-Lei n.º 328/81, de 4 de Dezembro, tal excepção à caducidade foi limitada ao arrendamento urbano, deixando também a actualização da renda de ser uma consequência específica da manutenção do contrato (e passando a decorrer nos termos do respectivo regime geral); o a Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro deu a redacção final ao artigo
1051º, n.º 2, substituindo a palavra 'arrendatário pelo termo 'inquilino'. O referido artigo 5º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro veio, assim, restituir o artigo 1051º do Código Civil à sua redacção originária, eliminando o n.º 2 (no que, nas palavras de Manuel Januário Gomes, Arrendamentos para habitação, 2ª ed., Coimbra, 1996, pág. 266 constitui 'um marco importante na evolução da legislação do arrendamento, repondo-se o regime inicial do Cód. Civil'). Todavia, segundo o RAU (artigo 66º, n.º 2) quando o contrato de arrendamento urbano para habitação caduque nos termos desta alínea c), o arrendatário tem direito a um novo arrendamento nos termos do artigo 90º do mesmo diploma. Trata-se, segundo Menezes Cordeiro e Castro Fraga (Novo regime do arrendamento urbano anotado, Coimbra, 1990, pág. 113), de
'um resquício do regime do revogado n.º 2 do artigo 1051º do Código Civil, e constitui uma protecção suplementar do inquilino habitacional.' A posição do inquilino habitacional não se encontra, assim, na hipótese do revogado artigo 1051º, n.º 2, desprotegida, uma vez que o inquilino tem direito a novo arrendamento, nos termos do artigo 90º - e, portanto, sujeito a um regime diferente. Assim, tem-se defendido na doutrina (ainda que, por vezes, considerando-se a remissão do artigo 66º, n.º 2, in fine, para o artigo 90º como pouco feliz - v., por exemplo, M. Januário Gomes, Arrendamentos para habitação, cit., pág. 267), que com ela o legislador quis remeter para o regime dos contratos a celebrar ou celebrados por força de direito a novo arrendamento (cf., por exemplo, M. Januário Gomes, Arrendamentos para habitação, cit., pág. 267, Jorge Henrique Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra, 1996, pág. 600, Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento urbano anotado e comentado, Coimbra, 1997, pág. 368). Ora, será que o referido artigo 5º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, pelo qual o artigo 1051º, n.º 2 do Código Civil foi revogado
(substituindo-se esse regime pelo artigo 66º, n.º 2 do RAU) é organicamente inconstitucional?
7. Como se viu, a norma do artigo 1051º, n.º 2, embora revogada pelo referido artigo 5º, n.º 2, veio, na sua finalidade de tutela do inquilino, a ser substituída, para o arrendamento habitacional, por uma outra que confere igualmente tutela à posição do inquilino - embora sem que o arrendamento deixe de caducar por extinção do direito com base no qual o contrato foi celebrado. Simplesmente, o inquilino habitacional tem direito a um novo arrendamento. Eliminou-se, assim, a solução segundo a qual o arrendamento celebrado pelo usufrutuário poderia manter-se inalterado, depois da sua morte, onerando o proprietário, medida, esta, considerada na doutrina como
'disfuncional e, provavelmente, inconstitucional. Disfuncional, por permitir que alguém possa onerar o que não lhe pertence; inconstitucional por conduzir a uma autêntica expropriação por utilidade particular sem qualquer indemnização'
(assim, A. Menezes Cordeiro/Castro Fraga, O novo regime do arrendamento urbano, cit., pág. 41). A finalidade de protecção do inquilino - limitada agora ao inquilino habitacional - é conseguida através do direito a um novo arrendamento, sujeito ao regime dos arrendamentos celebrado através do exercício do direito a um novo arrendamento (artigo 90º do RAU), mas admitindo a caducidade do anterior arrendamento, v.g., por morte do usufrutuário (e consequente extinção do usufruto). Ora, com esta finalidade e este sentido, a medida adoptada pelo legislador do artigo 5º, n.º 2 do diploma que aprovou o RAU - consistente na revogação do artigo 1051º, n.º 2 do Código Civil e sua substituição pelo artigo 66º, n.º 2 do novo regime - não se afigura ao Tribunal Constitucional nem violadora da directriz constante da alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, nem carecida de habilitação por esta lei de autorização legislativa.
8. A alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90, prevê, como directriz que o legislador do RAU deveria seguir, a 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'. O sentido desta directriz foi precisado pelo Tribunal Constitucional logo no Acórdão n.º 311/93 (publicado no Diário da República, n.º 170, de 22 de Julho de
1993) que julgou não inconstitucional a referida lei de autorização legislativa.
É este sentido o:
'de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material.' Não se pode, pois, divisar nessa alínea c) uma prescrição de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime anterior do arrendamento urbano que fossem favoráveis ao arrendatário. Tal entendimento, restritivo e diverso do adoptado anteriormente pelo Tribunal não consideraria, desde logo, a limitação da alínea c) apenas às regras 'socialmente úteis', nem a natureza da fórmula empregue pelo legislador parlamentar, de molde a permitir ao Governo um juízo sobre a utilidade social das regras, ficando obrigado a preservar aquelas em relação às quais esse juízo fosse positivo. Aquela posição restritiva poderia, aliás, fazer o legislador da Lei n.º 42/90 incorrer numa contradição, entre as alíneas b) e c) do artigo 2º desse diploma, uma vez que qualquer facilitação do funcionamento da cessação do contrato - ainda que através da mera simplificação das suas regras processuais – deveria ser considerada violadora da referido imperativo legal de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime do arrendamento favoráveis ao inquilino. Tem, pois, de entender-se que o legislador ficou habilitado pela alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 a formular um juízo sobre a 'utilidade social' das regras do regime do arrendamento urbano, podendo eliminar ou reformular aquelas que se revelavam
'socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material' (formulação adoptada no citado Acórdão n.º
311/93). Ora, foi justamente isto o que o legislador do RAU fez quanto ao problema do destino do arrendamento em caso de caducidade por cessação do direito ou dos poderes legais com base nos quais tinha sido celebrado – previu a caducidade do contrato, repondo a redacção originária do Código Civil, mas atribuiu ao inquilino habitacional, cuja protecção se lhe afigurou sem dúvida 'socialmente
útil' em maior medida, o direito a um novo arrendamento. Conclui-se, assim, que a revogação do artigo 1051º, n.º 2 do Código Civil pelo artigo 5º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (e substituição daquele regime do Código Civil pelo regime resultante dos artigos 66º, n.º 2 e
90º e segs. do RAU) encontra justificação na própria alínea c) do artigo 2º da lei de autorização legislativa. E, desde logo por isto, não vislumbra este Tribunal qualquer inconstitucionalidade orgânica nesse artigo 5º, n.º 2.
9. Acresce que se pode mesmo afirmar que, com a revogação do anterior regime e sua substituição pelo do artigo 66º, n.º 2 do RAU, o legislador visou atenuar uma contradição valorativa, em relação a um importante princípio do ordenamento jurídico (o de que nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet). Como decidiu este Tribunal no referido Acórdão n.º 311/93, o legislador ficou habilitado pela referida alínea c) a preservar apenas as regras socialmente
úteis, e não as socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico. Ora, como se salienta na doutrina (veja-se, por exemplo, A. Menezes Cordeiro/Castro Fraga, O novo regime do arrendamento urbano, cit., págs. 40-1), a solução do artigo 1051º, n.º 2, permitia a uma pessoa (por exemplo, o usufrutuário) onerar o que lhe não pertencia com um arrendamento, mesmo para além do momento da extinção do seu direito - sendo mesmo tal solução qualificada como 'autêntica expropriação por utilidade particular', e acusada de inconstitucionalidade. Essa solução conduzia, na verdade, a que subsistisse, sem limite temporal definido, um direito constituído com base num outro, temporalmente limitado (uma vez que, como se sabe, não existem usufrutos perpétuos), que deixara de existir, e não podia deixar de ser considerada contraditória com a conhecida regra fundamental da aquisição derivada de direitos (que seria aquisição derivada constitutiva, no caso da aquisição de direitos pelo inquilino com base no direito do usufrutuário), segundo a qual
'ninguém pode transmitir a outrem mais direitos do que aqueles de que ele próprio é titular' (nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet – vide Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II, Coimbra,
1974, pág. 18, C. Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 3ª ed., Coimbra,
1985, pág. 366, J. Castro Mendes, Teoria geral do direito civil, vol. I, Lisboa,
1978, pág. 338). Além disso, a referida consequência negativa para o titular da nuda proprietas, que via o seu direito onerado com o direito ao arrendamento, ocorria sem que existisse indemnização desse titular (não podendo, obviamente, a futura percepção das rendas ser como tal considerada). A eliminação do regime do artigo 1051º, n.º 2 do Código Civil significou, pois, que se atenuou esta contrariedade ao 'princípio basilar' de que ninguém pode onerar o que não é seu ('nemo dat quod non habet') ou transmitir mais direitos do que aqueles de que é titular, sem, todavia, do mesmo passo, deixar desprotegido o inquilino habitacional, cuja protecção se afigurou socialmente mais útil – isto, porque, aceitando-se embora a caducidade do contrato, se previu, e apenas para o inquilino habitacional, o direito a um novo arrendamento. Pode dizer-se que tal solução encontra justificação na alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90, tendo sido a atenuação das consequências resultantes para o proprietário do prédio da celebração de um contrato de arrendamento pelo usufrutuário um factor importante, aos olhos do legislador, para o juízo de
'utilidade social' a fazer sobre a regra do artigo 1051º, n.º 2 do Código Civil. Esta regra afigurou-se-lhe, na formulação do citado Acórdão n.º 311/93,
'socialmente imprestáve[l], designadamente porque subvertia princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratava desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material.'
10. Aliás, à mesma conclusão se chegaria através da autorização resultante da alínea a) do artigo 2º da Lei n.º 42/90, desde que se atente em que o RAU, com a solução em causa, procedeu à atenuação de uma verdadeira contradição, entre o regime constante do artigo 1051º, n.º 2, do Código Civil, por um lado, e o referido princípio basilar, conhecido como a regra fundamental da aquisição derivada de direitos (nemo plus iuris...), por outro lado. Contradição, esta, que se reflectia ainda na possibilidade de a oneração do titular da nua propriedade ocorrer, para todos os arrendamentos urbanos, sem que qualquer indemnização fosse devida ao proprietário, e sem que as condições do arrendamento pudessem ser alteradas. Ora, a autorização para remoção de contradições, conferida ao legislador pela alínea a) do artigo 2º da Lei n.º 42/90, não deve ser entendida de forma restritiva, englobando apenas contradições estritamente normativas
(designadamente entre soluções resultantes directamente de normas), mas englobando antes também a remoção de contradições valorativas (por exemplo, entre uma norma e um princípio), que podem, nas suas consequências, revestir-se de igual ou maior gravidade. E, como tem sido posto em relevo, existia seguramente contradição entre, por um lado, a manutenção inalterada de um direito sem limite temporal constituído com base noutro, limitado temporalmente e que se extinguiu, e, por outro lado, o princípio basilar da aquisição derivada de direitos, de que ninguém pode transmitir a outrem mais direitos do que aqueles de que é titular - contradição, esta, note-se, consideravelmente atenuada pela nova solução, que confere apenas ao inquilino habitacional direito a um novo arrendamento, com um regime particular (sendo, designadamente, de duração limitada – v. artigos 66º, n.º 2 e
92º do RAU, bem como por exemplo, M. Januário Gomes e J. Aragão Seia, obs. e locs. cits.). A revogação do artigo 1051º, n.º 2, e sua substituição pela solução constante do artigo 66º, n.º 2 do RAU encontraria, pois, também suficiente habilitação legislativa na alínea a) do artigo 2º da Lei n.º 42/90. Torna-se, pois, desnecessário averiguar se o legislador do RAU se encontraria autorizado a revogar o regime do artigo 1051º, n.º 2, do Código Civil por outras normas (como, num seu certo entendimento, poderia ser o caso da alínea b) do artigo 2º da citada Lei n.º 42/90). III. Decisão: Pelo fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide julgar o artigo 5º, n.º 2 , do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano não inconstitucional, negando provimento ao recurso.
Lisboa, 18 de Novembro de 1998 Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Artur Mauricio Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos de declaração de voto junta). Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
1. No entendimento dos recorrentes, a norma do nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, através da qual foi revogado o artigo
1051º, nº 2, do Código Civil, é organicamente inconstitucional, por não respeitar a regra contida na alínea c) do artigo 2º da lei de autorização legislativa (Lei nº 42/90, de 10 de Agosto).
De acordo com a directriz contida na alínea invocada pelos recorrentes, as alterações a introduzir ao abrigo da autorização legislativa deveriam orientar-se no sentido da 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'.
O acórdão considerou que 'a revogação do artigo 1051º, nº 2, do Código Civil pelo artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 321-B/90 (e a substituição daquele regime do Código Civil pelo regime resultante dos artigos 66º, nº 2, e
90º e seguintes do RAU) encontra justificação na própria alínea c) do artigo 2º da lei de autorização legislativa' (cfr. II, nº 8, do acórdão) e 'encontraria
[...] também suficiente habilitação legislativa na alínea a) do artigo 2º da Lei nº 42/90' (cfr. II, nº 10).
2. Não acompanhámos a solução perfilhada e votámos no sentido da inconstitucionalidade da norma cuja apreciação constitui o objecto deste recurso, pelo essencial das razões que fundamentaram a tese acolhida nos acórdãos nºs 127/98 (publicado no Diário da República, II, nº 114, de 18 de Maio de 1998, p. 6690 ss), 426/98 e 427/98 (ainda inéditos), acórdãos em que este Tribunal julgou organicamente inconstitucional a norma do artigo 69º, nº 1, alínea a), 2ª parte, do RAU.
Na verdade, a solução que decorre do nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 321-B/90 – a revogação do nº 2 do artigo 1051º do Código Civil –, ainda que conjugada com o regime constante dos artigos 66º, nº 2, e 90º e seguintes do RAU, não se contém, em meu (nosso) entender, na directriz de
'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'.
A razão fundamental da divergência relativamente à tese que fez vencimento reside no sentido atribuído à expressão 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'.
Tal como o acórdão nº 311/93, o presente acórdão perfilha o entendimento de que:
'[...] o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material.'
Ora, como escreveu o Conselheiro António Vitorino, na declaração de voto junta ao citado acórdão nº 311/93, o referido preceito da lei de autorização legislativa pode:
'[...] ser entendido como contendo, pelo contrário, uma prescrição de manutenção das concretas regras do regime anteriormente vigente que estabelecessem um
«favor» em benefício dos arrendatários, porque essas regras sempre teriam de ser tidas como «socialmente úteis», atentos os fins últimos do próprio regime jurídico do contrato de arrendamento e da protecção constitucionalmente dispensada ao direito à habitação. A «utilidade social» a que alude o preceito não é forçosamente a que resulta de um juízo de equidade e de um tratamento paritário das posições contratuais do arrendatário e do senhorio, mas antes pode bem ser a que exprime uma especial protecção da posição do arrendatário.'
Assim sendo, a norma constante do nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 321-B/90 introduz na ordem jurídica uma modificação significativa, que transcende um quadro lógico de 'preservação/eliminação' de regras socialmente
úteis da posição do arrendatário.
A nosso ver, por conseguinte, não dispondo o Governo de autorização legislativa para alterar o regime de caducidade do contrato de arrendamento urbano, fixado no nº 2 do artigo 1051º do Código Civil, a norma constante do nº
2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, é inconstitucional, por invadir o domínio da reserva de competência da Assembleia da República, previsto no artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição (versão de 1989).
Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma