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Procº nº 487/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Da sentença condenatória, proferida em 26 de Abril de 1995 pela Juiz do Tribunal de comarca de Cuba e que condenou F..., pela autoria de um ilícito de condução sob a influência de álcool, em pena que perfez a multa global de Esc. 54.000$00, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de
Évora.
À audiência, designada para o dia 10 de Dezembro de 1996 naquele Tribunal de 2ª instância, não compareceu o defensor constituído pelo arguido, bem como este, motivo pelo qual o Desembargador Presidente da Secção Criminal nomeou, como defensora oficiosa do arguido, uma funcionária do mesmo órgão de administração de justiça.
O acórdão, que negou provimento ao recurso, foi lido em 7 de Janeiro de 1997, à respectiva sessão de audiência não tendo igualmente comparecido o arguido e seu mandatário.
Veio então o arguido requerer a declaração de nulidade da audiência realizada em 10 de Dezembro de 1996 e da sessão de 7 de Janeiro seguinte, dizendo, inter alia:-
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...............................................
d) As normas dos artºs 62, nº 2, 63, nº 1, 66, nº 1, e 67, nº 1, do CPP, quando permitem que o defensor nomeado ao arguido seja funcionário judicial em exercício de funções, são materialmente inconstitucionais por violação do disposto no artº 32, nºs 1, 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa;
...............................................
...............................................
g) O disposto no artº 113, nº 5 do CPP, na medida em que dispensa da notificação ao arguido a notificação do acórdão final proferido em sede de recurso nos tribunais superiores é materialmente inconstitucional por violação do artº 32, nºs 1, 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa, mormente quando se trata de decisão condenatória e não estão esgotados os mecanismos de defesa, sendo ainda possível interpor recurso para o Tribunal Constitucional, como tempestivamente alegado.
...............................................
..............................................'
2. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 8 de Abril de
1997, indeferiu o peticionado, o que motivou o arguido a, do assim decidido, apresentar requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Como o recurso não foi admitido com base no disposto na alínea b) do nº 1 do artº 400º do Código de Processo Penal, recorreu então o arguido para o Tribunal Constitucional, o que fez com base na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo, com a impugnação deduzida, a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 62º, nº 2,
63º, nº 1, 66º, nº 1, e 67º, nº 1, todos do Código de Processo Penal, 'na parte em que permitem que o defensor nomeado ao arguido possa ser funcionário judicial em exercício de funções', e da norma ínsita no nº 5 do artº 113º do mesmo corpo de leis adjectivas criminais, 'na parte em que dispensa a notificação ao arguido do acórdão final condenatório proferido nos Tribunais Superiores'.
3. Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a por si produzida com as seguintes conclusões:-
'1ª Devem ser consideradas materialmente inconstitucionais as normas dos artºs 62º, nº 2, 63, nº 1, 66º, nº 1, e 67º, nº 1, do CPP, na parte em que permitem que a nomeação de defensor oficioso do arguido recaia em funcionário judicial em exercício de funções, por violação do disposto no artº 32º, nºs 1, 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa, atenta a manifesta incompatibilidade daquelas funções, designadamente por força da subordinação jurídica e hierárquica a que o funcionário está sujeito, subordinação essa que se confunde com as pessoas e demais intervenientes processuais, inibindo assim o exercício isento e imparcial do direito de defesa.
2ª Deve ser julgado materialmente inconstitucional o disposto no artº
113º, nº 5, do CPP, na medida em que dispensa de notificação ao arguido o acórdão final proferido em sede de recurso nos tribunais superiores por violação do artº 32, nºs 1, 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa, por ofensa do princípio do benefício da presunção de inocência, mormente quando se trata de decisão condenatória em não estão esgotados os mecanismos de defesa e o direito ao recurso'.
De seu lado, o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu assim:-
'O artigo 113º, nº 5, do Código de Processo Penal, quando aplicado de modo a dispensar a notificação ao arguido do acórdão final proferido em sede de recurso, dando-o por conhecido pelo mesmo arguido sem que tenha sido levado ao seu conhecimento, contende com o princípio geral das garantias de defesa consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição, pelo que é, nessa medida, inconstitucional'.
Cumpre decidir.
II
1. Dispõe-se nos 62º, nº 2, 63º, nº 1, 66º, nº 1, 67º, nº 1, e 113º, nº 5, todos do Código de Processo Penal:-
ARTIGO 62º
(Defensor)
2. Nos casos em que a lei determinar que o arguido seja assistido por defensor e aquele o não tiver constituído ou o não constituir, o juiz nomeia-lhe defensor, de preferência advogado estagiário; mas o defensor nomeado cessa as suas funções logo que o arguido constituir advogado.
ARTIGO 63º
(Direitos do defensor)
1. O defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este.
ARTIGO 66º
(Defensor nomeado)
1. A nomeação de defensor é-lhe notificada quando não estiver presente no acto.
ARTIGO 67º
(Substituição de defensor)
1. Se o defensor, relativamente a um acto em que a assistência for necessária, não comparecer, se ausentar antes de terminado ou recusar ou abandonar a defesa, o tribunal nomeia imediatamente outro defensor; mas pode também, quando a nomeação imediata se revelar impossível ou inconveniente, decidir-se por uma interrupção da realização do acto.
ARTIGO 113º
(Regras gerais sobre notificações)
5. As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, ao arquivamento, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial.
2. Do teor dos transcritos preceitos ressalta à evidência, por um lado, que, tendo em conta a postura do recorrente no que concerne a pôr em crise
- do ponto de vista da sua validade constitucional - que a substituição do defensor recaia sobre um funcionário de justiça, o que, em direitas contas, vem impugnar é, tão somente, a norma constante da primeira parte do nº 1 do artº 67º numa interpretação segundo a qual a nomeação de defensor oficioso pode incidir sobre um tal funcionário, assim não assumindo qualquer relevância, para a concretização do objecto do presente recurso no que a este ponto concerne, as normas constantes dos artigos 62º, nº 2, 63º, nº 1, e 66º, nº 1.
De outro lado, pelo que respeita à norma do nº 5 do artº 113º, tendo em atenção que o respectivo teor ressalva da possibilidade de as notificações do arguido serem feitas ao respectivo defensor o caso referente à notificação da sentença, torna-se claro que o que este Tribunal, quanto a esta vertente do recurso, tem de analisar, é a norma ínsita naquele nº 5 quando interpretada no sentido de a notificação da decisão tomada pelos tribunais superiores em via de recurso poder ser feita ao defensor do arguido, não tendo, assim, de lhe ser notificada pessoalmente.
Aliás, foi com este sentido que a decisão ora impugnada aplicou o normativo em causa.
Delimitado, desta arte, o objecto do recurso, passar- -se-á à sua apreciação.
3. Começar-se-á pela norma ínsita na primeira parte do nº 1 do artº
67º, em termos de a substituição do defensor recair sobre um funcionário de justiça.
Não será cabido, pois que isso se não inclui nos poderes cognitivos que, no caso, são cometidos a este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, estar aqui a debater-se qual o significado da expressão «impossível ou inconveniente», constante da segunda parte do nº 1 do artº 67º do Código de Processo Penal, em termos de saber se, estando em causa uma audiência a ter lugar em tribunal superior, isso conduziria, na prática, a que, nessas situações, nunca poderia haver lugar à nomeação de defensor que não fosse advogado ou advogado estagiário, antes se devendo optar pelo adiamento
(por uma só vez - cfr. nº 3 do artº 442º) da realização da audiência, e isso se o tribunal superior considerasse que o adiamento era indispensável para a realização da justiça (cfr. nº 1 do mesmo artº 422º).
De outra banda, há que aceitar que das prescrições dos artigos 64º, nº 1, alíneas b) (com referência ao nº 2 do artº 421º) se extrai a obrigatoriedade da assistência de defensor à audiência a realizar nos tribunais superiores em via de recurso, nos casos de prosseguimento do processo a que alude o citado artº 421º e seguintes.
O recorrente, quanto a estes particulares, não põe em causa que possa ser nomeado «pessoa idónea» para actuar como defensor do arguido na audiência a ter lugar, nas faladas situações, nos tribunais superiores. O que questiona é que a nomeação possa recair em funcionário de justiça.
E, quanto a este ponto, esgrime - considerando que um funcionário de justiça está dependente orgânica e funcionalmente do 'Tribunal', dos 'Juízes', do 'Ministério Público' e da 'secretaria judicial', o que lhe não permite estar
'livre na sua pessoa para efeitos do exercício da defesa no próprio tribunal em que exerce' - com uma pretensa violação das garantias de defesa consagradas pelos números 1, 2 e 3 do artigo 32º da Constituição.
Será assim?
3.1. De harmonia com o disposto nos artigos 33º, nº 1, alínea f),
42º, nº 1, 86º, nº 1, alínea c), e 98º, nº 1, todos da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, compete aos Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, das Relações e dos tribunais de 1ª instância exercer acção disciplinar sobre funcionários de justiça em serviço nesses tribunais, 'relativamente à pena de gravidade inferior
à de multa', e exercer superior orientação tocantemente às secretarias judiciais, sobre as quais impende o asseguramento do expediente nos tribunais
(artº 97º da mesma Lei e artigos 9º e seguintes do Decreto-Lei nº 214/88, de 17 de Junho; cfr. ainda, quanto aos serviços afectos ao Ministério Público, no que tange à presidência para efeitos administrativos, o nº 2 do artº 16º do D.L. nº
214/88).
Tendo em atenção esta corte de disposições, e não obstante o que se consagra nos artigos 88º, 95º, 107º, alíneas a) e e), e 153º, todos do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, não se exclui liminarmente que, quanto aos funcionários de justiça que sirvam num determinado tribunal e quanto ao respectivo juiz presidente, possa desenhar-se uma relação perspectivável como de subordinação hierárquica, ainda que meramente funcional, dos primeiros referentemente ao segundo.
Significará isso, porém, que, ainda que essa subordinação exista, é constitucionalmente insolvente uma norma (mesmo que alcançada por interpretação) que permita a nomeação de um funcionário de justiça como defensor de um arguido num acto a que a assistência de defensor seja obrigatória, quando o defensor constituído a esse acto não compareça?
Adianta-se desde já que este Tribunal dá resposta negativa a uma tal questão.
Cotejando a dita questão com o que se encontra estatuído no nº 3 do artigo 32º da Lei Fundamental (que estatui, como uma das garantias que o processo criminal deve assegurar, o direito do arguido a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo), não se vê que exista qualquer contrariedade.
Como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, 204), '[o] arguido tem direito à escolha de defensor (ou defensores) e não apenas direito à assistência de defensor', justificando-se tal direito 'com base na ideia de que o arguido não é objecto de um acto estadual mas sujeito do processo, com direito a organizar a sua defesa', abrangendo o direito à assistência de defensor 'a hipótese de defensor oficioso designado pelo juiz, no caso de o arguido não exercer o seu direito de escolha', visando-se, assim, para além de, 'em primeiro lugar, garantir ao arguido assistência', alcançar 'uma medida de tutela processual objectiva', não se tratando apenas de 'um acto pro reo'.
Assente estes parâmetros, e sendo que, como já foi realçado, o recorrente não põe em causa a nomeação de defensor por parte do tribunal quanto aos actos em que, sendo a assistência dele obrigatória, o defensor constituído a eles não compareceu (não pondo igualmente em causa que tal nomeação recaia sobre pessoa que não é advogado nem advogado estagiário), impõe-se dilucidar se as garantias que a Constituição impõe, inultrapassavelmente, como devendo constar do processo criminal, se mostrarão ofendidas quando a mencionada nomeação recaia sobre um funcionário de justiça.
Os autores citados (nos indicados obra e local), referindo-se à missão do defensor, sustentam que, no prisma institucional, ele 'é uma parte no processo e um «órgão independente da justiça», o que aponta para uma posição jurídica materialmente independente quer perante o tribunal quer perante o constituinte'.
Não se contesta uma tal asserção. Contudo, daí não decorre ineludivelmente que tenha de ser reconhecido a quem as funções de defensor exerça, um estatuto pessoal de independência do mesmo tipo daquele que deve ser, até por imposição constitucional, apanágio dos juízes.
O que é necessário é que, quando actua como defensor, a pessoa investida nessas funções possa, institucionalmente, ocupar e exercer, com independência, essas funções, ou seja, que, sem peias, possa desempenhar a sua missão de garantia, por um lado, de assistência e defesa do arguido e, por outro, de 'tutela processual objectiva', não lhe podendo, por esse desempenho, ser assacadas responsabilidades ou dadas quaisquer instruções ou, sequer, sugestões sobre o modo de actuação.
Ora, a nomeação de um funcionário de justiça como defensor de um arguido num acto carecido de assistência dele e ao qual não compareceu o defensor constituído e em que não teria sido possível nomear advogado ou advogado estagiário ou outra pessoa idónea não funcionário judicial do tribunal em causa, não põe minimamente em causa aquela independência a que imediatamente acima se aludiu, justamente porque, de uma banda, esse funcionário há-de, ao exercer a função para que foi designado, actuar de harmonia com ela e, de outra, não poderá ser responsabilizado funcionalmente pelas actuações que tomou na qualidade em que foi investido, além de não ter, de todo em todo, tal como um defensor constituído ou nomeado, sendo este advogado, advogado estagiário ou uma outra pessoa idónea não funcionário judicial, de estar sujeito a instruções ou acatar sugestões por parte do juiz.
E nem se argumente, como o faz o recorrente, com a circunstância de o Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, vedar o exercício da advocacia aos funcionários de justiça. É que essa incompatibilidade visa a salvaguarda do prestígio da própria advocacia (e, reflexamente, dos próprios tribunais), não tendo por referente o asseguramento das garantias de defesa do arguido em processo criminal.
Daqui deflui não considerar o Tribunal violado o nº 3 do artigo 32º da Constituição.
Pelo que toca ao nº 2 do mesmo artigo, identicamente se não vislumbra qualquer violação, não colhendo a argumentação carreada pelo recorrente (e que, francamente, se não entende bem), segundo a qual uma nomeação de defensor nos termos permitidos pela norma sub iudicio acarretaria a
'disponibilidade do exercício' do 'direito ao benefício da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença que o condenar', exercício esse irrenunciável e intransmissível (cfr., sobre o princípio da inocência do arguido, os Acórdãos deste Tribunal números 172/92 e 695/95, no Diário da República, 2ª Série, de 18 de Setembro de 1992 e 23 de Abril de 1996, respectivamente).
E outrotanto se dirá pelo que respeita ao nº 1, ainda do mesmo artigo 32º, convindo, neste particular, sublinhar que, em casos de impossibilidade de nomeação de advogado, advogado estagiário ou pessoa idónea não funcionário judicial (não escamoteando que, nas palavras do Acórdão nº
34/96, publicado na 2ª Série do jornal oficial de 29 de Abril de 1996, na
'nomeação de defensor deve privilegiar-se -...- a posse de conhecimentos jurídicos'), e entendendo o tribunal superior que o adiamento da audiência não é indispensável para realização da justiça, a nomeação de funcionário judicial como defensor não pode deixar de ser considerada, como o mínimo de asseguramento das garantias de defesa relativamente à realização de actos que a lei, independentemente da vontade do arguido, exige, em nome da 'tutela processual objectiva', a assistência de defensor (cfr., sobre a assistência de defensor como constituindo uma 'dimensão formal do direito de defesa' ou como um
'instrumento processual para garantir a substância de um tal direito fundamental do arguido', o Acórdão deste Tribunal nº 49/86, in Diário da República, 1ª Série, de 1 de Abril de 1986).
A isto se adita que, aquando da realização da audiência nos tribunais superiores - e era esta a situação que no caso se colocava - , a defesa do arguido, como no presente caso aconteceu, estava já perfeitamente delineada, tendo o mesmo, pela motivação de recurso apresentada no tribunal de
1ª instância, discreteado sobre as razões do seu inconformismo com a sentença condenatória aí lavrada.
4. Volvamos agora a atenção para o preceito constante do nº 5 do artº 113º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de a notificação da decisão tomada pelos tribunais superiores em via de recurso poder ser feita ao defensor do arguido, não tendo, assim, de lhe ser notificada pessoalmente.
Não se olvida que a interpretação acolhida no aresto sob censura, quanto ao ponto, acolheu posição semelhante à seguida por alguma jurisprudência dos nossos tribunais superiores da ordem dos tribunais judiciais, jurisprudência essa que aponta no sentido de a 'notificação de um acórdão, de um tribunal superior, proferido em audiência para o qual o arguido não tenha, nem devesse ter sido convocado, vale como feita a ele próprio, quando o seja ao seu defensor oficioso, ainda que nomeado em substituição do primitivo defensor, convocado, mas ausente' (cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 1 de Outubro de 1996, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXI, 4º tomo, 15, aliás, citado nesse mesmo aresto).
Por outro lado, in casu, atento o que se consagra no artº 430º, nº
3, do Código de Processo Penal, porque não havia lugar à renovação da prova, não tinha o ora recorrente de ser convocado para a audiência.
O que se pergunta, porém, é se o normativo agora em análise, numa situação em que, não tendo o arguido de ser convocado para a audiência a realizar em tribunal de recurso, a decisão condenatória levada a efeito por esse tribunal notificação na pessoa do seu defensor nomeado para essa audiência, em substituição do primitivo defensor, que a ela faltou, fere as garantias de defesa que o processo criminal tem de assegurar.
É sabido que o Diploma Fundamental, ao consagrar que o processo criminal tem de assegurar todas as garantias de defesa, aponta para que o mesmo deverá incluir toda uma previsão ou um feixe de direitos, meios e instrumentos de harmonia com os quais é facultada ao arguido uma eficaz defesa e uma adequada contraditoriedade relativamente à acusação.
O processo criminal terá, por isso, de perspectivar-se como um due process of law, permitindo, pois, que nele haja sempre a possibilidade de o arguido se defender (cfr. Acórdão deste Tribunal nº 61/88, no Diário da República, 2ª Série, de 20 de Agosto de 1988).
E essa defesa, inclusivamente, pode abarcar, quando esteja em causa uma decisão jurisdicional tomada em última instância por um tribunal superior - da qual, consequentemente, já não caiba recurso ordinário -, a colocação em crise, confrontadamente com a sua validade constitucional, da normação com base na qual foi prolatada a decisão condenatória (se, como é claro, estiverem congregados os respectivos pressupostos processuais).
Sendo isto assim, são configuráveis várias hipóteses que apontam para que as garantias de defesa de um arguido só serão plenamente adquiridas se ao mesmo for dado um cabal conhecimento da decisão condenatória que a seu respeito foi tomada.
Mas, entende este Tribunal, esse cabal conhecimento, atinge-se, sem violação das garantias de defesa que o processo criminal deve comportar, desde que o seu defensor - constituído ou nomeado oficiosamente -, contanto que se trate do primitivo defensor, seja notificado da decisão condenatória tomada pelo tribunal de recurso.
Na verdade, os deveres funcionais e deontológicos que impendem sobre esse defensor, na vertente do relacionamento entre ele e o arguido, apontam no sentido de que o mesmo, que a seu cargo tomou a defesa daquele, lhe há-de, com propriedade, transmitir o resultado do julgamento levado e efeito no tribunal superior.
De harmonia com tais deveres, há-de concluir-se que o arguido, por intermédio do conhecimento que lhe é dado pelo seu defensor (aquele primitivo defensor) ficará ciente dos motivos fácticos e jurídicos que o levaram a ser considerado como agente de um ilícito criminal e da reacção, a nível de imposição de pena, que lhe foi aplicada pelo Estado, ao exercitar o seu jus puniendi .
Outrotanto, porém, se não passa se se tratar de um defensor meramente nomeado para a audiência em substituição do defensor que, para ela notificado, não compareceu.
Aqui, esse defensor não estará vinculado a deveres funcionais e deontológicos que lhe imponham a dação de conhecimento ao arguido do resultado do julgamento realizado no tribunal superior, já que a sua intervenção processual se «esgotou» na audiência e somente para tal intervenção foi nomeado.
Numa tal situação, e só nessa, é que este Tribunal perfilha a óptica segundo a qual norma constante do nº 5 do artº 113º do Código de Processo Penal, desse jeito interpretada, se revela contrária ao nº 1 do artigo 32º da Constituição, por isso assim se não almejam as garantias que o processo criminal deve assegurar ao arguido.
III
Em face do exposto, o Tribunal concede parcial provimento ao recurso, decidindo:-
a) Não julgar inconstitucional a norma constante da primeira parte do 1 do artº 67º do Código de Processo Penal, em termos de a substituição do defensor aí consagrada poder recair, na audiência que tiver lugar no tribunal de recurso, sobre um funcionário de justiça;
b) Julgar inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental, a norma constante do nº 5 do artº 113º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a decisão condenatória proferida por um tribunal de recurso pode ser notificada apenas ao defensor que ali foi nomeado para substituir o primitivo defensor que, embora convocado, faltou à audiência, n qual também não esteve presente o arguido em virtude de não ter sido, nem dever ser, para ela convocado;
c) Em consequência, determinar a reforma do acórdão impugnado de harmonia com o juízo de inconstitucionalidade agora efectuado. Lisboa, 2 de Fevereiro de 1999 Bravo Serra (com declaração de voto quanto à decisão constante da alínea b) DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido de a norma constante do nº 5 do artº 113º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a notificação da decisão condenatória tomada pelo tribunal de recurso poder ser feita unicamente ao defensor do arguido (não interessando que se trate do primitivo defensor - nomeado ou constituído - ou de um defensor unicamente nomeado para a audiência que teve lugar no tribunal de recurso), assim não tendo de lhe ser notificada pessoalmente, era inconstitucional, por violação das garantias de defesa postuladas pelo nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental.
Assim, o juízo de inconstitucionalidade que defendo, é, sobremaneira, mais amplo do que aquele levado a efeito no acórdão a que a presente declaração se encontra apendiculada.
Brevitatis causa, fundamento um tal juízo, logo em primeira via, numa óptica de harmonia com a qual uma decisão tomada por um tribunal superior em via de recurso, não se deverá distinguir daqueloutra tomada em primeira instância, para os efeitos da sua comunicação pessoal ao arguido, a fim de lhe possibilitar saber dos motivos da condenação e, eventualmente, reagir, se possível (pense-se, exemplificativamente, nos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa e de revisão), contra essa decisão.
Só desta arte se poderá, na minha perspectiva, falar numa cabal realização dos escopos reactivos e garantísticos do arguido implicados por uma concretização de todas as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar.
Por outro lado, não obstante reconheça que sobre o primitivo defensor (constituído ou nomeado) impendem deveres funcionais e deontológicos que o devem levar a comunicar ao arguido o resultado do decidido no tribunal de recurso (e, maxime, se se postar uma situação de decisão condenatória que se seguiu a uma decisão absolutória prolatada em 1ª instância), não posso deixar de ponderar que, pesem embora esses deveres, se a comunicação não tiver lugar, objectivamente ficam postergados os direitos de defesa do mesmo arguido, o qual, numa tal situação, ficou no total desconhecimento dos motivos fácticos ou jurídicos que o levaram a ser considerado como agente de um ilícito criminal e da reacção, a nível de imposição de pena, que lhe foi imposta pelo Estado, ao exercitar o seu jus puniendi.
Ora, perante essa e para essa eventualidade, creio que, em nome das garantias de defesa constitucionalmente consagradas, a lei ordinária deve prescrever (ou nesse sentido deve ser interpretada a norma, já existente, ora em apreciação) a notificação pessoal do arguido da decisão condenatória tomada no tribunal de recurso.
E daí o mais amplo juízo de inconstitucionalidade, que defendo que deveria ter sido efectuado quanto à norma resultante da interpretação levada a cabo no aresto impugnado.
José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida (vencido quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto junta)
Declaração de voto
Votei vencido quanto à alínea a) da decisão, por entender que a norma que decorre das disposições combinadas dos artigos 62º, nº 2, e 67º, nº 1, do Código de Processo Penal (versão anterior à Lei nº 59/98, de 25 de Agosto), na medida em que permite que seja nomeado um funcionário judicial como defensor do arguido, viola o preceituado conjugadamente nos artigos 20º, nº 2, e 32º, nºs 1 e 3, da Constituição. Tal como se afirmou no Acórdão nº 34/96 (Diário da República, II Série, de 29 de Abril de 1996), «constitui garantia de defesa do arguido (artigo 32º, nº1, da Constituição) ser patrocinado por um defensor que possua, sempre que possível, conhecimentos jurídicos e dê garantias de isenção». Ora, em meu entender, daqui resulta que só em casos excepcionais e urgentes – e para actos em que seja de todo imprevisível a suscitação de questões de direito – se possa admitir que a nomeação de defensor ao arguido recaia em quem não seja advogado: só estes, na verdade, sendo possuidores de conhecimentos jurídicos, se encontram submetidos a um estatuto profissional que garante a respectiva isenção na prática de actos forenses. No caso dos autos, a nomeação de defensor para a audiência em tribunal de recurso, onde se produzem alegações orais (cfr. artigo 423º do CPP), inscreve-se num quadro em que a nomeação do defensor não pode recair senão em advogado. E, de todo o modo, nunca poderia recair em funcionário judicial, tendo em conta que a estes funcionários – independentemente do respectivo estatuto funcional e disciplinar – não pode ser reconhecida a indispensável imagem de independência e isenção, dada a sua pertença ao próprio aparelho judiciário. A exigência constitucional de nomeação de um defensor ao arguido não se pode satisfazer com uma mera formalidade que mais não constitui que simples simulacro, antes impõe que se encontrem soluções materialmente eficazes. Não cabe, obviamente, ao Tribunal Constitucional indicar ao legislador os procedimentos adequados para o efeito, os quais seguramente não poderão deixar de passar por uma intervenção da Ordem dos Advogados; mas cabe-lhe, sem margem para dúvidas, censurar os procedimentos constitucionalmente inadequados e ineficientes, como sucede no caso sub judicio.
Maria dos Prazeres Beleza (vencida, quanto à alínea a) da decisão, no essencial, pelos motivos da declaração de voto do Senhor Conselheiro Luís Nunes de Almeida; quanto à alínea b), também, pelo essencial, subscrevo a declaração do Senhor Conselheiro Bravo Serra). José Manuel Cardoso da Costa (vencido quanto à alínea a) da decisão, pelo essencial das razões depreendidas na declaração de voto do Exmº Cons. Luís Nunes de Almeida)