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Processo n.º 284/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... deduziu embargos de terceiro contra I..., SA, pedindo que se ordenasse o levantamento da penhora, que antes havia sido feita, dos prédios que identificou, cancelando-se, consequentemente, os registos a que se tivesse procedido, e que ela, embargante, fosse restituída à posse de tais prédios. Fundamentou o pedido, dizendo que os prédios penhorados são bens comuns do casal, mas que, sendo, embora, casada segundo o regime da comunhão geral de bens, ela não participou na fiança que seu marido, D..., prestou a favor de uma sociedade comercial, não o autorizou a subscrevê-la, nem dela teve conhecimento; ao que acresce que a execução foi instaurada apenas contra seu marido. Os embargos foram julgados procedentes, por sentença do Juiz do 2º Juízo Cível da comarca de Guimarães (2ª Secção); e, em consequência, a penhora foi mandada levantar, mandando-se restituir a embargante à posse dos prédios penhorados. A embargada apelou da sentença, mas a Relação do Porto negou provimento ao recurso. Tendo a embargada pedido revista do aresto da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 22 de Janeiro de 1997, revogou aquela decisão e julgou os embargos improcedentes.
Para atingir esta conclusão, o Supremo Tribunal de Justiça ponderou que, embora a dívida resultante do aval prestado pelo marido da embargante fosse da exclusiva responsabilidade do mesmo, por ela respondendo, subsidiariamente apenas, a meação dele nos bens comuns do casal; como, entretanto, foi eliminada a moratória forçada que antes se achava consagrada no n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil (segundo a qual só podia exigir-se judicialmente que o cumprimento das dívidas do tipo indicado se fizesse à custa da meação do devedor nos bens comuns, depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens), a partir de 1 de Janeiro de 1997, nas execuções movidas contra um só dos cônjuges, passaram a poder ser penhorados bens comuns do casal. Questão é que o exequente, ao nomeá-los à penhora, peça a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens - citação que, sublinhou o acórdão,
'a embargada afirma ter requerido'. Esta possibilidade de, a partir de 1 de Janeiro de 1997, se penhorarem bens comuns do casal nas execuções movidas contra um só dos cônjuges, vale mesmo para as acções pendentes - acrescentou o Supremo -, por força do disposto no artigo
27º do Decreto-Lei n.º 327-A/95, de 12 de Dezembro.
A embargante reclamou do acórdão, por nulidade. Sustentou, então, que um entendimento do artigo 1696º, n.º 1, do Código Civil, na sua nova redacção, que conduza a deixar desprotegidos aqueles que, em face do que antes determinava o preceito, 'não recorreram ao processo especial de separação de bens', 'contraria frontalmente o disposto nos princípios constitucionais da igualdade, da equidade e da afectação dos bens comuns do casal à satisfação das necessidades do casal e da própria protecção que o Estado deve à família e, ainda, o princípio da proporcionalidade'. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 8 de Abril de 1997, desatendeu a reclamação, ponderando, entre o mais, que 'a aplicação imediata do actual n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil em nada afecta os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade', pois que 'a eliminação da chamada moratória forçada aplica-se a todos cidadãos, sem estar prevista qualquer excepção'. E acrescentou que 'não se encontra, quer no artigo 36º quer no artigo 67º da Constituição da República Portuguesa, nada que impedisse a eliminação de tal moratória pelo legislador'.
2. É do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que vem o presente recurso, interposto pela embargante ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, 'por entender que a interpretação dada ao disposto no artigo 27º do Decreto-Lei n.º 329-A/95 e a consequente aplicação imediata aos processos pendentes e em via de recurso da alteração de redacção do n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil, viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade, da equidade, da protecção que o Estado deve à família e da afectação dos bens comuns do casal à satisfação das necessidades do próprio casal'. Neste Tribunal, a recorrente concluiu as suas alegações, dizendo o seguinte, quanto ao que aqui importa:
1. A valoração e interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo 27º, introduzida inesperadamente pelo Decreto-Lei n.º 180/96, o qual foi publicado na sequência da Lei de autorização legislativa n.º 28/96, de 2 de Agosto, extravasa e vai contra o sentido da revisão do dito Decreto-Lei n.º
329-A/95 disposto e apontado nessa lei de autorização. O que, nessa medida, faz padecer de inconstitucionalidade orgânica aquela norma do artigo 27º introduzida no Decreto-Lei n.º 329-A/95. Por outro lado,
2. A interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo 27º do dito Decreto-Lei n.º 329-A/95, na sequência da qual se veio a aplicar a inesperada e surpreendente nova redacção do n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil ao caso em discussão nesta acção declarativa deixa totalmente desprotegido e prejudicado o direito de posse e propriedade da recorrente sobre os seus bens imóveis penhorados em razão de dívidas de outrem.
3. E, por isso, (...) viola frontalmente os princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão na estabilidade dos direitos adquiridos, decorrentes da ideia de Estado de Direito democrático, consagrados no artigo 2º da Constituição.
4. Da mesma forma, aquela interpretação da citada norma do artigo 27º do Decreto-Lei n.º 329-A/95 e consequente aplicação imediata e com efeitos largamente retroactivos da nova e inesperada redacção do n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil, ao abrigo dos autos e na sua actual e terminal fase processual, na medida em que trata de forma igual situações de facto que são substancialmente desiguais, viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, tanto quanto ao direito à propriedade privada da recorrente.
6. Os efeitos retroactivos decorrentes da aplicação da nova redacção agora dada ao n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil à presente acção declaratória, em fase de recurso de revista, representam um sacrifício desmesurado e iníquo dos legítimos interesses da recorrente na defesa do seu património, tal como, na defesa da afectação dos bens comuns do casal à satisfação das necessidades comuns desse casal e ainda na defesa da estabilidade económica da sociedade conjugal.
7. Daí que também a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo 27º do citado Decreto-Lei n.º 329-A/95 e consequente aplicação com efeitos retroactivos ao caso dos autos da nova redacção introduzida no n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil viola ainda os princípios constitucionais da proporcionalidade, da estabilidade económica da sociedade conjugal e da protecção que o Estado deve à família. Pelo que,
8. (...) a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo
27º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, introduzida neste decreto-lei, pelo Decreto-Lei n.º 180/96, e consequente aplicação imediata e com efeitos retroactivos do disposto na nova redacção dada ao n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil, viola os princípios constitucionais contidos nos artigos 2º, 3º, n.º 3, 9º, 13º, 18º, nºs. 2 e 3, 36º, 62º e 67º da Constituição quando conjugadamente aplicados.
A recorrida, de sua parte, formulou, para o que aqui interessa, as conclusões seguintes:
2º. Desde logo, (...) não nos parece poder proceder o argumento de que, na medida em que não se prevê nas leis de autorização respectivas a permissão de uma aplicação retroactiva de qualquer das normas previstas e haja daí resultado esta, tenha existido uma violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos na lei e na justiça.
3º. Compulsando a Lei (de Autorização) n.º 33/95, de 128 de Agosto, mormente a alínea b) do seu artigo 8º, vislumbra-se a permissão da eliminação da moratória forçada prevista no n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil, tendo, no Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, o legislador optado aí pela sua imediata aplicação.
4º. Posteriormente, veio novamente a Assembleia da República a conceder autorização legislativa ao Governo, através da Lei n.º 28/96, de 2 de Agosto, para nova revisão do Código de Processo Civil, incluindo o Decreto-Lei n.º
329-A/95, sendo que, e como se alcança do artigo 5º daquela lei, apenas foi intenção da assembleia da República salvaguardar a data de entrada em vigor daquele diploma, deixando campo aberto para as excepções que se entendessem criar, por forma a permitir a necessária adequação à realidade processual.
5º. Não se vislumbra, destarte, e de que forma, se 'extravasou e foi contra o sentido do disposto na sua lei de autorização legislativa'.
11º. (...) não se prevendo qualquer proibição de aplicação retroactiva de leis, salvo quanto à lei criminal no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, muito menos a nível constitucional (...).
13º. Decorre inequivocamente da estipulação da aplicabilidade da nova redacção do artigo 1696º, n.º 1, do Código Civil também aos processos pendentes uma preocupação com aqueles princípios (refere-se aos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão na estabilidade dos direitos adquiridos, decorrentes da ideia de Estado de Direito democrático), que não uma qualquer restrição aos direitos dos cidadãos já consagrados.
16º. De igual forma não se nos afigura viável e, logo, aceitável (...) imputar como consequência daquela violação a desprotecção do direito de posse e propriedade da recorrente, plasmado no n.º 1 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
18º. Muito menos se compreende a alegada violação (...)do princípio da igualdade.
27º. Quanto à alegada violação do princípio da proporcionalidade, (...) também não se alcança da sua veracidade.
29º. (...) não se (...) nesse preceito (refere-se ao artigo 67º da Constituição) qualquer alínea que se possa aplicar ao caso sub iudice.
30º. Também o artigo 36º da Lei Fundamental não nos parece ser aqui enquadrável.
34º. Não existirá, pelo exposto, qualquer violação dos princípios constitucionais vertidos nos artigos 2º, 3º, 9º, 13º, 18º, 36º, 62º e 67º da Constituição da República Portuguesa, como resultado da aplicabilidade do artigo
1696º do Código Civil - na sua redacção introduzida pelos Decretos-Leis nºs
329-A/95 e 180/96.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. Uma questão prévia:
Os recursos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional têm como pressupostos, entre outros, que os recorrentes hajam suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma jurídica que pretendem ver apreciada sub specie constitutionis; e que, não obstante essa acusação de desconformidade constitucional, a decisão recorrida a tenha aplicado no julgamento do caso. A inconstitucionalidade de uma norma jurídica, em regra, só se suscita durante o processo, quando tal se faz antes de proferida decisão sobre a matéria a que respeita essa questão de inconstitucionalidade. Só assim não será, em casos de todo anómalos e excepcionais, em que o recorrente não teve oportunidade processual de suscitar essa questão antes de proferida a decisão de que recorre. No presente caso, a norma que a recorrente pretende que este Tribunal aprecie ratione constitutionis, e que adiante se identificará, foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça no julgamento do caso de que emerge o recurso, mas a sua inconstitucionalidade só foi suscitada depois de esse julgamento ter sido proferido. O Tribunal só pode, por isso, conhecer do recurso, se concluir que está perante uma daquelas situações anómalas e excepcionais, em que a recorrente deva ser dispensada do ónus da suscitação prévia da questão da inconstitucionalidade. A recorrente deve, de facto, ser dispensada de tal ónus.
É certo que, quando a embargante, aqui recorrente, em 5 de Junho de 1996, foi notificada, no Supremo Tribunal de Justiça, para alegar - o que ela não fez -, a moratória prevista pelo n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil já tinha sido eliminada do ordenamento jurídico, pois que a nova redacção desse preceito legal foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. Simplesmente, o artigo 27º deste Decreto-Lei n.º 329-A/95 - que é o que veio dispor que 'é aplicável nas causas pendentes à data da entrada em vigor deste diploma legal a nova redacção introduzida no artigo 1696º do Código Civil' - só foi aditado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro (cf. artigo 6º). E mais: o Decreto-Lei n.º 329-A/95, com as modificações decorrentes do Decreto-Lei n.º 180/96 - e, portanto, a não suspensão das execuções pendentes, por força da eliminação da mencionada moratória forçada -, só entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1997 (cf. artigo 16º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, na redacção introduzida pelo artigo 4º do Decreto-Lei n.º 180/96). Ou seja, só entrou em vigor, num momento em que o processo já se encontrava concluso para acórdão havia algum tempo (a conclusão é de 21 de Outubro de 1996). Não era, por isso, exigível que a recorrente, antes de proferido o acórdão de 22 de Janeiro de 1997, tivesse ido aos autos suscitar a inconstitucionalidade da norma, cuja compatibilidade com a Constituição agora questiona. Acresce que, logo que notificada desse acórdão, a recorrente apressou-se a levantar tal questão de inconstitucionalidade. Há, por isso, que passar ao conhecimento do objecto do recurso.
5. A norma sub iudicio:
5.1. O artigo 1696º, n.º 1, do Código Civil, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, dispunha que, pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, respondia, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns - para além, naturalmente, dos seus bens próprios. Com uma importante restrição, apesar de tudo: o cumprimento
à custa da meação só podia ser judicialmente exigido depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens. O artigo 1696º, nº 1, estabelecia, pois, uma moratória forçada à execução do credor. Com a imposição desta moratória, pretendia o legislador defender o suporte económico fundamental da família que os bens comuns do casal constituem. Ou seja: queria garantir a estabilidade do património familiar.
No entanto, nem todos os bens comuns ficavam a coberto desta moratória. Bens comuns havia que podiam ser imediatamente executados pelo credor, ao lado dos bens próprios do devedor. E continuam a poder sê-lo. São os bens enumerados no n.º 2 do mesmo artigo 1676º - a saber: os bens levados pelo cônjuge devedor para o casal e os adquiridos posteriormente por ele, a título gratuito, bem como os respectivos rendimentos e os sub-rogados no lugar daqueles (cf. as alíneas a) e c) do dito n.º 2); o produto do trabalho e os direitos de autor do cônjuge devedor (cf. a alínea b) do mesmo n.º 2). A origem destes bens fazia - e faz - com que eles, embora sendo comuns, pudessem
- e possam - ser imediatamente executados, sem a referida moratória. A moratória também não funcionava - e continua a não funcionar - relativamente
às dívidas provenientes de crimes ou de outros factos danosos imputáveis a um só dos cônjuges (cf. n.º 3 do mesmo artigo 1696º com referência à alínea b) do artigo 1692º). Também estes bens podiam - e podem - ser executados imediatamente, sem a moratória indicada. O legislador, considerando a natureza da dívida - recte, o carácter da respectiva fonte -, entendeu que não era justo sacrificar o interesse da vítima, credora da indemnização ou da restituição, ou o do próprio Estado, credor da multa ou das custas judiciais, aos interesses da família do responsável pela dívida. Até porque, no caso da vítima, também ela pode ter família, que não merece menor protecção que a do responsável. Também não ficavam sujeitas às regras da moratória as dívidas provenientes da responsabilidade por acidentes de viação (cf. o n.º 11 do artigo 56º do Código da Estrada anterior, em conjugação com o artigo 2º do Decreto-Lei n.º 114/94, de
3 de Maio, in fine), nem as dívidas substancialmente comerciais do artigo 10º do Código Comercial (cf. o 'assento' do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Abril de 1978). No caso de haver lugar a moratória, depois de penhorado o direito à meação do devedor nos bens comuns, a execução - dispunha o artigo 825º, n.º 1, do Código de Processo Civil - ficava suspensa até ser exigível o cumprimento, 'nos termos da lei substantiva', ou seja, até que, conforme ao preceituado no referido artigo 1696º, n.º 1, do Código Civil, fosse dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou fosse decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens. Quando não houvesse lugar à referida moratória, podiam penhorar-se os próprios bens comuns. Em tal caso, com efeito, a penhora não tinha já que ter por objecto o simples direito à meação do devedor nesses bens comuns (cf. o artigo 825º, n.º
2, do Código de Processo Civil). A eficácia da penhora dos bens comuns - por força do que preceituava o citado n.º 2 do artigo 825º - ficava, no entanto, dependente de o exequente, ao nomeá-los à penhora, pedir a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens. De facto, se o exequente nomeasse à penhora bens comuns do casal e não pedisse a citação do cônjuge do executado para requerer a separação das meações, este, uma vez feita a penhora, podia opor-se a ela, mediante embargos de terceiro (cf. o artigo 1038º do Código de Processo Civil e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 1980, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 296, páginas 229).
Se o cônjuge do executado, citado para o fazer, requeresse a separação de bens no decêndio posterior à citação, a execução ficava suspensa até à partilha; e, uma vez feita esta, caso os bens penhorados não coubessem ao executado, podia o exequente nomear à penhora outros bens que lhe tivessem ficado a pertencer (cf. o referido artigo 825º, n.º 4). Se aquele não requeresse a separação das meações, a execução prosseguia nos bens penhorados (cf. o citado artigo 825º, n.º 3). A separação de meações, sendo requerida, fazia-se em processo de inventário (cf. artigo 1406º, n.º 1, alínea a), referido ao artigo 1404º do Código de Processo Civil).
5.2. Este regime foi, em parte, alterado pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. Na verdade, o artigo 4º, n.º 1, deste decreto-lei veio dar nova redacção ao artigo 1696º do Código Civil, cujo n.º 1 passou a dispor como segue:
1. Pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns. Na nova redacção do n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil, foi, assim, eliminado o inciso final, que rezava como segue: 'neste caso, porém, o cumprimento só é exigível depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens'. Com a referida eliminação, desapareceu a moratória relativa à meação do devedor nos bens comuns do casal, que era imposta à execução por dívidas por que fosse responsável um só dos cônjuges. E, ao desaparecer essa moratória, a penhora, como resulta do que hoje prescreve o n.º 1 do artigo 825º do Código de Processo Civil, passou a poder incidir, directamente, sobre os bens comuns do casal, apesar de a execução ser movida apenas contra um dos cônjuges - o cônjuge devedor. Questão é que o exequente, à semelhança do que acontecia no regime legal anterior ao nomear bens comuns à penhora, peça a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens (cf. o citado artigo 825º, n.º 1, in fine). Se o exequente, ao nomear à penhora bens comuns do casal, não pedir a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens, este, uma vez feita a penhora, pode deduzir embargos de terceiro, como bem resulta do que hoje preceituam os artigos 351º e 352º do Código de Processo Civil. A separação das meações - que continua a ser feita em processo de inventário
(cf. artigo 1406º, n.º 1, referido ao artigo 1404º do Código de Processo Civil)
- pode agora ser requerida pelo cônjuge do executado e também por este, nos 15 dias posteriores à citação (cf. o citado artigo 825º, n.º 2). Se for requerida a separação das meações, tudo se passa como no regime legal anterior: a execução fica suspensa até à partilha; e se, por esta, os bens penhorados não couberem ao executado, pode o exequente nomear à penhora outros que lhe tenham ficado a pertencer (cf. o n.º 3 do artigo 825º citado). Se nenhum dos cônjuges requerer a separação de bens, a execução prossegue, como antes acontecia, nos bens penhorados (cf. o mesmo artigo 825º, n.º 2).
5.3. Decorre do que acaba de expor-se o seguinte:
(a). no regime anterior ao do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, instaurada uma execução contra o cônjuge devedor para cobrança de dívida por que apenas ele fosse responsável (salvo nas situações previstas nos nºs 2 e 3 do artigo 1696º do Código Civil), uma vez efectuada a penhora do direito à sua meação nos bens comuns, a execução ficava suspensa até ser exigível o cumprimento, 'nos termos da lei substantiva', ou seja, até que, conforme ao disposto no n.º 1 do mencionado artigo 1696º, fosse dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou fosse decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens (cf. o artigo 825º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção anterior);
(b). no regime actual, não há lugar a essa moratória forçada. Os bens comuns podem ser imediatamente penhorados, mesmo que a execução seja instaurada só contra um dos cônjuges, para cobrança de dívida por que apenas ele seja responsável. Ao cônjuge do executado (e a ele próprio) resta a possibilidade de requerer a separação das meações, nos 15 dias posteriores à citação, devendo o exequente, para esse efeito, no momento em que nomeia bens comuns do casal à penhora, pedir que a citação do cônjuge do executado se faça com essa cominação. Como já se referiu atrás, de acordo com o que preceitua o artigo 27º do citado Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro (acrescentado pelo Decreto-Lei n.º
180/96, de 25 de Setembro), o regime por último indicado aplica-se às causas pendentes à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329-A/95, que teve lugar em 1 de Janeiro de 1997 (cf. artigo 16º, na redacção nele introduzida pelo artigo 4º do citado Decreto-Lei n.º 180/96). Dispõe, na verdade, o dito artigo 27º:
É aplicável nas causas pendentes à data da entrada em vigor deste diploma legal a nova redacção introduzida no artigo 1696º do Código Civil.
Por conseguinte, por força deste artigo 27º, as execuções movidas contra um dos cônjuges para cobrança de dívida por que apenas ele seja responsável, que se achavam pendentes à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e que, de acordo com o regime legal anterior, estavam sujeitas à moratória forçada antes referida, deixaram de beneficiar dessa moratória. E, por isso, nessas execuções, passaram a poder ser penhorados bens comuns do casal. Questão é que o exequente, ao nomeá-los à penhora, peça a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens. De acordo com a interpretação, que o acórdão recorrido fez do mencionado artigo
27º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, acrescentado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro (conjugado, obviamente, com o artigo
1696º, n.º 1, do Código Civil), o regime que se acha consagrado, actualmente, neste artigo 1696º, n.º 1, aplica-se, mesmo que, no processo de execução que estava pendente à data da entrada em vigor daquele decreto-lei, a penhora já tivesse sido feita e contra ela tivessem sido deduzidos embargos de terceiro, que, acaso, tivessem sido julgados procedentes na 1ª instância e na Relação, com fundamento em que, no caso, tinham sido penhorados bens comuns do casal, quando apenas podia ser penhorado o direito do executado à meação nesses bens, ficando, de seguida, a execução suspensa, por força da moratória, imposta, à data, pelo dito n.º 1 do artigo 1696º; mesmo também que o próprio Supremo Tribunal de Justiça, onde o processo de embargos se encontrava para julgamento da revista, tivesse entendido que, no momento em que a penhora foi levada a efeito, só podia penhorar-se o direito à meação nos bens comuns, e não estes, e que a execução estava sujeita à referida moratória; e mesmo ainda que o exequente, ao pedir que o cônjuge do executado fosse citado para requerer a separação de bens, o tivesse feito, por entender que a meação deste respondia pela dívida, sem qualquer moratória, embora apenas subsidiariamente.
5.4. A norma que constitui objecto do recurso é, assim, a que se extrai da conjugação do artigo 27º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro
(acrescentado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro) com o artigo
1696º, n.º 1, do Código Civil, com a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça lhe deu. Segundo essa interpretação, a penhora de bens comuns do casal, feita numa execução instaurada contra um só dos cônjuges, para cobrança de dívidas por que só ele era responsável, contra a qual o cônjuge do executado tinha deduzido embargos de terceiro, que a 1ª instância e a Relação julgaram procedentes, em virtude de a execução estar, na altura, sujeita a moratória, passou a ser válida, desde que o exequente, ao nomear tais bens à penhora, tenha pedido a citação desse cônjuge para requerer a separação de bens.
6. A questão de constitucionalidade:
6.1. A norma sub iudicio e o princípio da igualdade: A norma sub iudicio não viola o princípio da igualdade: desde logo, porque, ao aplicar-se a todas as execuções pendentes que se encontrem na mesma fase processual, dá tratamento igual ao que é essencialmente igual.
É certo que, nessas execuções, o cônjuge do executado é desfavorecido relativamente àqueles que viram idênticas execuções, eventualmente instauradas na mesma altura, mas que findaram antes, ser suspensas, por terem beneficiado da moratória que se achava consagrada no artigo 1696º, n.º 1, do Código Civil. Isso, porém, resulta do facto de, neste último caso, a execução se ter processado, toda ela, no domínio de um regime jurídico que, entretanto, foi substituído por um outro que desfavorece o cônjuge do executado.
Por isso, o princípio da igualdade seria violado, se ele houvesse de operar diacronicamente. Este Tribunal tem, no entanto, dito que o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, não opera diacronicamente, mas tão-só sincronicamente, uma vez que - sublinhou-o no acórdão n.º 352/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 19º, páginas 519 e seguintes) - 'o legislador não está, em regra, obrigado a manter as soluções jurídicas que alguma vez adoptou. Notas típicas da função legislativa são, justamente, entre outras, a liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade. Por isso, salvo nos casos em que o legislador tenha que deixar intocados direitos entretanto adquiridos, não está ele obrigado a manter as soluções consagradas na lei a cuja revisão procede'. Quando se revê uma lei, em regra, é porque se pretende alterar o regime jurídico até então vigente.
6.2. A norma sub iudicio e o princípio da confiança: Como decorre do que se disse sobre os limites que o princípio da igualdade põe à actividade legislativa quando ela seja inovadora, a norma aqui em causa tem que ser analisada à luz do princípio da confiança. Está-se em presença de uma norma que, em casos como o dos autos, e interpretada como foi, tem efeitos retroactivos. De facto, por força da interpretação feita, 'convalidou-se' uma penhora - a penhora de bens integrados no património comum do casal - que, no momento em que foi levada a cabo, não podia incidir sobre eles. Nesse momento - recorda-se - apenas podia penhorar-se o direito à meação nesses bens comuns; e, uma vez efectuada a penhora, a execução, sujeita como se encontrava a moratória forçada
(cf. o artigo 1696º, n.º 1, do Código Civil, na sua anterior redacção), ficava suspensa até ser exigível o cumprimento, 'nos termos da lei substantiva', ou seja, até que fosse dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou fosse decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens (cf. o citado artigo 1696º, n.º 1, conjugado com o artigo 825º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção anterior). Claro é que, como estava pendente o recurso interposto do acórdão da Relação que confirmara a sentença da 1ª instância - e que, assim, julgara procedentes os embargos que o cônjuge do executado tinha oposto à penhora de bens comuns do casal, que tinha sido feita -, o levantamento desse acto de apreensão de bens ainda se não tinha consolidado. De todo o modo, tendo o Supremo Tribunal de Justiça confirmado o juízo da Relação (segundo esse entendimento, estava-se perante um caso em que apenas se podia penhorar o direito à meação e em que a execução estava sujeita a moratória forçada), a aplicação da referida norma, com a interpretação que se apontou (isto é, em termos de conduzir a julgar válida uma penhora que, no momento em que foi feita, o não era), significou atribuir-se-lhe um sentido e um alcance retroactivos. No entanto, pouco importa que a norma sub iudicio, com a interpretação apontada, seja retroactiva ou apenas retrospectiva. Tratando-se de um domínio em que a retroactividade da lei não está constitucionalmente vedada (ela é apenas proibida no domínio penal, e, ainda assim se a retroactividade não for in melius; no domínio fiscal e no das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), quer a lei seja retroactiva, quer seja retrospectiva, ela só é inconstitucional, se violar princípios constitucionais autónomos. E isso é o que sucede, quando a lei afecta, de forma 'inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa' direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, na verdade, que organize a 'protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida' (cf. o acórdão n.º
330/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas
277 e seguintes). Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte, de forma inadmissível e arbitrária, os direitos ou as expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República (cf., entre outros, os acórdãos nºs 11/83 e 287/90, publicados nos Acórdãos citados, volumes
1º, páginas 11 e seguintes, e 17º, páginas 159 e seguintes; e o acórdão n.º
486/96, publicado no Diário da República, II série, de 17 de Outubro de 1997). Pergunta-se, então: será que a norma sub iudicio, interpretada como foi, afectou, de forma intolerável, inadmissível ou particularmente onerosa, o direito (ou, ao menos, a expectativa legitimamente fundada) de o cônjuge do executado ver decretada a suspensão da execução até que o casamento fosse dissolvido, anulado ou declarado nulo ou até que fosse decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens, ou, pelo menos, até que fossem partilhados os bens comuns, em inventário para separação das meações? A resposta a esta pergunta não pode deixar de ser afirmativa. Efectivamente, interpretando-se a norma em causa, de modo a entender que a eliminação da moratória forçada vale para as execuções, em que a penhora de bens comuns tinha sido feita, mas havia sido triunfantemente impugnada na 1ª instância e na Relação, retira-se ao cônjuge do executado toda e qualquer possibilidade de defender o seu direito à meação nos bens comuns do casal.
É que, como ele não requereu a separação de meações e, agora, já a não pode requerer, a execução prossegue nos bens comuns penhorados, que nela podem vir a ser totalmente consumidos (cf. o citado artigo 825º, n.º 2). Ora, esta consequência, decorrente da mencionada interpretação da norma sub iudicio, sofre-a o cônjuge do executado, sem que se descubra qualquer interesse público capaz de a justificar e sem que aquele tenha concorrido para ela com qualquer conduta negligente ou menos prudente. Na verdade, qualquer pessoa que fosse citada para requerer a separação de bens, conhecendo, como conhecia, o quadro legal que regulava a matéria e em que tinha o direito de confiar, obviamente, que faria o que fez o cônjuge do executado: ao invés de requerer, como o exequente lhe sugeria, a separação de meações, aguardava o curso dos acontecimentos e, caso fossem penhorados bens comuns do casal, iria defender o património comum desse acto de agressão, por meio de embargos de terceiro. Essa era a única decisão que uma prudente orientação de vida (recte, uma boa gestão do património) impunha. Não deve esquecer-se que ele dispunha de uma arma bem mais forte do que a separação de bens: conhecendo a natureza da fonte da dívida e a origem dos bens comuns, sabia que, segundo o direito à luz do qual tinha que decidir, esses bens não podiam, enquanto tais, ser penhorados; e sabia, bem assim, que, uma vez penhorado o direito do seu cônjuge à meação nesses bens, a execução tinha que ficar suspensa, enquanto subsistisse a sociedade conjugal, ao menos, na sua vertente de comunhão patrimonial. Interpretar a norma aqui em apreciação, em termos de convalidar uma penhora - a penhora de bens comuns -, que, no momento em que foi feita, a lei proibia, com o argumento de que o exequente pediu a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de meações, desse modo cumprindo o requisito legalmente exigido para a eficácia desse acto de apreensão de bens, é desvalorizar o facto de que esse pedido (o pedido de citação) foi formulado num outro quadro legal - num quadro legal, em que o mesmo só tinha sentido, se a execução não estivesse sujeita a moratória forçada, como, de facto, estava aquela em que ele foi feito. E, ao desvalorizar-se esse aspecto da questão, deu-se à norma um sentido tal que empresta à mutação, que ela operou na ordem jurídica, um carácter imprevisível e injustificado - um sentido com que os cidadãos não podiam, razoavelmente, contar, e que, por isso, viola a confiança que eles devem poder depositar na ordem jurídica. A norma sub iudicio, com a interpretação que lhe deu o acórdão recorrido, é, por isso, inconstitucional, pois que viola o princípio da confiança, que vai ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República.
5.3. Atingida esta conclusão, desnecessário se torna ir averiguar se a norma em causa viola outro qualquer princípio da Constituição ou alguma das suas normas. III. Decisão: Por todo o exposto, o Tribunal decide:
(a). julgar inconstitucional - por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República - a norma que se extrai da conjugação do artigo 27º do Decreto-Lei n.º
329-A/95, de 12 de Dezembro (acrescentado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro) com o artigo 1696º, n.º 1, do Código Civil (na redacção introduzida por aquele Decreto-Lei n.º 329-A/95), interpretada no sentido de que a penhora de bens comuns do casal, feita numa execução instaurada contra um só dos cônjuges, para cobrança de dívidas por que só ele era responsável, contra a qual o cônjuge do executado tinha deduzido embargos de terceiro, que a 1ª instância e a Relação julgaram procedentes, em virtude de a execução estar, na altura, sujeita a moratória, passou a ser válida, desde que o exequente, ao nomear tais bens à penhora, tivesse pedido a citação desse cônjuge para requerer a separação de bens;
(b). em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, a fim de ser reformado em conformidade com o aqui decidido sobre essa questão. Lisboa, 27 de Outubro de 1998 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza (com dispensa de vistos) José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida