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Proc. nº 706/97
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. Por sentença do 1º Tribunal Militar Territorial do Porto, J... e JF... foram condenados pela prática de um crime de abuso de autoridade, previsto e punido pelo artigo 95º, com referência ao artigo 94º, alínea e), do Código de Justiça Militar, nas penas respectivas de oito e seis meses de presídio militar. Aquela decisão deu como provado que na «noite de 26/27 de Abril de 1993, antes da meia noite, no interior do posto da GNR de Barcelos, quando submetiam o queixoso, F..., [...] a um teste de alcoolémia, o réu J... desferiu-lhe duas bastonadas nas nádegas e o JF..., também com o mesmo fim, puxou-lhe pela orelha esquerda». E, ainda, que daquelas «agressões não resultou qualquer dia de doença ou incapacidade para o trabalho, nem qualquer deformidade». Inconformados, recorreram para o Supremo Tribunal Militar. Nas suas alegações, os recorrentes entenderam, nomeadamente, que o crime se encontrava amnistiado, nos termos do disposto no artigo 1º, alínea a), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, ou, pelo menos, sempre estariam as penas aplicadas perdoadas, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 8º, com referência ao nº 1, alínea d), do mesmo artigo 8º, da Lei nº 15/94. Na sua promoção, o Promotor de Justiça junto daquele Supremo Tribunal entendeu que a pretensão dos recorrentes devia ser julgada improcedente, por lhes ser aplicável a exclusão prevista no artigo 9º, nº 2, alínea b), da Lei nº 15/94. E suscitou desde logo a inconstitucionalidade dessa norma, «caso se entenda que os réus devem beneficiar da amnistia ou perdão, por não lhes ser aplicável o constante do artigo 9º, nº 2, b), da Lei 15/94, de 11 de Maio [...], interpretada no sentido de não abranger os elementos da GNR que, no exercício de funções, praticam crimes (dolosos ou negligentes), violadores de direitos liberdades ou garantias pessoais dos cidadãos, previstos no Título II, Capítulo I, da Constituição da República, por violação do artigo 25º, nº 1, da CRP». Para tanto, considerou, nomeadamente, que a expressão contida na alínea b) do nº 2 do artigo 9º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, «só pode a lei ter querido significar, que são excluídos do benefício das amnistia e do perdão, os membros da GNR que, no exercício das suas funções, pratiquem crime (doloso ou negligente) violador de direitos, liberdades ou garantias pessoais constantes da Constituição», e que, «no presente caso, provou-se que o queixoso, [...], foi agredido pelos réus no corpo, tendo sido violado o seu direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 25º, da CRP».
2. Por acórdão de 2 de Outubro de 1997, o Supremo Tribunal Militar, sustentando embora «que os militares da G.N.R. são membros de um corpo especial de tropas, que é também uma força policial e de segurança, pelo que a exclusão prevista na alínea b) mencionada lhes é aplicável relativamente aos crimes que constituam violações de direitos, liberdades ou garantias pessoais dos cidadãos», entendeu, contudo, que «não é aplicável aos recorrentes a exclusão prevista no artº 9º, nº
2, alínea b) da aludida Lei nº 15/94, pelo que eles beneficiam do perdão previsto no artº 8º, nºs 1, alínea d) e 2 da mesma lei». Consequentemente, concedeu provimento parcial ao recurso, declarando perdoada a totalidade da pena aplicada aos recorrentes. Para tanto, considerou o Supremo Tribunal Militar: Ora, sendo que dos direitos pessoais apenas podem ser violados pelo crime de abuso de autoridade, por rigor ilegítimo, cometido através de violência física, o direito à vida e o direito à integridade física (a este último se refere o Exmº Promotor de Justiça), o certo é que nenhum deles foi efectivamente violado pela conduta dos recorrentes. De facto, nem a vida nem a integridade física do ofendido foram lesadas, pois dos actos praticados pelos recorrentes não resultaram quaisquer lesões na pessoa do ofendido.
3. Deste acórdão pretendeu o Promotor de Justiça interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao «abrigo do disposto no artigo 280º, nº 1, b) da Constituição da República, conjugado com os artigos 285º do Código da Justiça Militar, 70º, nº 1, b) e 72º, nº 2, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei 85/89, de 7 de Setembro», para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 9º, nº 2, alínea b), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, «na interpretação que lhe foi dada, quanto a não abranger os recorrentes, elementos da GNR, que no exercício das suas funções praticaram crime constante do CJM, violador do direito à integridade pessoal, previsto no Título II, Capítulo I, da CRP (direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos)». Todavia, por despacho de 13 de Outubro de 1997, o relator não admitiu o pretendido recurso de constitucionalidade, com os seguintes fundamentos:
[...] o acórdão deste Supremo Tribunal deu à norma em causa a mesma interpretação do Exmº Promotor de Justiça e não a aplicou com a interpretação por ele tida por inconstitucional.
[...]
É certo que o mencionado acórdão veio a aplicar o perdão previsto na Lei nº
15/94 aos réus, mas fê-lo por ter decidido que o crime por eles cometido não violava direitos ou garantias pessoais dos cidadãos. E esta decisão, embora dela discorde o ilustre Promotor, nada tem a ver com a matéria de inconstitucionalidade suscitada, maxime com a questão posta de os elementos da G.N.R. estarem ou não abrangidos pela previsão do artº 9º, nº 2, alínea b) da Lei nº 15/94, única suscitada pelo requerente e na qual coincide o entendimento deste com o do Tribunal.
É desse despacho que vem interposta a presente reclamação, considerando o Promotor de Justiça que «a interpretação imprevisível dada pelo Supremo Tribunal Militar à conduta dos réus, em não ter a integridade física do ofendido sido violada, por 'dos actos praticados pelos recorrentes não resultarem quaisquer lesões na pessoa do ofendido', é manifestamente violadora da norma constitucional atrás referida [artigo 25º, nº 1, da Constituição], pois consiste o direito à integridade pessoal [...], primeiro que tudo, num direito a não ser agredido». Considerou, ainda, o seguinte: Também é certo que, em sentido funcional, a inesperada interpretação feita pelo Tribunal, permitindo no caso em exame o perdão, e criando aparentemente condições para não se dever conhecer do recurso no Tribunal Constitucional, por a decisão recorrida não ter aplicado norma arguida de inconstitucionalidade no processo (pois como se menciona no douto despacho de indeferimento na única suscitada há coincidência do entendimento do Tribunal com o Promotor), conduziu a que no douto acórdão se efectuasse implícita aplicação de norma no sentido em que foi suscitada a inconstitucionalidade no processo, não afastando o que verdadeiramente está em causa, ou seja, a arguida inconstitucionalidade, face ao direito constitucionalmente protegido, que a conduta delituosa dos réus violou, e como tal, os exclui do perdão decretado pela Lei 15/94, de 11 de Maio, quando no artigo 9º, nº 2, b), exceptua os elementos da GNR, relativamente aos crimes que constituam violação de direitos liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, como sucedeu no presente processo.
Por acórdão, em conferência, de 30 de Outubro de 1997, o Supremo Tribunal Militar manteve o despacho reclamado.
4. Já neste Tribunal, o Ministério Público, no seu parecer, entendeu dever conceder-se provimento à reclamação, nos termos seguintes: A norma do caso foi aplicada com o sentido de que beneficiam do perdão decretado na Lei nº 15/94 os membros das forças policiais e de segurança relativamente à prática, no exercício das suas funções, de delitos que constituam violação de direitos ou garantias pessoais dos cidadãos, quando dos actos de agressão praticados não resultem qualquer lesões na pessoa do ofendido. Mas, sendo assim, e porque é pacífico na doutrina e na jurisprudência que a existência de ofensa corporal não depende da produção de qualquer lesão externa, haverá de concluir-se que o recorrente, ora reclamante, foi confrontado com uma interpretação normativa de todo imprevista e inesperada. Está-se, pois, perante uma das situações excepcionais ou anómalas que justificam a não exigência da invocação antecipada da inconstitu-cionalidade perante o tribunal a quo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
5. O pretendido recurso de constitucionalidade só pode ter por objecto a apreciação da constitucionalidade de norma ou normas jurídicas que tenham sido concretamente aplicadas na decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade o recorrente haja suscitado durante o processo. Como flui do disposto no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso de constitucionalidade ali previsto há-de interpor-se de decisões judiciais que apliquem norma jurídica cuja inconstitucionalidade o recorrente haja suscitado durante o processo. Pois bem: a questão de inconstitucionalidade foi suscitada, in casu, em termos de abranger a qualificação do crime, e não apenas a qualidade dos militares; ou seja, abrangeu a interpretação com que a norma foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida. É o que expressamente resulta do parecer do Promotor de Justiça, quando refere:
- ... tendo sido violado o seu direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 25º da CRP, o qual se encontra no Titulo II, Capítulo I da Constituição, cuja epígrafe é direitos liberdades e garantias pessoais.
- ... argui-se a inconstitucionalidade desta norma, pois, a ser assim, foi interpretada no sentido de não abranger o crime praticado pelos recorrentes, o que viola o artigo 25º, nº 1, da CRP. Ora, o que no acórdão do Supremo Tribunal Militar se entendeu foi que «nem a vida nem a integridade física do ofendido foram lesadas, pois dos actos praticados pelos recorrentes não resultaram quaisquer lesões na pessoa do ofendido», ou seja, como se diz no despacho de indeferimento do pretendido recurso de constitucionalidade, «que o crime por eles [membros da GNR] cometido não violava direitos ou garantias pessoais dos cidadãos», em virtude de não ter causado lesões visíveis na pessoa do ofendido. Não se pode, assim, deixar de entender que esta interpretação se encontra natural e necessariamente abrangida na questão de inconstitucionalidade atempada e expressamente suscitada pelo Promotor de Justiça. Desnecessário se torna, pois, averiguar se a norma em causa foi aplicada com interpretação imprevisível que tornasse inexigível a suscitação da respectiva inconstitucionalidade durante o processo, uma vez que se considera que tal suscitação foi efectuada de forma adequada perante o Supremo Tribunal Militar.
III – DECISÃO
7. Nestes termos, decide-se deferir a presente reclamação.
Lisboa, 29 de Setembro de 1998 Luis Nunes de Almeida Bravo Serra José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Messias Bento Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa