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Processo nº 182/94
1ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Em 16 de Maio de 1988, A. M. impugnou, junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, o despacho do Governador Civil do Distrito de Évora, de 15 de Março de 1988, que determinou o encerramento imediato da sua discoteca C... e a cassação da respectiva licença de abertura, desde logo abordando a questão da inconstitucionalidade de tal despacho:
'(...) para além das apontadas ilegalidades, o acto recorrido viola também a Constituição da República Portuguesa, directa e relativamente às seguintes normas:
- estabelece uma medida de segurança ilimitada, violando o nº1 do artigo 30º;
- ofende a iniciativa económica privada, violando o nº1 do art. 61;
- atenta contra a subsistência de uma pequena empresa privada, contra o disposto no nº1 do art. 85º;
- condena sem previamente ter dado ao ora recorrente a possibilidade de de defender, pelo que não respeita o art. 32º.' No artigo seguinte da petição inicial referia-se que 'o acto recorrido é por demais ilegal e inconstitucional.' Idêntica argumentação foi retomada nas alegações de recurso, onde se reiterou que 'o acto recorrido é não só ilegal como contraria regras constitucionais relevantes, causa cumulativa da respectiva nulidade', e nas respectivas conclusões:
'[O despacho recorrido] Contraria além disso os artigos 30º nº1, 85º, nº1 e 32º da Constituição da República Portuguesa, pelo que é nulo, também, por esta via.'. Por sentença de 2 de Outubro de 1990 do juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, foi negado provimento às pretensões do recorrente. No recurso interposto de tal decisão para o Supremo Tribunal Administrativo de novo se invocou que o despacho recorrido 'Viola (...) os artigos 30º nº1, 61º nº1, 85º nº1 e 32º da Constituição, pelo que é nulo.' Por acórdão de 27 de Janeiro de 1994, a 1ª Secção daquele Supremo Tribunal negou provimento ao recurso.
2. Ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º28/82, de 15 de Novembro), o recorrente interpôs recurso de constitucionalidade desta decisão, em 14 de Fevereiro de 1994, logo invocando que
'O acórdão recorrido ao aplicar o disposto na alínea a) do nº1 do artigo 124º do Regulamento Policial do Distrito de Évora, conjugado com o art. 408º ns. 1 e 6 do Código Administrativo e art. 55º nº1 do Decreto-Lei nº 328/86, de 30 de Setembro, violou as seguintes normas constitucionais:
- art. 30º nº1
- art. 32º
- art. 61º nº1
- art. 85º nº1
- art. 85º nº1
- art. 115º nº7
- art. 272º nº2.' Nas suas alegações, concluiu desta forma:
'a) As instâncias administrativas aplicaram ao ora Recorrente uma medida baseada na norma retirada da conjugação dos arts. 124º -1, al. a) Regulamento Policial do Distrito de Évora e do art. 408º, nºs. 1 e 6 do Código Administrativo que atribui ao Governador Civil do Distrito de Évora o poder de ordenar imediatamente e sem precedência de processo contraditório o encerramento definitivo de estabelecimentos similares dos hoteleiros e a cassação das respectivas licenças quando os mesmos sejam focos de perturbação do sossego da vizinhança; b) Esta medida tem carácter sancionatório porque a ordem de encerramento de estabelecimentos hoteleiros em causa é prevista como sanção acessória pela legislação especial relativa a esse tipo de estabelecimentos, desde sempre, designadamente da Lei nº 2073, de 23 de Dezembro de 1954, e até hoje, nomeadamente pelo Decreto-Lei nº 328/86, de 30 de Setembro; c) E mesmo a legislação geral que prevê o encerramento de estabelecimentos, designadamente o Código Administrativo desde 1984 (cfr. o art. 408º, § 4º) e o Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro), fazem-no sempre a título de sanção acessória; d) Acresce que o art. 124º, nº1, alínea a), do Regulamento Policial do Distrito de Évora, pela sua colocação sistemática, pelo seu teor e pelas suas consequências, não pode deixar de exigir uma apreciação da conduta do proprietário do estabelecimento, porquanto contém implícita a censura do respectivo comportamento relativamente às situações de perturbação ocorridas; e) Comprovam-no justamente as menções, a título de justificação, de diversos processos por contra-ordenações contidas no despacho que determinou o encerramento do estabelecimento do ora Recorrente; f) É, por isso, inequívoca a natureza sancionatória da medida de encerramento cominada no art. 124º, nº1, alínea a), do Regulamento do Distrito de Évora; g) Assim sendo, como é, deveria a mesma norma prever a precedência obrigatória de um procedimento justo que assegurasse aos arguidos todas as garantias de defesa, sob pena de infringir os princípios das garantias do direito de defesa e de audiência prévia em matéria de procedimentos sancionadores constitucionalmente consagrados (cfr., ‘maxime’ o art. 32º, nº8); h) Na verdade, estando em causa uma medida com carácter sancionatório, a respectiva aplicação é obrigatoriamente procedimentalizada e nesse procedimento o arguido tem o direito de ser ouvido antes de ser tomada uma decisão definitiva; i) A norma ora impugnada e descrita supra na alínea a) não o prevê, pelo que, contrariando o princípio da defesa e audiência em processos sancionadores constitucionalmente consagrado, viola a constituição; j) Acresce que a sanção cominada na referida norma é definitiva, logo de duração ilimitada e indefinida; k) A Constituição da República Portuguesa não admite sanções criminais com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida (cfr. o art. 30º, nº1) e
‘a fortiori’ não são admissíveis sanções para ilícitos menos dignos que os criminais que tenham essas características, sobretudo, se restringirem o exercício de direitos fundamentais; l) No caso em apreço estão em causa direitos fundamentais do Recorrente, nomeadamente a liberdade de iniciativa económica e o direito de propriedade privida (cfr., respectivamente, os arts. 61º, nº1, e 85º - na redacção dada pela
1ª revisão - ou 87º - na redacção vigente -, ambos da Constituição da República Portuguesa); m) Consequentemente, a mesma norma é ainda inconstitucional por permitir ao Governador Civil de Évora a adopção de uma medida sancionatória com carácter ilimitado que restringe a liberdade fundamental de iniciativa económica e determina a extinção de uma empresa privada; n) Se por absurdo se entendesse que a mesma norma consagra afinal uma medida de polícia, o que só por mero dever do patrocínio ora se admite, continuaria a haver inconstitucionalidade, agora por violação do art. 272º, nº1, da Constituição; o) Este preceito consagra, segundo a melhor doutrina, dois princípios materiais em matéria de medidas de polícia: a tipicidade legal e a proibição do excesso; p) A atribuição ao Governador Civil do Distrito de Évora do poder de ordenar imediatamente o encerramento definitivo de estabelecimentos similares dos hoteleiros e a cassação das respectivas licenças quando os mesmos sejam focos de perturbação do sossego da vizinhança fundada na conjugação dos art. 124º, alínea a), e 408º, nºs. 1 e 6, do Regulamento Policial do Distrito de Évora e do Código Administrativo, respectivamente, não respeita nenhum daqueles princípios materiais relativos às medidas de polícia; q) Não respeita o princípio da tipicidade legal, porquanto, o art. 408º, nos seus números 1 e 6 se limita a referir genericamente que o governador civil se encontra habilitado a providenciar ou a tomar providências em vista da manutenção da ordem pública e relativamente a certo tipo de estabelecimentos e sempre que a lei se refere à competência do governador civil para ordenar o encerramento de estabelecimentos - no art. 408º, § 4º, do Código Administrativo e no art. 55º, nº1, do Decreto-Lei nº. 328/86 -, fá-lo apenas enquanto sanção acessória; r) Ora, a única norma que, na interpretação agora pressuposta, atribuiria tal competência ao Governador Civil de Évora seria o art. 124º, nº1, alínea a), do Regulamento Policial do Distrito de Évora, a qual é regulamentar e não legal; s) Por outro lado, a referida norma do Regulamento Policial do Distrito de Évora não respeita minimamente o princípio da proibição do excesso igualmente consagrado naquele art. 272º, nº 2, da Constituição, porquanto, apesar de a medida de encerramento definitivo ser objectivamente limitativa dos direitos fundamentais de livre iniciativa económica e da propriedade privada, não é prevista qualquer graduação; t) Acresce que sempre seria suficiente para a prossecução destes fins de tranquilidade pública que aquele medida fosse aplicável apenas enquanto não fossem removidas as causas pelas quais o estabelecimento em apreço se considerasse um foco de desordem e de perturbação do sossego da vizinhança.' Por sua vez, o Governador Civil do Distrito de Évora reiterou a descrição fáctica dos eventos que levaram à cassação da licença e ao encerramento do estabelecimento, não tendo apresentado conclusões nem fazendo qualquer referência às questões de constitucionalidade suscitadas.
3. Após mudança de relator, em resultado da recomposição do Tribunal Constitucional e corridos os vistos legais, foi elaborada pelo relator exposição no sentido da não tomada de conhecimento do recurso e foi o recorrente notificado para sobre ela se pronunciar, não tendo respondido. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. Como é pacífico é unânime 'O recurso para o TC é sempre restrito a uma questão de constitucionalidade (n.º6), que consiste em saber se determinada norma aplicável a uma causa pendente no tribunal é ou não inconstitucional. O recurso de constitucionalidade não tem por objecto a decisão judicial em si mesma, mas apenas na parte em que ela não aplicou uma norma por motivo de inconstitucionalidade ou aplicou uma norma alegadamente inconstitucional. (...) O objecto do recurso não é a própria decisão judicial, por ela supostamente ser ou não ser inconstitucional, mas apenas a parte dela em que considerou inconstitucional (ou não) uma determinada norma aplicável à causa em apreciação no tribunal.' - J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 1016. Por outro lado, dúvidas também não restam quanto à necessidade de, para se poder fazer uso do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - e na alínea b) do n.º1 do artigo
280º da Constituição -, se suscitar a questão de inconstitucionalidade durante o processo - é dizer, antes de esgotado o poder jurisdicional da instância recorrida sobre a matéria em relação à qual é suscitada a questão: cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs. 62/85 e 90/85, onde se iniciou a explicação deste requisito (publicados no Diário da República, II Série, de 31 de Maio de 1985 e de 5 de Junho de 1985, respectivamente) e, mais recentemente, o Acórdão n.º
94/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988), bem como a já citada Constituição da República Anotada, anotação XII ao artigo 280º, p. 1020. Ora, confrontando um e outro requisito com as intervenções processuais do recorrente anteriores às alegações produzidas neste Tribunal - acima reproduzidas na parte relevante -, a conclusão inescapável é a de que nenhuma questão de (in)constitucionalidade foi suscitada durante o processo em relação a qualquer norma. A impugnação da constitucionalidade de uma norma – 'a norma retirada da conjugação dos arts. 124º 1, al. a) do Regulamento Policial do Distrito de Évora e do art. 408º, ns. 1 e 6 do Código Administrativo que atribui ao Governador Civil do Distrito de Évora o poder de ordenar imediatamente e sem precedência de processo contraditório o encerramento definitivo de estabelecimentos similares dos hoteleiros e a cassação das respectivas licenças quando os mesmos sejam focos de perturbação do sossego da vizinhança' - só ocorreu no momento da produção das alegações de recurso neste Tribunal, ou seja, em momento inidóneo para se poder dar por tempestiva. Antes apenas se imputou a inconstitucionalidade directamente às decisões recorridas (actos administrativos e decisões judiciais), não se suscitando de forma adequada uma questão de constitucionalidade normativa. Seguindo o que se escreveu no Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994: 'como as decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem ser objecto do recurso de constitucionalidade - recurso que, quando interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, visa a apreciação pelo Tribunal Constitucional da constitucionalidade de determinada norma jurídica que uma decisão judicial aplicou, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade durante o processo [cfr. artigos 70º, n.º1, alínea b),
72º, nº2, e 75º-A, n.ºs 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional]; e como os recorrentes, durante o processo, não suscitaram (ao menos de modo processualmente adequado) a inconstitucionalidade das norma cuja constitucionalidade pretendem que este Tribunal aprecie', a conclusão só pode ser a mesma que aí se formulou: não conhecimento do recurso 'por falta de verificação dos respectivos pressupostos.'
5. É certo que cabe ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do recurso de constitucionalidade (n.º1 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional), e que esse tribunal o admitiu. Mas tal decisão não vincula o Tribunal Constitucional (n.º3 do mesmo normativo), razão pela qual sempre se impõe, antes do conhecimento da questão de fundo, a prévia verificação dos requisitos de admissão do recurso.
É igualmente certo que a falta de pressupostos de admissibilidade do recurso não foi antes suscitada, nem sequer nas alegações de recurso produzidas neste Tribunal. Mas tal não pode implicar a sanação dos obstáculos ao conhecimento de fundo, como, de resto, se decidiu em casos idênticos: cfr., entre os mais recentes, os Acórdãos n.ºs 1231/96, 700/96, 604/96, 503/96 e 364/96, publicados no Diário da República, II Série, de 4 de Julho de 1996 (o quarto) e de 9 de Maio de 1996 (o quinto), e os restantes ainda inéditos. Assim, não estando reunidos os requisitos necessários, uma vez que até ao momento da produção das alegações neste Tribunal a inconstitucionalidade foi sempre imputada directamente às decisões recorridas e não a normas, não se pode tomar conhecimento do recurso. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso e condenar o recorrente em custas e fixando a taxa de justiça em 5 UC.
Lisboa, 15 de Dezembro de 1998 Paulo Mota Pinto Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa