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Proc. nº. 775/97
1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. M... requereu inventário facultativo para partilha dos bens que integram as heranças de seus pais no Tribunal Judicial da Comarca de Paredes de Coura.
Na conferência de interessados foi requerida a constituição em regime de propriedade horizontal de um imóvel integrado na herança.
Por despacho judicial foi ordenado, à cabeça-de-casal, que comprovasse o cumprimento de dois preceitos legais, um do Código de Notariado
[artigo 74º, alínea h)] e outro do Código da Contribuição Predial (artigo 214º); deste despacho a ora recorrente recorreu para o Tribunal da Relação do Porto.
O recurso foi admitido como agravo, a subir imediatamente nos autos e com efeito suspensivo, por se ter entendido que a sua retenção o tornaria absolutamente inútil.
A Relação do Porto concedeu provimento parcial ao recurso, nomeadamente na parte alusiva ao citado preceito do Código de Notariado, mas a ora recorrente mantendo-se inconformada recorreu do acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça.
O Supremo Tribunal de Justiça não tomou conhecimento do recurso e determinou a baixa do processo ao tribunal de 1ª instância para os demais termos, por entender, ponderadas as especificidades do regime dos recursos em processo de inventário, que o agravo 'não devia ter subido imediatamente, uma vez que não é contemplado no artigo 734º nº. 2 do CPC, que prescreve: 'sobem também imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis', e que tal inutilidade só é absoluta 'quando o resultado do recurso, seja ele qual fôr, devido à retenção, já não pode ter qualquer eficácia dentro do processo, mas não aquele cujo processado possibilite a anulação de alguns actos, incluindo o do julgamento, por ser isso um risco próprio ou normal dos recursos diferidos'.
A ora recorrente requereu, então, a aclaração e arguiu nulidades do acórdão; desatendida a reclamação, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional.
O recurso não foi admitido, mas obteve deferimento a reclamação do correspondente despacho, por acórdão deste Tribunal nº. 644/97, de 29.10.1997.
Admitido o recurso por despacho de 4.12.1997 e remetidos os autos a este Tribunal, a recorrente apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
'1ª - O disposto no artº. 734º, nº. 2, do CPC, é inconstitucional (por violação dos princípios do Estado de Direito e do Acesso à Justiça e do disposto no artº.
202º, nº. 2 (artº. 205º, nº. 2, na anterior redacção) da Lei Fundamental) enquanto interpretado no sentido de admitir que, na formulação do juízo de inutilidade absoluta decorrente da retenção, se despreze que esta possa, em concreto, conduzir à frustração (irremediável) dos objectivos prosseguidos pelas partes na causa.
2ª - O disposto no artº. 668º, nº. 1, al. b, do CPC é inconstitucional (por violação do princípio Constitucional do Estado de Direito (artº. 2º) e do disposto no artº. 205º, nº. 1, (na anterior redacção artº. 208º, nº. 1) da Lei Fundamental) quando o mesmo seja entendido no sentido de que o dever de especificação dos fundamentos de facto e de direito de uma decisão judicial se dá por cumprido ainda que se trate de uma fundamentação de tal modo deficiente, errada ou incompleta que nem a um declaratário com conhecimentos jurídicos bastantes consiga elucidar ou esclarecer dos motivos ou fundamentos da pronúncia, por lhe faltar um silogismo auto-suficiente'.
Cumpre decidir.
2. Não pode o Tribunal conhecer da questão da constitucionalidade da norma contida no artigo 668º nº. 1 alínea b) do CPC tal como ela é sintetizada na conclusão 2ª supra transcrita.
Na verdade, tal norma não foi interpretada no acórdão recorrido nos termos alegados pela recorrente, o que vale por dizer que a norma ( na suposta interpretação atribuída pela recorrente àquele aresto ) não foi aplicada no mesmo acórdão.
Sucedeu foi que a recorrente reputou o acórdão de fls. 97 e segs. carecido de fundamentação suficiente, arguindo consequentemente a sua nulidade.
E tal arguição não mereceu atendimento no acórdão de fls. 126/127, sem que nele se tenha feito apelo a uma interpretação do artigo 668º nº. 1 alínea b) do CPC no sentido de que a especificação dos fundamentos de facto e de direito é dever que se dá por cumprido com uma fundamentação inapreensível por um declaratário com conhecimentos jurídicos bastantes.
Não aplicada no acórdão recorrido a norma do artigo 668º nº. 1 alínea b) do CPC com o sentido alegado pela recorrente, falece, em suma, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei 28/82.
A esta decisão não obsta – como, aliás, bem reconhece a recorrente – o acórdão deste tribunal de fls. 167 e segs. que apenas se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso relativamente à norma do artigo 734º nº. 2 do CPC, não fazendo caso julgado sobre a questão agora resolvida.
3. Como se disse no acórdão proferido por este Tribunal em sede de reclamação, com força de caso julgado, que deve aqui ser acatado, a questão a resolver no presente recurso consiste em 'sindicar uma interpretação do nº. 2 do artigo
734º, que é uniforme na nossa jurisprudência, segundo a qual 'a inutilidade do agravo, resultante da retenção tem de ter carácter absoluto, como diz a lei, isto é, apenas quando sucede que a eventual retenção teria um resultado irreversível quanto ao recurso, não bastando uma mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual (por exemplo, a repetição de certos actos processuais) (Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª ed., Lisboa 1994, p. 236 e nota 2; v. também João António Lopes Cardoso, ob. e loc. cit. nota 3542).'
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, entendeu que a subida diferida do agravo não o tornava absolutamente inútil, interpretando e aplicando nesse sentido a norma constante do artigo 734º, nº. 2 do CPC. E diga-se, desde já, que não cabe a este Tribunal, limitado nos seus poderes de cognição à resolução da questão de constitucionalidade, apreciar da justeza da aplicação do direito ordinário ao caso concreto; não lhe compete, por isso, decidir se, no caso, a retenção do agravo o torna absolutamente inútil em contrário do que julgou o STJ.
Vejamos, pois, qual o teor do citado normativo, com a redacção dada pelos Decretos-Lei nºs. 329-A/95, de 12.12 e 180/96, de 25.09:
'Artigo 734º Agravos que sobem imediatamente
1. Sobem imediatamente os agravos interpostos: a. Da decisão que ponha termo ao processo; b. Do despacho pelo qual o juiz se declare impedido ou indefira o impedimento oposto por alguma das partes; c. Do despacho que aprecie a competência absoluta do tribunal; d. Dos despachos proferidos depois da decisão final.
1. Sobem também imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis'.
A recorrente questiona a constitucionalidade do regime/momento da subida do agravo e da dependência da condição da absoluta inutilidade da retenção para a subida imediata, por entender que, no caso em apreço, a verificação de tal condição viola os princípios do Estado de Direito e o Acesso à Justiça. Sobre o direito de acesso à justiça tem o Tribunal Constitucional firmado uma extensa jurisprudência, interpretando-o no sentindo de que ele é ' um direito à solução dos conflitos por banda de um orgão independente e imparcial face ao que concerne à apresentação das respectivas perspectivas, não decorrendo desse direito (nomeadamente, no que ora releva, se em causa estiver a litigância civil obrigacional) o asseguramento às partes da garantia de recurso das decisões que lhes sejam desfavoráveis (cf., por todos, o Acórdão nº. 210/92, publicado na 2ª série do Diário da República, de 12 de Setembro de 1992)'. (Acórdão nº. 208/93 in DR, II Série, de 28/5/93)
A este propósito, lê-se também no Acórdão nº. 501/96, in DR, II Série, de 3.07:
'O Tribunal Constitucional tem entendido que a garantia judiciária (...) engloba o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais (Acórdão nº. 287/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., 1990, pp. 159 e segs.; identicamente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. Cit., p. 162). E este direito só pode ser exercido mediante o recurso para (outros) tribunais. Por outro lado, a expressa previsão da existência de tribunais de 1ª instância e de recurso também fornece um argumento a favor da dignidade constitucional do direito de recurso (assim, Acórdão nº. 287/90, cit., e Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, 2ª ed., 1992, p. 100).
Todavia, não se pode concluir que haja, na ordem jurídica portuguesa, um ilimitado direito de recurso, o que implicaria, por exemplo, a inconstitucionalidade do instituto das alçadas judiciais. O Tribunal Constitucional tem entendido – tal como já sustentara a Comissão Constitucional
– que o direito de recurso não é absoluto ou irrestringível (Acórdãos nºs. 31/87 e 65/88, in Diário da República, 2ª série, de 1 de Abril de 1987 e 20 de Agosto de 1988, respectivamente, e parecer nº. 9/82, in Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol., pp. 29 e segs.).
(...)
Consequentemente, apenas está consagrado – em matérias não penais – um genérico direito de recurso, ou, noutra linguagem, a um duplo grau de jurisdição. O seu conteúdo pode ser delimitado pelo legislador, que pode racionalizar este instituto processual, reservando o exercício do direito aos casos com maior dignidade.'
Idêntico entendimento pode ser colhido, entre outros, no Acórdão nº. 305/94, in DR, II Série, de 27.08, reconhecendo-se ampla margem de manobra ao legislador ordinário para conformar em concreto o direito ao recurso.
Ora, no caso em apreço, não existe qualquer restrição ao direito de recurso. À recorrente está amplamente reconhecido o direito de recurso, que ela pôde efectivamente exercer.
O que a norma do artigo 734º, nº. 2 do CPC prevê é apenas um regime de subida – a subida diferida, por não se verificar a absoluta inutilidade, excepção que permite a subida imediata do recurso – ou seja, o que está em causa é o diferimento da subida de alguns recursos, diferimento que é ditado por importantes razões de celeridade e economia processuais.
A subida diferida do recurso impõe-se nos casos em que, apesar desse mesmo regime de subida, o recorrente pode ainda – em sede de recurso – obter a adequada tutela da sua pretensão processual.
O mesmo é dizer que, embora a subida do recurso seja diferida, a recorrente pode ainda vir a obter os efeitos pretendidos mediante a revogação do despacho agravado, mesmo que essa revogação implique a anulação/reformulação dos actos praticados em obediência ao despacho revogado pela decisão do tribunal de recurso.
Disse-se especificamente sobre o artigo 734º nº. 2 do CPC no já citado Acórdão nº. 208/93, a que aqui se adere:
'(...) como só se permite a subida imediata nos casos em que, de todo, não seja possível ao agravado alcançar aquela eficácia, então se mesmo sem essa subida, ainda pode o agravado atingir os efeitos desejados, não está ele, pela subida diferida, despojado dos meios processuais capazes de fazer valer a sua pretensão
(...)'
Ora, por não existir qualquer restrição ao direito de recurso da recorrente e por esta poder ainda obter, com o regime de subida diferida, a satisfação do seu interesse processual – confirmando-se, assim, a utilidade do recurso – não se viola a garantia de acesso à justiça e aos tribunais, nem o princípio do Estado de Direito.
Pelo exposto, a absoluta inutilidade dos agravos que aparece como condição para a sua subida imediata, constante do artigo 734º, nº. 2 do Código de Processo Civil, em nada contende com a garantia de acesso à justiça e aos tribunais, nem com o princípio do Estado de Direito.
4. Decisão:
Nestes termos, decide-se: a. não conhecer do recurso quanto à norma do artigo 668º nº. 1 al. b) do CPC; b. negar provimento ao recurso na parte restante.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1998 Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida