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ProcACÓRDÃO Nº 572/98 Proc.º nº 233/97
2ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. A. C. e C. Cz. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora do despacho de 6 de Novembro de 1991, do Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que os pronunciou pela prática de dois crimes de burla. Com esse recurso, subiram outros, anteriormente interpostos pelos arguidos, de decisões proferidas ao longo da instrução do processo. Do mesmo despacho de pronúncia interpôs recurso o Ministério Público, na parte em que não pronunciou os arguidos pela prática de um outro crime de burla. Nas conclusões das suas alegações, os recorrentes suscitaram as seguintes questões de inconstitucionalidade:
- da aplicação do parágrafo 2º do artigo 330º do CPP de 1929 (na medida em que permitiu o indeferimento de quase todas as diligências de instrução contraditória requeridas, por falta de interesse ou relevância, o desentranhamento de documentos e a condenação por litigância de má fé dos arguidos), por violadora do artigo 32º da CRP;
- da interpretação e aplicação dadas aos artigo 272º e 278º do CPP, «consagrada no despacho em que se indefere a requerida substituição da caução por outra medida», pelos mesmos motivos;
- e, ainda, consideraram que a sua condenação como litigantes de má-fé se revelava «violadora uma vez mais do princípio constitucional das máximas garantias da defesa do arguido, consagrado no artº 32º da CRP».
2. Por acórdão de 23 de Janeiro de 1996, a Relação de Évora concedeu parcial provimento ao recurso dos arguidos, despronunciando a arguida C. Cz., «não mantendo quanto a ela o despacho de pronúncia proferido», negando provimento aos demais recursos por eles interpostos. Por fim, concedeu ainda provimento ao recurso interposto pelo MºPº, revogando aquele despacho de pronúncia, e ordenando a sua substituição por outro «a pronunciar os arguidos pela factualidade» referente ao outro crime de burla. Inconformados, os recorrentes interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, na parte em que confirmou e/ou ordenou a pronúncia dos arguidos. E, desde logo, arguiram, para a hipótese de se vir a entender que não cabia recurso para o STJ de acórdão da Relação proferido sobre despacho de pronúncia, a inconstitucionalidade do artigo 2º do Código Civil e do Assento de 24 de Janeiro de 1990, por violação dos artigos 115º, nº 1 e nº 5, 164º, alínea d),
201º, nº 1, 205º, nº 1 e 207º, da Constituição, e suscitaram ainda a inconstitucionalidade «da revogação, pelo Dec. Lei 605/75, do artº 377º, e bem como dos artºs 665º ou 666º do referido CPP de 1929», por violação dos artigos
32º, nº 1 e nº 2, e 20º, da Constituição. Nas suas alegações, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
1ª Qualquer entendimento de que do Acórdão impugnado não caberia recurso para este STJ representaria sempre e irremediavelmente uma interpretação e aplicação dos artºs 2º do CC e artºs 665º e 666º do CPC claramente inconstitucionais, por violação dos artºs 115º, nºs 1 a 5, 164º, al. d), 201º, nº 1, 205º, nº 1 e 207º, todos da CRP.
(...)
5ª (...) o hipotético procedimento criminal estaria sempre, e face ao artº 117º, nº 1, al. c) do novo Cód. Penal, irremediavelmente extinto.
6ª O artº 11º do Dec. Lei 48/95, interpretado e aplicado como o faz o Acórdão recorrido, padece de óbvia inconstitucionalidade (por violação dos artºs 13º,
32º, nº 1 e 29º, nº 4 (2ª parte) da CRP) tal como os artºs 120º, nº 1 do CP de
1982 e do de 1995 (revisto).
(...)
16ª O indeferimento de praticamente todas as diligências de instrução contraditória (...) e ainda a condenação dos ora recorrentes como litigantes de má fé, consagraria uma forma de interpretação e aplicação do parágrafo 2º do artº 33º do CPP de 1929 inteiramente inconstitucional, por violadora do artº 32º da CRP.
17ª Rigorosamente o mesmo, no tocante à inconstitucionalidade, se diga quanto à forma de interpretar e aplicar os artºs 272º e 278º do CPP que é consagrada no despacho em que se indefere a requerida substituição da caução por outra medida,
(...)
3. Nas suas contra-alegações, o Mº Pº invocou o artigo 21º do Decreto-Lei nº
605/75 e o Assento de 24 de Janeiro de 1990 (Diário da República, I Série, de 12 de Abril de 1990), para sustentar que o recurso não devia ser admitido. Invocou ainda o Acórdão nº 178/88 do Tribunal Constitucional (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., págs. 569). Quanto ao Assento, sustentou ainda que o mesmo tem o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil, nos termos do artigo 17º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro. Por acórdão de 10 de Outubro de 1996, o Supremo Tribunal de Justiça não tomou conhecimento do recurso, afirmando: Em interpretação do disposto no citado art. 21 do DL nº 605/75, no acórdão do Pleno deste STJ de 24.1.90, publicado no D.R., 1ª série, de 12.4.90 e no BMJ nº
393-79 e sgts, concluiu-se que: «Dos acórdãos da relação proferidos sobre despachos de pronúncia não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quer verse sobre matéria de direito, quer de facto». Perfilha-se inteiramente este entendimento, subscrevendo nomeadamente os fundamentos que naquele aresto são invocados e que temos por inteiramente correctos ou acertados e que, por isso, com a devida vénia aqui seguimos muito de perto. E, seguidamente, desenvolve esses fundamentos. No tocante a outros aspectos do recurso, quanto ao fundo (impugnação de decisões anteriores ao despacho de pronúncia), não se tomou conhecimento, por terem apenas sido referidas nas alegações e não no requerimento de interposição do recurso.
4. Os recorrentes formularam pedido de aclaração daquele acórdão, que foi indeferido por acórdão de 13 de Março de 1997. Inconformados, interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação das questões de inconstitucionalidade das seguintes normas:
- artigo 2º do Código Civil e Assento do STJ de 24 de Janeiro de 1990, por violação dos artigos 115º, nº 1 e nº 5, 164º, alínea d), 201º, nº 1, 205º, nº 1, e 207º, da Constituição;
- artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro e artigos 665º e 666º do CPP de 1929, interpretados e aplicados no sentido de não permitirem recurso para o STJ do despacho de pronúncia, por violação dos artigos 32º, nº 1 e nº 2, e 20º da Constituição;
- artigos 272º, 278º e 330º, parágrafo 2º do CPP, por violação do artigo 32º da CRP;
- artigo 120º, nº 1, do Código Penal de 1982 e de 1995(revisto), por violação dos artigos 13º, 32º, nº 1, e 29º, nº 4 (segunda parte), da CRP.
5. Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal. Os recorrentes formularam aqui as seguintes conclusões:
1º Há muito que está demonstrada a inconstitucionalidade material do artº 2º Código Civil, por virtude da violação do artº 15º, nºs 1 e 5, bem como do artº
164º, al. d), 168º, nº 1, al.c) e 201º, todos da CRP.
2º Significa isto que o invocado Assento do STJ de 24/1/90 em nada pode vincular, neste ou naquele sentido, a interpretação a fazer do artº 21º do Dec. Lei 605/75.
3º Por seu turno, esta última disposição, interpretada e aplicada como o foi no Acórdão recorrido, representa uma injusta, desproporcionada e injustificada compressão quer do princípio das máximas garantias de defesa do arguido, quer do direito de acesso ao direito e aos Tribunais, em particular na sua vertente do direito ao duplo grau de jurisdição.
(...)
6º Ou seja, assim interpretado e aplicado, o citado artº 21º do Dec. Lei 605/75 também padece de óbvia inconstitucionalidade material, por violação dos preceitos e princípios dos artºs 32º, nºs 1 e 2 e 20º da CRP.
7º Por seu turno, no que respeita ao não conhecimento do recurso interposto do Acórdão da 2ª instância na parte em que decidiu não conhecer das decisões anteriores à pronúncia, os pelo Acórdão recorrido invocados artºs 21º do Dec. Lei 605/75 e 665º e 666º do CPP de 1929 (bem como o artº 684º, nº 2 do CPC) também padecem de evidente inconstitucionalidade material.
8º Já que significariam a supressão pura e simples do direito de recurso relativamente a decisão autónoma, com manifesto interesse e relevância quer para o arguido quer para o próprio processo, (...)
9º Rigorosamente o mesmo se podendo dizer da interpretação e aplicação – aliás exclusivamente literais e formalistas – da lei com base na circunstância de os recorrentes no seu requerimento inicial de interposição de recurso não terem dito expressamente que também queriam recorrer dessa concreta parte do Acórdão.
11º Interpretados e aplicados como o foram no Acórdão recorrido, os supra-referenciados artºs 665º e 666º do CPP de 1929 (e também o artº 684º, nº 2 do CPC) violariam igualmente os artºs 20º e 32º, nºs 1 e 2 da CRP.
12º Enfim – e porque se trata de questão do conhecimento oficioso de qualquer instância jurisdicional – na questão sub judice verifica-se claramente a prescrição do procedimento criminal, muito em particular no tocante aos factos constantes dos nºs 1º a 36º da acusação (porquanto à data da notificação da pronúncia já tinham decorrido muito mais do que 10 anos), a qual deverá, pois, ser declarada. Nas suas contra-alegações, o Mº Pº, após delimitar o objecto do recurso, concluiu que o acórdão recorrido não aplicou a norma do artigo 2º do Código Civil, no segmento já declarado inconstitucional, e que as normas, quer do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, em consonância com o artigo 666º do CPP de
1929 e com o Assento de 24 de Janeiro de 1990 (na medida em que não admitem o recurso para o STJ das decisões das Relações que hajam pronunciado os arguidos), bem como a do artigo 684º, nº 2, do CPC (enquanto estabelece que não é lícito ao recorrente ampliar nas conclusões da respectiva alegação o objecto do recurso que haja circunscrito no respectivo requerimento de interposição a determinada parcela ou segmento da decisão recorrida), não eram inconstitucionais. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
6. Importa, antes de mais, delimitar o âmbito do presente recurso. As questões de inconstitucionalidade que os recorrentes pretendem ver apreciadas são, pois, as seguintes:
- do artigo 2º do Código Civil e Assento do STJ de 24 de Janeiro de 1990, por violação dos artigos 115º, nº 1 e nº 5, 164º, alínea d), 201º, nº 1, 205º, nº 1, e 207º, da Constituição;
- dos artigos 272º, 278º e 330º, parágrafo 2º do CPP, por violação do artigo 32º da CRP;
- do artigo 120º, nº 1, do Código Penal de 1982 e de 1995(revisto), por violação dos artigos 13º, 32º, nº 1, e 29º, nº 4 (segunda parte), da CRP;
- do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro e artigos 665º e 666º do CPP de 1929, interpretados e aplicados no sentido de não permitirem recurso para o STJ do despacho de pronúncia, por violação dos artigos 32º, nº 1 e nº 2, e 20º da Constituição.
7. Quanto à primeira questão, é manifesto que o STJ não aplicou aquelas normas. Com efeito, o Supremo Tribunal não «aplicou» a doutrina daquele Assento com carácter vinculativo ou obrigatório, nem invocou a normatividade ou vinculatividade do mesmo, antes procedeu a uma fundamentação expressa e própria da questão relativa à irrecorribilidade das decisões relativas ao despacho de pronúncia, na qual se limitou a expressar a sua concordância com a orientação adoptada no «Acórdão do Pleno deste STJ de 24.1.90». Como bem refere o Mº Pº nas suas contra-alegações: Ora, basta considerar que – no caso dos autos – o Supremo Tribunal de Justiça não se limitou a invocar irremediável a força normativa ou vinculativa do assento proferido em 24 de Janeiro de 1990, emergente do referido artigo 2º do Código Civil, procedendo antes a uma substancial e fundamentada reapreciação da problemática dos limites à recorribilidade do despacho de pronúncia, inclusivamente perante o teor de disposições da lei processual em vigor e do que vem sendo decidido na jurisprudência constitucional.
Não subsiste pois, qualquer questão de inconstitucionalidade, por se não ter verificado, na decisão recorrida, a pretendida aplicação das normas do artigo 2º do Código Civil e do Assento de 24 de Janeiro de 1990.
8. No tocante à questão seguinte, ou seja, a dos artigos 272º, 278º e 330º, parágrafo 2º do CPP de 1929, dela não conheceu o Supremo Tribunal de Justiça por entender que não integrava o objecto do recurso, delimitado pelo respectivo requerimento de interposição, antes constituía matéria que integrou uma ampliação do recurso, feita em sede de alegações. A decisão recorrida não fez, pois, aplicação daquelas normas, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a respectiva constitucionalidade. Aliás, mesmo que se entendesse que o que os recorrentes pretendiam, com a referência, nas conclusões da sua alegação, ao artigo 684º do CPC, era abrir a via do recurso de constitucionalidade relativamente às normas processuais que levaram o STJ a não conhecer, nessa parte, do recurso – o que, de resto, não esclarecem minimamente – a verdade é que tais normas processuais têm vindo a ser uniforme e pacificamente aplicadas pelo próprio Tribunal Constitucional, no que respeita aos recursos de constitucionalidade. Assim, como se pode ler no Acórdão nº 379/96 (Diário da República, 2ª Série, de 15 de Julho de 1996): Ora, o requerimento de interposição do recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cf. artigo 684º, nº 2, do Código do Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o artigo
75º-A, nº 1, desta lei), sem prejuízo, obviamente, de esse objecto, assim delimitado, poder vir a ser restringido nas conclusões da alegação (cf. citado artigo 684º, nº 3). O que, na alegação (recte, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso antes definido.
9. Passando à questão relativa ao artigo 120º, nº 1, do Código Penal de 1982 e de 1995(revisto), verifica-se que esta norma também não foi aplicada na decisão recorrida. Com efeito, o STJ não conheceu desta matéria, porquanto, tendo entendido que não cabe recurso daquele despacho para o STJ, o conhecimento de tal questão, porque é matéria ínsita àquele despacho, isto é, à pronúncia ou não dos arguidos, estaria necessariamente prejudicado. Da mesma forma, não tendo a norma em causa sido aplicada na decisão recorrida, também não pode este Tribunal sindicar a constitucionalidade daquela norma.
10. Por fim, quanto à última questão – a da norma do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro e artigos 665º e 666º do CPP de 1929, interpretados e aplicados no sentido de não permitirem recurso para o STJ do despacho de pronúncia -, a mesma foi já objecto de apreciação por este Tribunal, no Acórdão nº 207/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., págs.537 e segs.), para cuja fundamentação se remete, repetindo-se aqui o juízo de não inconstitucionalidade das normas em causa [mais recentemente, também os Acórdão nº 54/98, inédito, e Acórdão nº 123/98, (Diário da República, 2ª Série, de 30 de Abril de 1998), reiteraram esse juízo de não inconstitucionalidade, pelos mesmos fundamentos]. Embora os recorrentes refiram ainda as normas dos artigos 665º e 666º do CPP de
1929, as mesmas em nada alteram aquele juízo de constitucionalidade, até porque tais normas se referem à competência do STJ para conhecer das matérias de facto e/ou de direito, não se reportando à matéria da irecorribilidade do despacho de pronúncia.
III – DECISÃO
11. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 7 de Outubro de 1998 Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa