Imprimir acórdão
Proc. n.º 829/96
1ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório:
1. M. Hr. requereu, na Repartição de Finanças do 12º Bairro Fiscal de Lisboa e ao abrigo do disposto nos Decretos-
-Leis n.ºs 330/81, de 4 de Dezembro, 189/82, de 17 de Maio e 392/82, de 18 de Setembro, a avaliação fiscal extraordinária da fracção autónoma X, correspondente à loja do n.º ..., do prédio sito na Praceta ..., números ..., em Lisboa, da qual é arrendatária a sociedade por quotas R...-Comércio de Automóveis,Lda., que vinha pagando a renda mensal de 115 000$00, perfazendo anualmente o montante global de 1 380 000$00. A Comissão de Avaliação - constituída nos termos do artigo 5º do Decreto n.º
37021, de 21 de Agosto de 1948 – por meio de deliberação de 10 de Dezembro de
1990, fixou em 21 600 000$00 a renda anual da referida fracção autónoma.
2. Informada, interpôs a ora recorrente recurso para o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, o qual, por sentença de 15 de Janeiro de 1992, homologou o laudo dos membros da Comissão de Avaliação, declarando-se fixada a respectiva renda anual em 21 600 000$00, o que corresponde a uma renda mensal de 1 800 000$00. Desta decisão, interpôs a recorrente recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando nas suas alegações a questão de constitucionalidade da norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021 e concluindo:
'a) a proibição de recurso, prevista no § único do artº l5º do Decreto 37.021 de
21.8.48, abrange apenas os aspectos administrativos do recurso de avaliação interposto da Comissão de Avaliação para o Juiz da comarca; b) se se entender que esta proibição de recurso abrange também os aspectos jurisdicionais do recurso de avaliação, então, o preceito desse § único será inconstitucional quer sob o ponto de vista formal quer sob o ponto de vista material; c) o DL 330/81 de 4.12 criou dois regimes de ajustamento de rendas - uma actualização anual para os contratos nascidos após a data da sua entrada em vigor (artº lº); uma avaliação fiscal extraordinária para os contratos já existentes à data da entrada em vigor do diploma (artº 4º, nº 2); d) o Despacho Normativo 75/82, de 11.5.82 confirma este entendimento; e) o DL 189/82, de 17.5, ao interpretar autenticamente o DL 330/81, não modificou esta interpretação, i.e., não afastou a aplicabilidade do artº 19 do DL 330/81 aos contratos nascidos após a entrada em vigor do diploma, nem afastou a aplicabilidade do artº 4º, nº 2 aos contratos existentes à data da entrada em vigor do diploma; f) o DL 189/82, veio apenas esclarecer que o regime atrás referido se aplicava não apenas aos arrendamentos comerciais, industriais e das profissões liberais mas também a todos os outros com fins diferentes de habitação; g) quando, em 5.4.82, a apelante e o seu senhorio negociaram e assinaram o contrato de arrendamento junto aos autos, sabiam ambos, à partida, que esse contrato só era passível duma actualização anual, após o período consensual de congelamento da renda, e nunca duma avaliação fiscal extraordinária; h) a sentença devia ter anulado a avaliação fiscal extraordinária por esta contrariar o disposto no artº 4º do DL 330/81 de 4.12; i) a sentença fez errada interpretação e aplicação deste diploma, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que declare a nulidade da avaliação fiscal extraordinária com todos os efeitos daí decorrentes.'
3. Por Acórdão de 11 de Julho de 1996, o Tribunal da Relação de Lisboa, considerando não ser o recurso legalmente admissível, não tomou conhecimento do seu objecto. Para isso, fundamentou-se nos seguintes termos:
'E, nos termos do § único do art. 15º deste decreto, aditado pelo Dec. Reg. nº
1/86, de tal decisão não há recurso. E, ao contrário do que pretende a apelante nas suas alegações, em antecipação a este mais que provável entendimento, de nenhuma forma o mesmo viola os princípios constitucionais do não retrocesso e da igualdade. O primeiro porque, como já vimos, o dito § único não veio retirar nada que existisse antes, uma vez que a impossibilidade de apelação para a Relação sempre esteve consagrada no C.P.C.; e o segundo, porque as situações que a recorrente pretende qualificar como iguais não o são realmente, porquanto não há noutros processos situações semelhantes à da não admissibilidade legal da avaliação fiscal extraordinária de rendas e, se as houvesse, também destas não seria antes admissível recurso para a Relação ou Supremo, por força do disposto no artº 800º do C.P.C.. Por outro lado, mesmo sob o ponto de vista formal, o § único do artº l5º do Dec.
37.021, aditado pelo Dec. Reg. nº 1/86, está conforme às normas constitucionais, por ter sido introduzido ao abrigo da Lei nº 2.030, que, no seu art. 57º, nº l estabelece que as normas reguladoras da avaliação de prédios urbanos e dos respectivos recursos serão estabelecidas por decreto dos Ministérios da Justiça e das Finanças. Este decreto veio a ser o Dec. 37.021, que o Dec. Reg. nº 1/86 se limitou a alterar, o qual foi elaborado pelo Governo no uso da competência administrativa atribuída pela al. c) do art. 202º da Constituição da República Portuguesa. Não há, pois, qualquer inconstitucionalidade, nem qualquer razão para fazer destrinça entre os aspectos jurisdicionais e os administrativos da decisão ou sentença final que julga em recurso de deliberações nos processos de avaliação fiscal.'
4. E...–Comércio de Viaturas,Ldª - habilitada por sentença do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Janeiro de 1996 - interpôs, nos termos do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, recurso para este Tribunal para apreciação da constitucionalidade da norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, 'por violação dos princípios do não-retrocesso e da igualdade constitucionalmente consagrados'. Nas alegações que trouxe junto deste Tribunal, concluiu assim:
'1. O novo § único, aditado pelo artigo 1º do Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, ao artigo 15º do Decreto nº 37784, de 14 de Março de 1950, veio estatuir que não cabe recurso da decisão do juiz do tribunal da comarca sobre o recurso interposto das deliberações das comissões de avaliação instituídas pelo Decreto nº 37021, de 21 de Agosto de 1948.
2. Este decreto regulamentar, ao privar de recurso a decisão do juiz da comarca que aprecia o recurso das deliberações das comissões de avaliação, retirou aos particulares um instrumento de protecção judiciária contra actos judiciários.
3. A deliberação da comissão de avaliação é um acto administrativo.
4. A sentença do juiz da comarca representa a primeira decisão sobre o caso revestida de carácter jurisdicional. Ora, sobre qualquer erro cometido nesta primeira apreciação jurisdicional não pode incidir uma revisão feita por juízes. Um só juiz - e um juiz de lª, instância - decide definitivamente da situação jurídica controvertida. Por mais vultosos que sejam os interesses em causa, por mais manifesto e gravoso que seja um erro cometido em tal apreciação, esta permanece insusceptível de toda e qualquer nova estimativa.
5. Não pode assim deixar de reconhecer-se que o § único aditado pelo Decreto Regulamentar nº 1/86 ao artigo 15º do Decreto nº 37021, de 4 de Agosto de 1948, representou uma violação pelo legislador do dever de se abster de atentar contra a realização do direito de acesso aos tribunais.
6. O preceito em causa é, assim, materialmente inconstitucional por violação do princípio do não retrocesso, tal como este se articula com a garantia da via judiciária estabelecida pelo artigo 20º, nº 1 da Constituição, com a existência de várias instâncias judiciais, de acordo com o artigo 211º, nº
1, alínea a), e, em geral, com o princípio do Estado de direito, proclamado no artigo 2º do texto constitucional.
7. O ‘princípio do não retrocesso’ diz-nos que, uma vez produzidas pelo legislador ordinário normas destinadas a cumprir uma determinada tarefa constitucional, não podem estas posteriormente vir a ser revogados ou substituídas por outras que instituam um regime claramente menos favorável.
8. O duplo grau de jurisdição representa um princípio geral processual que consagra uma garantia essencial aos interesses das partes e ao interesse superior da justiça, não carecendo de estar expressamente afirmado ‘qua tale’ no texto da Lei Fundamental para ter repercussão constitucional.
9. Mesmo que as considerações anteriores não procedessem, o preceito do §
único do artigo l5º do diploma em causa sempre violaria o princípio constitucional da igualdade, na parte em que veio impedir o recurso da decisão do juiz da comarca quanto à questão de direito da admissibilidade ou inadmissibilidade da avaliação fiscal extraordinária. Com efeito, sempre se poderá recorrer de qualquer sentença que verse sobre qualquer outro ponto de direito atinente ao mesmo arrendamento.
10. Padece ainda tal preceito de inconstitucionalidade formal, na medida em que, sendo matéria relativa aos direitos, liberdades e garantias e à organização e competência dos tribunais, nunca poderia revestir a forma de decreto regulamentar, mas, a ser admissível de um ponto de vista material, deveria revestir a forma de decreto-lei, precedido da competente autorização legislativa.' Por seu turno, R. Hr. – habilitada por sentença do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Abril de 1994 – sintetizou do seguinte modo as suas contra-alegações:
'l. Não há recurso para o Tribunal da Relação das decisões da 1ª Instância nos processos de Avaliação Extraordinária de Rendas por que tal o impede o § único do art. 15º do Dec. Lei nº 37 021 na redacção do Decreto Regulamentar nº 1/86.
2. Não há inconstitucionalidade material: a) Não foi violado o princípio do não retrocesso, porque não há nem havia lei ordinária que admitisse o recurso para o Tribunal da Relação e tivesse sido, posteriormente, revogada. b) Não foi violado o princípio da dupla jurisdição, porque não há norma constitucional que o impusesse no caso ‘sub iudice’; ‘o duplo grau de jurisdição em matéria de recursos não tem consagração Constitucional (Ac. S.T.J. Bol M. J.
400, 561). c) Não foi violado o princípio da igualdade de tratamento, porque não há situações idênticas em que se verifique duplo grau de jurisdição e o regime de recurso das acções de despejo nada tem a ver como das avaliações extraordinárias.
3. Não há inconstitucionalidade formal do art. 1º do Decreto Regulamentar nº
1/86 porque o mesmo tem como fonte a lei ordinária Lei nº 2 030 que se destinou a regulamentar, não resultando de uma livre iniciativa do Governo sem apoio constitucional.'
5. Completados os vistos legais, após mudança de relator na sequência de alteração na composição do Tribunal, cumpre decidir. II. Fundamentos A. Objecto do recurso
6. A Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, que na sua Parte V, dispunha sobre o contrato de arrendamento de prédios urbanos, previa que em diploma posterior viessem a ser estabelecidas as normas reguladoras da avaliação desses prédios e dos respectivos recursos nos casos ali previstos. Em cumprimento do assim prescrito foi editado o Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, regendo sobre as comissões de avaliação, forma da sua constituição e funcionamento, regras procedimentais a que deveriam subordinar-se os respectivos processos, bem como o sistema de recursos. Neste contexto, prescrevia-se no artigo 14º que 'do resultado da avaliação poderão recorrer tanto o senhorio como o inquilino, no prazo de oito dias a contar da data em que dele tomarem conhecimento, por meio de petição dirigida ao presidente da comissão', devendo logo ser indicada a renda considerada justa. E no artigo seguinte dispunha-se assim:
'Artigo 15º Da interposição do recurso serão notificados os interessados não recorrentes para, no prazo de oito dias, alegarem o que julgarem conveniente. Seguidamente o juiz designará data para a avaliação. Lavrado o auto de avaliação, será o seu resultado, no prazo de vinte dias, notificado às partes.' Entretanto, o Decreto n.º 37784, de 14 de Março de 1950, porque se reconheceu a conveniência de alterar e completar algumas disposições daquele diploma, veio dar nova redacção ao artigo 15º, que passou a dispor da seguinte redacção:
'Artigo 15º Da interposição do recurso serão notificados os interessados não recorrentes para, no prazo de oito dias, alegarem o que julgarem conveniente. Seguidamente, se o juiz admitir o recurso, designará dia para a avaliação, finda a qual será o processo concluso para a decisão final. A renda do prédio ou a parte dele que for objecto de recurso deverá ser fixada entre os limites do rendimento ilíquido constante da matriz e dos resultados das averiguações efectuadas.' Esta disciplina jurídica veio a ser novamente tratada no Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, em cujo exórdio se faz alusão à necessidade de obviar a dificuldades que 'têm vindo a fazer-se sentir na presidência das comissões de avaliação' e a 'outros aspectos de pormenor'. Na linha de concretização do propósito assim enunciado, foi aditado ao artigo
15º um § único a que foi dada a formulação seguinte:
'§ único - Da decisão final não cabe recurso.' E, posteriormente, o Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro, veio modificar as regras a que deve obedecer a segunda avaliação da renda dos prédios para efeitos de julgamento do recurso. Este quadro normativo, apenas referendado na parte que importa à apreciação do presente recurso, ainda subsiste no ordenamento, havendo o artigo 11º do Decreto-Lei n.º 32l-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano, confirmado tal subsistência ao dispor que 'enquanto não entrarem em funções as comissões de avaliação previstas no Código das Avaliações, mantêm-se em funções as comissões de avaliação previstas no decreto-lei n.º 37021, de 20 de Agosto de 1948, com as alterações introduzidos pelo Decreto n.º 37784, de 14 de Março de 1950, e pelos Decretos Regulamentares n.ºs 1/86, de 2 de Janeiro e
1/89, de 7 de Janeiro'.
7. Sustenta a recorrente que o preceito do § único aditado ao artigo 15º do Decreto n.º 37021 - e aplicado como fundamento normativo da decisão recorrida – padece de inconstitucionalidade formal 'na medida em que, sendo matéria relativa aos direitos, liberdades e garantias e à organização e competência dos tribunais, nunca poderia revestir a forma de decreto regulamentar, mas, a ser admissível de um ponto de vista material, deveria revestir a forma de decreto-lei, precedido da competente autorização legislativa'. Por motivos semelhantes, aliás, poderia a recorrente sustentar que o preceito padece igualmente de inconstitucionalidade orgânica, por a matéria apenas poder ser regulada pela Assembleia da República, no uso da sua competência legislativa (e não pelo Governo, usando poderes regulamentares). De todo o modo, acrescenta a recorrente que o preceito em causa é 'materialmente inconstitucional por violação do princípio do não retrocesso, tal como este se articula com a garantia da via judiciária estabelecida pelo artigo 20º, n.º 1, da Constituição, com a garantia de várias instâncias judiciais, de acordo com o artigo, 211º, n.º 1, alínea a) e, em geral, com o princípio do Estado de direito, proclamado no artigo 2º do texto constitucional'. E, do ponto de vista ainda da inconstitucionalidade material, sustenta também a recorrente que a norma em apreço sempre violaria o princípio da igualdade, na parte em que veio impedir o recurso da decisão do juiz da comarca quanto à questão de direito da admissibilidade ou não admissibilidade da avaliação fiscal extraordinária. Será efectivamente assim? Analisemos isoladamente as inconstitucionalidades em causa. B. Alegadas inconstitucionalidades orgânica e formal
8. Imputa a recorrente à norma do § único do artigo l5º o vício de inconstitucionalidade formal, pois que, tratando-se nela de matéria relativa a
'direitos, liberdades e garantias' e à 'organização e competência dos tribunais', haveria ela de ser regulada por lei da Assembleia da República, ou pelo Governo, desde que habilitado com a respectiva credencial parlamentar, mas não por regulamento. O Decreto Regulamentar n.º 1/86 foi aprovado pelo Governo 'de harmonia com o disposto no artigo 57º da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948', e 'nos termos da alínea c) do artigo 202º da Constituição'. A Lei n.º 2030, no artigo 57º, n.º 1, o único que se reporta à delegação ali utilizada, prescreve que 'as disposições relativas à avaliação de prédios urbanos não entrarão em vigor sem que, pelos Ministérios da Justiça e das Finanças, sejam estabelecidos, por decreto a publicar no prazo de sessenta dias, as normas reguladoras dessa avaliação e dos respectivos recursos'. Este Tribunal, pelo Acórdão n.º 77/88, Diário da República, I Série, de 28 de Abril de 1988, tirado em processo de fiscalização abstracta, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de diversas normas do Decreto-Lei n.º
436/83, de 19 de Maio, que tinha vindo estabelecer disposições relativas à actualização dos contratos de arrendamento para comércio, indústria e exercício de profissões liberais e ainda em todos os contratos de arrendamento para fins não habitacionais. Ora, da extensa fundamentação aí aduzida a propósito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a que se reporta a alínea h) do artigo 168º, n.º l da Constituição – 'Regime geral do arrendamento urbano', pode afirmar-se, com segurança, que a matéria vertida na norma em apreço não é subsumível no âmbito de tal reserva. Mas, poderá ela tombar no espaço normativo a que se reporta a alínea q) do mesmo preceito, reportada, além do mais à , 'organização e competência dos tribunais'? Tem-se entendido que o domínio desta reserva parlamentar não abrange as estatuições que assumam simples carácter 'processual' ou 'adjectivo', reportando-se antes às 'modificações de competência judiciárias (competência material ou territorial) que não tenham carácter meramente processual' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 675). Ora, sendo assim, nada impedia que o Governo, no uso da competência conferida pelo artigo 202º, alínea c), procedesse à regulamentação da Lei n.º 2030, editando um diploma que no tocante àquela norma e ao respectivo conteúdo estatuidor, se pode reconduzir a um puro regulamento executivo, isto é, a um regulamento que 'contém tão só as providências necessárias para assegurar a fidelidade, ou seja, a conformidade à vontade do legislador, na medida em que esta seja relativamente obscura ou lacunosa, ou que se limita a enunciar os pormenores e minúcias de regime que o legislador omitiu' (cfr. Acórdão n.º 1/92, Diário da República, I Série, de 20 de Fevereiro de 1992 e Afonso Queiró,
'Teoria dos Regulamentos', Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, n.ºs
1, 2, 3, 4, p. 19). Neste sentido, o Tribunal Constitucional pronunciou-se já pela não verificação de inconstitucionalidade formal e orgânica no preceito em análise (que é, recorde-se, o § único aditado pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro ao artigo 15º do citado Decreto n.º 37021). Lê-se, assim, no Acórdão n.º
250/95 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Julho de 1995):
'[...]
16 - Verifica-se, portanto, que o Tribunal Constitucional tem entendido que se inscreve na reserva parlamentar pelo menos a questão da competência em razão da matéria, a qual se prende com a distribuição de matérias pelo diversos tribunais dispostos horizontalmente (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 94, e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p.
207). Por outro lado, as normas que regem directamente a competência em razão da hierarquia ou funcional – que consiste na repartição de funções entre ordem da mesma espécie ou categoria e dentro da mesma causa (cf. Manuel de Andrade, ob. cit., p. 98, e Antunes Varela, ob. cit., p. 212) – limitam-se a determinar que cabe aos tribunais superiores «julgar recursos» [cf. artigos 71º, alínea a) e
72º, alínea a9, do Código de Processo Civil, e 28º, n.º 3, alínea a), e 41º, n.º
1, alínea a), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais]. A subsequente determinação dos casos em que tem lugar recurso depende de normas que, em primeira linha, disciplinam requisitos ou pressupostos de admissibilidade de recursos e não de normas de competência propriamente ditas, embora delas resulte, indirectamente, a delimitação dos casos de intervenção dos tribunais superiores. Ora, essas normas definidoras de condições de admissibilidade de recursos são normas de indiscutível carácter processual e só num plano mediato se repercutem na delimitação da competência dos tribunais superiores – escapando, portanto, ao âmbito da reserva parlamentar.
17 – Este é, aliás, o entendimento mais recentemente expresso pelo Tribunal Constitucional. A propósito da apreciação da eventual inconstitucionalidade orgânica do artigo 46º, n.º 1, do Código das Expropriações, que proíbe o recurso das decisões da relação para o Supremo Tribunal de Justiça, e sobre a questão de saber se o Governo podia, através do decreto-lei autorizado, excluir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, diz-se no Acórdão n.º 330/91 (Diário da República, 2ª série, de 15 de Novembro de 1991) que «não estando a norma em apreciação a regular específica e autonomamente a matéria de competência do Supremo Tribunal de Justiça, mas disciplinando apenas os requisitos ou pressupostos de admissibilidade de recursos, num processo cível especial, matéria de simples carácter processual, o Governo podia criar a norma impugnada». Utilizando a mesma fundamentação, pode agora concluir-se que a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º37 021, na redacção do Decreto Regulamentar n.º
1/86, não versa sobre matéria relativa à «competência dos tribunais». Essa norma reporta-se a matéria de processo civil, que não se encontra reservada à Assembleia da República. Assim, tal norma não viola o disposto na alínea q) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição.' O mesmo entendimento foi, mais recentemente, confirmado por este Tribunal nos Acórdãos n.ºs 124/98 e 383/98, o primeiro dos quais publicado no Diário da República, II série, de 30 de Abril de 1998. Pelo exposto, não se verifica, portanto, qualquer inconstitucionalidade formal ou orgânica. C. Inconstitucionalidade material
9. Em conformidade com o disposto no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, 'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'. No princípio do acesso ao direito e aos tribunais, é possível destacar, desde logo, duas linhas significativas: (lª) garante-se a tutela jurisdicional mínima
– a legislação ordinária terá de assegurar a todos sem discriminações de ordem económica, a via judiciária correspondente a um grau de jurisdição; (2ª) garante-se que, quando na legislação ordinária estiver prevista a defesa de direitos através de vários graus de jurisdição, a todos, sem prejuízo para os economicamente desfavorecidos, seja aberta a via judiciária sucessiva. E as coisas hão-de ser assim no que toca ao primeiro dos destaques assinalados, desde logo porque aquela norma constitucional não contém qualquer expressa referência a sucessivos graus de jurisdição. Nela apenas se assegura, num campo de estrita horizontalidade, o acesso aos tribunais para se obter decisão definitiva de um litígio. Acresce que, anteriormente à Constituição de 1976, o recurso aos tribunais para defesa de direitos vinha a ser tradicionalmente exercido em função de um quadro jurídico pré-estabelecido, delineado pelo legislador ordinário, e variável em função da natureza desses direitos e das circunstâncias e condições desse exercício. E o sistema de graus de recurso era diverso de jurisdição para jurisdição: enquanto na jurisdição civil, na jurisdição do trabalho e na jurisdição administrativa se consentia, em regra, que os feitos, conforme a sua importância, fossem definitivamente julgados em um, dois ou três graus de jurisdição, já na jurisdição penal, a regra era a de permitir sempre o recurso da decisão final até um segundo grau de jurisdição e, nos casos de maior relevo, até mesmo a um terceiro grau de jurisdição. Ora, nesta perspectiva histórica, é lícito afirmar que se o preceito do n.º l do artigo 20º da versão originária da Constituição (artigo 20º, n.º 2, da versão saída da revisão de 1982 e novamente artigo 20º, n.º 1, da versão actual se bem que com reformulação do texto) visasse erradicação daquele regime do nosso sistema jurídico e, simultaneamente, pretendesse garantir, em termos absolutos, o acesso a um segundo ou até a um terceiro grau de jurisdição, não deixaria por certo de, por forma directa e explícita em tal sentido se manifestar, o que, como já se viu, não veio a suceder. Aliás, a garantia do duplo grau de jurisdição não se acha tão pouco consagrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, nem para o processo civil, nem para o processo penal, estabelecendo-se tal garantia, apenas quanto ao processo penal, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de
1976, aprovado por Portugal para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho
(cfr. artigo 14º, n.º 5). Também a jurisprudência deste Tribunal se tem vindo a pronunciar, de modo uniforme e reiterado (cfr. por todos, os Acórdãos n.ºs 359/86, 65/88, 202/90 e
330/91, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 11 de Abril de 1987,
20 de Agosto de 1988, 21 de Janeiro e 15 de Novembro de 1991), no sentido de não se encontrar constitucionalmente consagrado o direito a um duplo grau de jurisdição para a generalidade dos processos, sendo este também, embora com ligeiras inflexões, o entendimento da doutrina [cfr. Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil (edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa), vol. III, pp. 124 e 125 e Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1994, pp. 99 e ss., Carlos Lopes do Rego, 'Acesso ao Direito e aos Tribunais', in, Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas, 1993, pp.
74 e ss., e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3 ed., Coimbra, 1993, p. 164].
É certo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. por todos os Acórdãos n.ºs 218/89 e 340/90, Diário da República, II série, de respectivamente, 30 de Junho de 1989 e 19 de Março de 1991) tem vindo a reconhecer aos arguidos condenados em processo criminal a garantia constitucional de recurso da decisão condenatória para outra instância, sem embargo de o duplo grau de jurisdição assim admitido não encontrar a sua matriz constitucional legitimadora na norma do artigo 20º, mas essencialmente no preceito do artigo 32º, n.º 1, como expressão directa das garantias de defesa que ali são consagradas.
10. Sustenta-se no Acórdão recorrido que, pelo menos a partir da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1961, o recurso interposto das deliberações das comissões da avaliação para o juiz de direito, nos termos dos artigos 14º e
15º do Decreto n.º 37021, correspondia à última instância, sendo definitiva a respectiva decisão. Para tanto abona-se em fundamentação assim desenvolvida:
'É o que resulta do disposto no art. 800º do C.P.C., que estipula: ‘Da sentença não há recurso, a não ser nos casos abrangidos pelo n.º 2 do art. 678º, em que cabe recurso de agravo, a interpor directamente para o Supremo’'. Esta disposição correspondia ao disposto no art.º 795º e último período do art.º
796º do C.P.C. de 1939, segundo os quais, da sentença do tribunal de comarca que julgasse apelação competia recurso de revista; este, porém, só era admissível quando se fundasse em ofensa ao caso julgado ou incompetência absoluta, cujas regras são consideradas de natureza adjectiva, pelo que a sua violação não podia fundamentar recurso de revista (art.º 721º, n.º 2 do C.P.C. de 1939); daí que se tivesse estabelecido no C.P.C. de 1962 que o recurso da sentença do tribunal de comarca, proferida em decisão de recurso, seria sempre de agravo, nos casos em que tal recurso é admissível (incompetência absoluta e caso julgado) e directamente para o Supremo, per saltum. Assim, sempre se tem entendido maioritariamente, não ser admissível recurso das decisões ou sentenças finais proferidas pelo tribunal de comarca (ou pelo juiz de direito indicado no art.º 6º do Dec. n.º 37021) em recursos de deliberações nos processos de avaliação fiscal. Na linha deste entendimento, o Decreto Regulamentar n.º 1/86, quando aditou ao artigo 15º do Decreto n.º 37021, o § único – 'Da decisão final não cabe recurso'
– em bom rigor não introduziu um qualquer novo elemento de estatuição no quadro normativo pré-
-existente, limitando-se tão só a 'acabar com quaisquer dúvidas'.
11. Mas, seja qual seja o entendimento que se perfilhe a propósito deste específico ponto, o certo é que à luz da interpretação concedida ao artigo 20º, n.º 1, da Constituição e às decorrências dele extraídas relativamente às garantias de recurso nos processos não penais, especificamente nos processos civis, sempre haverá de se concluir no sentido da não inconstitucionalidade material que vem assacada àquela norma.
É que, o regime jurídico em que ela se integra, ao prever o recurso para o juiz das deliberações das comissões de avaliação, assegura o direito a um recurso, garantindo assim em termos constitucionalmente adequados o acesso a uma tutela judicial efectiva. No mesmo sentido, aliás, decidiu o Tribunal Constitucional no citado Acórdão n.º
270/95 não se verificar qualquer inconstitucionalidade material do § único do artigo 15º, em análise, ponderando-se, aliás, que
'o tribunal de 1ª instância funciona já como uma instância de recurso. O que sugere que o legislador, devido ao carácter técnico dos critérios das avaliações vinculativos para a entidade administrativa a quem compete a decisão, ao instituir a possibilidade de recurso para um tribunal judicial, pretendeu assegurar uma garantia de defesa de direitos idêntica materialmente à garantia de um «duplo grau de jurisdição» relativamente a matérias em que a primeira decisão é estritamente jurídica. Deste modo, surge como inadequada e excessiva a exigência de um segundo recurso para uma outra instância judicial.' Tem, pois, de concluir-se no sentido de que a norma em crise não se encontra ferida de inconstitucionalidade material por violação dos artigos 20º e 212º da Constituição.
12. A recorrente invoca ainda, todavia, como fundamento de inconstitucionalidade material da norma objecto do recurso, a violação do
'princípio constitucional da igualdade, na parte em que veio impedir o recurso da decisão do juiz da comarca quanto à questão de direito da admissibilidade ou inadmissibilidade da avaliação fiscal extraordinária. Com efeito, sempre se poderá recorrer de qualquer sentença que verse sobre qualquer outro ponto de direito atinente ao mesmo arrendamento.' Há, pois, que apurar se a norma em causa conduz a uma situação de tratamento processual injustificadamente diferente daquele reservado a interesses e questões idênticas às discutidas no processo de avaliação fiscal extraordinária que originou o presente recurso. Na verdade, o Tribunal proferiu recentemente o citado Acórdão n.º 124/98, no qual decidiu
«julgar inconstitucional a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, norma aditada pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, mas apenas na parte em que veda o acesso aos tribunais superiores em via de recurso, em processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, para discussão da questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária requerida, por violação do artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa». Escreveu-se neste Acórdão n.º 124/98, para fundamentar este juízo da inconstitucionalidade:
'Ora, no caso sub judicio – e diferentemente do que ocorreu no caso sobre o qual foi tirado o citado acórdão n.º 270/95 – verificam-se duas circunstâncias especialmente atendíveis:
- por um lado, está suscitada uma questão de natureza jurídica que excede a mera reapreciação de uma decisão resultante de um juízo de discricionariedade técnica da comissão de avaliação sobre o valor de mercado da renda para certa fracção destinada ao exercício de profissão liberal;
- por outro lado, o valor da anuidade da renda fixada (é este o valor normal a que se atende nas acções de despejo – cfr. art. 307º, n.º 1, do Código de Processo Civil) excede a alçada dos Tribunais da Relação. Por força da conjugação destas duas circunstâncias, entende-se que viola o princípio da igualdade a solução constante da norma desaplicada, por força da qual não poderá haver recurso, em caso algum, de decisão proferida pela primeira instância, independentemente do valor do processo, quando esteja em causa a própria legalidade da realização da avaliação. De facto, estando em causa uma pura questão de direito (litigiosa) entre as partes, poderia a mesma ser objecto de uma acção de simples apreciação (art. 4º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil), em que o acesso aos sucessivos graus de jurisdição dependia exclusivamente do valor da causa (art. 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Ora, in casu, tendo sido suscitada a questão de saber se é legal a própria avaliação extraordinária – num recurso em acção cujo valor ultrapassa a alçada da Relação – a circunstância de estar sempre vedado o acesso aos tribunais da Relação e, eventualmente, ao Supremo Tribunal de Justiça constitui uma discriminação infundada das partes do recurso. Como se escreveu no acórdão n.º 68/85 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional,
5º vol., págs. 541 e segs.) e se se repetiu no acórdão n.º 359/86 (in Acórdãos,
8º vol., págs. 605 e seguintes):
«[...] se se concebe que nem todas as decisões tenham de admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ‘o que a lei já não poderá fazer é admitir o recurso em toda uma categoria de casos e depois excluí-lo apenas em relação a um sector dessa categoria, sem que nenhuma justificação objectiva se verifique para tal discriminação’.» Há, assim, que concluir que a mera utilização de um certo processo especial – pensado para apreciar apenas o modo de aplicação dos critérios legais ou o juízo de discricionariedade técnica atinente à actualização de rendas prevista na lei
– não constitui justificação objectiva para a retirada a qualquer das partes do acesso aos tribunais de 2ª instância para a apreciação de questão de saber se, in casu, podia haver avaliação extraordinária.' Estes fundamentos foram repetidos, mais recentemente, no citado Acórdão n.º
383/98 (ainda inédito). E, no presente processo, tal como no decidido por este último Acórdão, esses fundamentos são pertinentemente aplicáveis:
· nele foi, efectivamente, questionada uma pura questão de direito, relativa à legalidade da avaliação extraordinária (afirmando-se que o 'contrato só era passível duma actualização anual, após o período consensual de congelamento da renda, e nunca duma avaliação fiscal extraordinária'), não se tendo tomado conhecimento desta questão por se entender que inexistia recurso;
· sendo certo que o valor do processo (21 600 000$00) permitiria, em termos normais (por exemplo, numa acção de simples apreciação em que o acesso aos sucessivos graus de jurisdição dependesse exclusivamente do valor da causa), recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça. Pelo que se pode concluir, como nos citados Acórdãos n.ºs 124/98 e 383/98, pela existência de uma violação do princípio da igualdade, enquanto a norma em apreço não permite o recurso para discussão de uma questão jurídica, em processo cujo valor é superior ao da alçada do tribunal recorrido.
13. É certo que este Tribunal, no recente Acórdão n.º 638/98 (ainda inédito) da
2ª Secção, decidiu que a diferenciação resultante da norma introduzida pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro (como § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021) não se mostra arbitrária e desprovida de qualquer fundamento material bastante, pois
'é a própria natureza especial do processo em causa que justifica o estabelecimento de uma regra igualmente especial em matéria de recursos.' Concluiu, assim, este Acórdão que a referida norma não viola o princípio da igualdade, não se pronunciando pela sua inconstitucionalidade. Todavia, como se afirma na declaração de voto aposta ao citado Acórdão, ainda que se concedesse que, vendo melhor as coisas, seja questionável a possibilidade de, em hipóteses como a dos autos, lançar mão, em alternativa, de uma acção de simples apreciação, só cabendo no caso o processo especial do Decreto-Lei n.º
37021 (na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86), sempre restaria que, então, seria este processo que ficaria aberto à discussão e decisão de uma
'comum' questão de direito – ou seja, de uma questão não atinente ao mérito da avaliação da renda (para a qual aquele processo foi seguramente pensado e configurado, pelo menos em primeira linha), mas à própria admissibilidade legal da avaliação. E, perante a identidade de natureza (puramente jurídica) da questão controvertida - relativamente ao objecto de outros processos, com valor idêntico ao do caso dos autos e que admitem reapreciação em via de recurso -, não se afigura ao Tribunal que a simples previsão de uma forma especial de processo possa fornecer a justificação para o estabelecimento da impossibilidade de recurso da decisão judicial, nesse processo especial. Isto, porque a questão
é, justamente, a de saber se a mera utilização de um processo especial - pensado para apreciar apenas o modo de aplicação dos critérios legais ou o juízo técnico atinente à actualização de rendas prevista na lei – constitui, só por si, justificação objectiva bastante, à luz do princípio da igualdade, para a retirada a qualquer das partes do acesso aos tribunais de 2ª instância para reapreciação de questão, jurídica, de saber se, no caso, podia haver avaliação extraordinária. O Tribunal entende que se deve responder negativamente a esta questão, não se divisando na mera remissão para a previsão legal de um processo especial fundamento material bastante para a diferenciação em causa. Há, pois, que reiterar no presente caso a jurisprudência do Tribunal que resultou dos citados Acórdãos n.ºs 124/98 e 383/98, no sentido de que, na medida em que não permite o recurso para discussão da questão da admissibilidade legal da avaliação extraordinária em processo cujo valor é superior ao da alçada do tribunal recorrido, a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, introduzido pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, é inconstitucional, por violação do artigo 13º, n.º 1 da Constituição. III. Decisão Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na medida em que não permite o acesso aos tribunais superiores em via de recurso, em processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, para discussão de questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária requerida; b. Em consequência, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em consonância com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa,15 de Dezembro de 1998 Paulo Mota Pinto Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Artur Maurício, vencido de acordo com a declaração de voto junta e revendo posição: Declaração de voto A jurisprudência do Tribunal Constitucional é pacífica no sentido de que a Constituição não impõe, em processo civil, dois graus de jurisdição, gozando o legislador ordinário de 'uma ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos' (Cfr. Lopes do Rego in 'Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional', p.80); neste sentido cfr., entre outros, os Acórdãos nºs
275/94, 95/96 (inéditos) e 310/94 (publicado in DR, II Série, nº. 199 de
29/8/94, p. 8888). Aquela margem de discricionariedade tem, porém, como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade (artigo 13º da CRP). A consideração deste limite há-de fazer-se com uma cuidada ponderação dos interesses em jogo – nem sempre de primeira evidência – sem o que a regra da livre conformação do legislador ordinário se pode converter em excepção. A tese que fez vencimento no presente acórdão, aferindo a constitucionalidade da norma do artigo 15º § único do Dec. nº 37021, na redacção do Dec. Regulamentar nº 1/86, com o princípio da igualdade, ultrapassa, a meu ver, a fronteira em que deverá conter-se a análise comparativa dos regimes dos recursos. Na verdade, justificada a solução de um só grau de jurisdição atendendo à finalidade típica do processo de avaliação fiscal extraordinária de rendas
'isola-se', uma questão de direito nele discutida, para se concluir que, podendo haver recurso de acordo com o valor da causa, da decisão que a resolvesse, não há fundamento material bastante para que o legislador a não preveja naquele processo especial. Ora, sem embargo de, com determinados fundamentos, concretamente especificados na lei de processo civil, a admissibilidade do recurso se desprender do valor da causa e das alçadas dos tribunais (nºs 5 e 6 do artigo 678º do CPC), entendo que, em regra, a limitação dos recursos feita pelo legislador ordinário deve ser analisada em função da finalidade típica do processo em causa. É em função dessa finalidade que o legislador, ponderando a natureza e importância dos interesses envolvidos e a necessidade de preservar a própria operacionalidade da organização judiciária, estabeleceu, no uso da liberdade que se lhe reconhece, o regime dos recursos e, concretamente, se é admissível um duplo ou até triplo grau de jurisdição. A resolução de todas as outras questões – prévias, incidentais ou acessórias – está, em princípio, subordinada ao regime de recorribilidade da que corresponde
à finalidade típica do recurso. Ora, se, no caso, se poderia justificar, ponderados aqueles referidos factores, a irrecorribilidade do julgado que decidisse o valor da renda em função da avaliação, justificada está, igualmente, a irrecorribilidade da decisão com o fundamento invocado. Por outro lado, entendo que a questão não deve ser resolvida sem ter em conta outros tipos de processos em que o interessado possa ver reconhecido o mesmo direito, ou seja, no caso, o de não ser actualizada extraordinariamente a renda que paga. Na verdade, se houver outro tipo de processo – e, no caso, parece viável, uma acção declarativa de simples apreciação – em que o interessado possa impugnar as decisões que vierem a ser proferidas sobre o seu pedido, de acordo com o valor da causa, essa não será razão para concluir que, no processo especial de avaliação, tal direito de impugnação lhe seja, também, conferido. Não exigindo a Constituição que o legislador ordinário estruture o processo civil de molde a oferecer aos interessados uma multiplicidade de meios processuais para a mesma tutela que o direito invocado requer, a existência daquele outro tipo de processo é, até, uma razão acrescida para que se não julgue inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma em causa.
José Manuel Cardoso da Costa