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Proc. 605/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. A..., identificada nos autos, demandou perante o Tribunal do Trabalho de Lisboa a entidade patronal T..., Lda., pedindo que fosse julgado ilícito o despedimento da autora, por inexistência de processo disciplinar ou, pelo menos, por nulidade do processo. Na mesma acção, a autora formulou ainda, entre outros, o pedido de condenação da ré a reconhecer como válido e subsistente o contrato de trabalho celebrado com a autora e, consequentemente, a reintegrar a autora no seu posto de trabalho, na categoria e com a remuneração a que teria direito à data da reintegração, caso não tivesse ocorrido o despedimento.
2. Inconformada com a decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa que julgou a acção improcedente, A.... interpôs recurso de apelação. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5 de Novembro de 1997, fazendo aplicação do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, confirmou o julgado da 1ª instância, sem votos de vencido, quer quanto à fundamentação, quer quanto
à decisão, e, remetendo para a fundamentação da decisão impugnada, negou provimento ao recurso. A... arguiu, junto do mesmo Tribunal da Relação, a nulidade do acórdão, por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia, e suscitou a inconstitucionalidade material da norma do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, por violação do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. Por acórdão de 18 de Março de 1998, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a sua decisão inicial.
3. Dos acórdãos da Relação, pretendeu A... interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro (alterada pelas Leis nºs 143/85, de 26 de Novembro, nº 85/89, de 7 de Setembro, nº 88/95, de 1 de Setembro, e nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, que considera contrária ao disposto no nº 1 do artigo
20º da Constituição da República Portuguesa.
4. O Desembargador Relator da Relação de Lisboa indeferiu o requerimento com a seguinte fundamentação:
'1) A pretendida inconstitucionalidade não foi arguida durante a tramitação regular do presente processo, mas tão só na reclamação de fls. 150, por invocada nulidade de Acórdão lavrado a fls. 144 e seguintes.
2) Não foi aplicada norma já declarada inconstitucional, nem foi aplicada norma jurídica cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo.
3) O que, em ambos os casos, constitui jurisprudência assente do Tribunal Constitucional.
4) Pretendendo-se, em nosso entender, tão só, com o interposto recurso para o Tribunal Constitucional, produzir uma alteração do decidido no Acórdão lavrado a fls. 144 a 147.'
5. Ao abrigo do disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei 28/82, vem a recorrente reclamar para o Tribunal Constitucional do despacho do Desembargador Relator que lhe indeferiu o requerimento de interposição do recurso para este Tribunal. Justificou deste modo a reclamação:
'O recurso interposto para o Tribunal Constitucional deve, na verdade, ser admitido. Com efeito, a decisão de o não admitir releva de uma deficiente compreensão do significado e alcance da jurisprudência do Tribunal Constitucional a que faz apelo, acompanhada de arbitrária manipulação de conceitos.
[...] E a jurisprudência do Tribunal Constitucional não veda o recurso de constitucionalidade aos casos em que a questão seja suscitada durante a misteriosa 'tramitação regular'. O que essa jurisprudência veda é o recurso quando a questão da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade não haja sido suscitada em momento processualmente oportuno, ou seja, em momento em que ainda fosse possível ao tribunal recorrido pronunciar-se utilmente sobre essa questão. Quer isto dizer, afinal e tão somente, que não é legalmente viável suscitar a questão da constitucionalidade das normas em momento em que o Tribunal não possua poder jurisdicional sobre a questão subsumida à norma controvertida, ou por o já ter perdido ou por nunca o ter tido ou por a norma não ter sido aplicada. Mas, no caso em apreço, é evidente que a Relação detinha poder jurisdicional para se pronunciar sobre a constitucionalidade que lhe foi suscitada e pronunciou-se. Aliás, a questão foi suscitada no último momento e pelo único meio legalmente possível. É que, atendendo à natureza da questão – permissão de fundamentação por remissão no acórdão da Relação – ela só poderia colocar-se quando o foi, ou seja, após a prolação do acórdão. E esta orientação, ela sim, corresponde à jurisprudência assente do Tribunal Constitucional.'
6. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da admissibilidade do recurso, considerando tempestiva a suscitação da questão de inconstitucionalidade, com fundamento em que 'não era previsível para a parte se a Relação iria adoptar, na decisão do recurso, a forma «normal» ou «sumária» de julgamento'.
II
7. O recurso de constitucionalidade que a recorrente pretende interpor tem por fundamento a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro. São pressupostos deste recurso: ter a decisão recorrida aplicado a norma cuja inconstitucionalidade se invoca; ter essa inconstitucionalidade sido suscitada durante o processo.
7.1. O primeiro pressuposto está indubitavelmente verificado, já que o artigo
713º, nº 5, do Código de Processo Civil serviu de base aos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de que a reclamante pretende interpor recurso de constitucionalidade. A aplicação da norma em causa justificou a modalidade de fundamentação adoptada, por remissão para a sentença do Tribunal do Trabalho de Lisboa, de que fora interposto o recurso de apelação.
7.2. Quanto ao segundo pressuposto, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido a exigência de 'suscitar a questão de inconstitucionalidade durante o processo' não num sentido meramente formal, mas num sentido funcional, de tal modo que a arguição de inconstitucionalidade deve ocorrer num momento em que o tribunal recorrido possa ainda conhecer da questão:
'Deve, portanto, a questão de inconstitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal a quo sobre a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso' (cfr. acórdão nº 232/94, in Diário da República , II, nº
193, de 22 de Agosto de 1994, p. 8587 ss).
Esta orientação interpretativa é a que melhor quadra com os objectivos constitucionais subjacentes à instituição de um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade das normas. Como se afirmou no acórdão nº 90/85
(in Diário da República, II, nº 157, de 11 de Julho de 1985, p. 6441 ss),
'Dir-se-á que ela decorre da própria natureza de que se reveste a intervenção do Tribunal Constitucional no controle concreto da constitucionalidade: com efeito, tratando-se de uma intervenção em via de recurso, não faria sentido que o Tribunal pudesse conhecer de tal questão ainda quando suscitada apenas em momento em que o tribunal a quo já não podia pronunciar-se sobre ela, por esgotado o seu poder jurisdicional para tanto. Permitir isso equivaleria, no fundo, a transformar o recurso para o Tribunal Constitucional num mero expediente processual dilatório – o que, manifestamente, a Constituição não desejou. (Algum desconto a esta ideia só será de admitir nalguma situação excepcional, e certamente anómala, em que o interessado não disponha de oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a decisão e, por conseguinte, de esgotado aquele poder: aí, porém, o problema que em boa verdade se põe é o da possibilidade e legitimidade da dispensa pura e simples, nesses casos, do requisito da invocação «prévia» da inconstitucionalidade).'
8. No caso dos autos, a questão de inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento que arguiu um vício do acórdão que decidiu o recurso de apelação
– uma alegada nulidade, por falta de fundamentação, a coberto de uma disposição do Código de Processo Civil (artigo 713º, nº 5). A reclamante não poderia ter suscitado tal questão em momento anterior. De resto, o Tribunal da Relação de Lisboa teve ainda oportunidade de se pronunciar, no acórdão de 18 de Março de
1998 (fls. 176 e seguintes), sobre a alegada inconstitucionalidade, já que esta se ligava incindivelmente a uma questão processual de nulidade do acórdão. A questão de inconstitucionalidade foi suscitada 'de forma clara e perceptível' e foram respeitados o tempo e o modo processualmente adequados (cfr. acórdão nº
155/95, in Diário da República, II, nº 140, de 20 de Junho de 1995, p. 6751 ss).
Tanto basta para concluir que se encontram preenchidos os pressupostos processuais para a admissibilidade do recurso de constitucionalidade a que se refere a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide atender a presente reclamação, devendo o despacho reclamado ser substituído por outro que admita o recurso de constitucionalidade.
Lisboa, 16 de Dezembro de 1998 Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa