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Procº nº 444/98 ACÓRDÃO Nº 87/99
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
Acordam no Tribunal Constitucional:
1. - I. foi pronunciado, acusado e julgado no Círculo Judicial de Aveiro, juntamente com a firma “T. – I. G. DE A,”, pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 36º, nº 1, alínea a), e 2, 4 3 5, alínea a), do Decreto-Lei nº 28/84, de
20 de Janeiro e um crime de desvio de subsídio, nos termos do artigo 37º, nºs 1,
3 e 4, do mesmo diploma legal.
Realizado o julgamento, o Colectivo absolveu o arguido I. da prática do crime da fraude na obtenção de subsídio, condenando-o pelo crime de desvio de subsídio, na pena de dois anos e quatro meses de prisão e a firma “T.” em 80 dias de multa, à taxa diária de 25.000$00 e ambos os arguidos no pagamento ao “Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social” da quantia de 528.780$00, acrescida de juros de mora.
Ambos os arguidos condenados interpuseram recurso da decisão para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
O STJ, por acórdão de 19 de Novembro de 1997, decidiu negar provimento aos recursos confirmando a decisão recorrida.
Notificado desta decisão, o arguido I. veio apresentar um pedido de rectificação de erro material e aclaração do acórdão, pedidos estes que foram indeferidos por acórdão de 11 de Março de 1998.
Não se conformando com o assim decidido, o arguido veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão condenatório e do que indeferiu a aclaração, para apreciação da conformidade constitucional dos artigos 127º, 165º e 355º (o recorrente refere, certamente por lapso, o artigo 255º que trata da detenção em flagrante delito), todos do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretados no sentido de permitirem que o Tribunal se sirva, para formar a sua convicção, de documentos não lidos, explicados ou apresentados em audiência de julgamento.
2. - Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações nas quais formulou as seguintes conclusões:
“I - As normas dos artºs 127º, 355º e 165º,nº2 do C.P.P., quando interpretados no sentido de que o Tribunal de 1ª instância pode formar a sua livre convicção com base em documentos constantes dos autos, não lidos nem explicados na audiência, frustra o princípio da publicidade da audiência e do julgamento do arguido, consagrado no artigo 209º da C.R.P., por impeir o controlo público da aplicação da justiça. II - A leitura e explicação do conteúdo dos documentos na audiência é indispensável ao acompanhamento por parte do público, da formação da convicção do julgador, melhor garantindo o direito de defesa do arguido, consagrado no artº 32º da C.R.P..”
Também o Ministério Público produziu as competentes alegações que concluiu pela forma seguinte:
“1º Tendo a acusação e a pronúncia especificado e referenciado expressamente, como meios probatórios relevantes, os documentos oportunamente juntos no decurso do inquérito e logo incorporados no processo, teve o arguido plena oportunidade processual de questionar tais provas pré-constituídas, impugnando, quer a respectiva admissão, quer o seu valor probatório.
2º Não representa, deste modo, qualquer violação dos princípios do contraditório e das garantias de defesa que a decisão condenatória proferida se haja fundado também em tais elementos documentais, independentemente de as mesmas terem ou não sido “lidas” e examinadas expressamente no decurso da audiência final.
3º Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - O arguido e recorrente questiona a interpretação das normas relativas à apresentação de documentos que não foram nem lidos nem explicados na audiência frustrando o princípio da publicidade da audiência e não garantindo integralmente o direito de defesa do arguido.
São as seguintes as normas que o recorrente identifica e cuja constitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie:
Artigo 127º
(Livre apreciação da prova) Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Artigo 165º
(Quando podem juntar-se documentos)
1.O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2.Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
3.[…].
Artigo 335º
(Proibição de valoração de provas)
1. Não valem em julgamento, nomeadamente para efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes.”
Segundo o recorrente, a interpretação conjugada destas normas - o princípio da livre apreciação das provas em conexão com o asseguramento do contraditório quanto às provas apresentadas após o inquérito ou a instrução e com a não validade das provas não produzidas ou examinadas no julgamento, designadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal - impedia que o tribunal de instância formasse a sua convicção com base nos documentos que indica e que não foram nem lidos nem explicados na audiência. Ao estruturar a decisão nesses documentos, o tribunal violou o princípio da publicidade da audiência e não garantiu o direito de defesa do arguido artigos 209º e 32º da Constituição).
Será, de facto, assim?
4. - Analisando os autos, constata-se que a prova documental em questão foi junta com a acusação, tendo sido expressamente referenciada na indicação das provas feita naquela peça processual (fls.928). Notificado da acusação e da documentação com ela junta, o arguido requereu a abertura da instrução, após o que foi proferido o despacho de pronúncia no qual se indicou como elementos de prova “toda a prova (documental e testemunhal) indicada pela douta acusação”
Assim, com excepção dos documentos cuja junção foi requerida pelo arguido, todos os outros foram juntos aos autos na fase de inquérito e referenciados na acusação. O arguido, depois de lhe ser notificada a acusação, teve oportunidade de consultar todo o processo e examinar todos os documentos constantes dos autos, podendo assim tomar posição quanto aos mesmos.
Ora, o que o recorrente censura à decisão é o facto de se ter servido de documentos, ou seja, de provas para formar a convicção do Tribunal, provas que não foram produzidas ou examinadas na audiência, o que viola o princípio da publicidade da audiência e do julgamento do arguido, além das garantias de defesa do arguido.
Com efeito, o STJ invoca a sua própria
“jurisprudência pacífica”, segundo a qual, os documentos que se encontram juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência de julgamento, considerando-se examinados e produzidos em audiência, independentemente de nesta ter sido feita a respectiva leitura e menção em acta.
De facto, nesta matéria, o STJ adoptou a orientação de Maia Gonçalves (Código de processo Penal Anotado, 7ª Ed.,pág.
521), segundo a qual, nos termos do dispositivo do nº2 do artigo 355º do Código de Processo Penal, “valem em julgamento, independentemente da sua leitura em audiência, as provas contidas em actos processuais cuja leitura é permitida, nos termos dos artigos seguintes”.
E acrescenta Maia Gonçalves: “Nos termos deste dispositivo, há, por exemplo, que deixar bem claro que os documentos juntos ao processo não têm, em regra, que ser lidos na audiência. A leitura de documentos constantes do processo, conforme o artigo 356º, nº1, alínea b), só é, em regra, proibida quando contiver, e na medida em que contiver, declarações do arguido das partes civis ou de testemunhas”
Conclui, portanto, que “os documentos constantes do processo se consideram produzidos em audiência independentemente de nesta ser feita a respectiva leitura, desde que se trate de caso em que esta leitura não seja proibida”.
Este entendimento não obsta a que, devendo as partes estar presentes na audiência, aí participem na produção da prova, contribuindo para iluminar todos os aspectos relevantes para descoberta da verdade material, mas tratando-se de documentos que foram juntos com a acusação e depois se mantiveram durante a instrução e acompanharam a pronúncia do arguido, teve este todas as possibilidades de os questionar, podendo ainda, na própria audiência, provocar a sua reapreciação individualizada para esclarecer qualquer ponto da sua defesa relativamente à qual entendesse que isso seria necessário e, assim, pedir a leitura de qualquer desses documentos.
Não é, porém, indispensável à satisfação da exigência do princípio do contraditório, quer na modalidade do princípio da oralidade quer da imediação, a leitura necessária de toda a prova documental pré-constituída e junta ao processo. Quanto a este tipo de prova, como bem refere o Ministério Público nas suas alegações, “o princípio do contraditório há-de traduzir-se - como resulta da parte final do nº2 do artigo 517º do Código de Processo Penal - em ter necessariamente de facultar-se às outras partes ou sujeitos do processo a impugnação quer da respectiva admissão quer da sua força probatória”.
Acresce que é a audiência de julgamento no seu conjunto e os actos instrutórios que a lei determinar que a Constituição submete ao princípio do contraditório e não a prova testemunhal ou por declarações. O conteúdo essencial deste princípio está em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência nem nenhuma decisão deve aí ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada uma ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual ela é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar.
Ora, no caso em apreço, o arguido teve toda a oportunidade que discutir, contestar e de desvalorizar os factos constantes dos documentos em questão; a leitura em audiência de dezenas de documentos nada acrescentaria às oportunidades de defesa do arguido. Seria, como refere o Ministério Público, “um verdadeiro “simulacro” de “constituição” no decurso daquele acto processual de uma prova que, afinal, já existia, de modo anterior e autónomo relativamente ao processo penal em questão”.
Não ocorre, pois, nos autos, qualquer violação quer do princípio do contraditório quer do direito de defesa do arguido.
III - DECISÃO:
Pelo exposto o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC’s.
Lisboa, 1999.02.9 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida