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Proc. nº 377/98
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Em 9 de Maio de 1997 o ora reclamante, M..., melhor identificado nos autos, intentou no Tribunal Administrativo de Macau, contra o Território de Macau e o Alto Comissariado contra a Corrupção e Ilegalidade Administrativa, acção para o reconhecimento de direito ou interesse legítimo. Em síntese, pretendia o ora reclamante ver reconhecido o seu direito a um vencimento mensal e único igual a
90% do vencimento efectivamente auferido pelo Chefe de Gabinete do Alto Comissariado, bem como de um montante diferente e superior de compensação indemnizatória pela antecipação da cessação da sua relação de serviço em relação
àquele que lhe havia sido pago.
2 - O Tribunal Administrativo de Macau, por decisão de 30 de Setembro de 1997, decidiu indeferir liminarmente a petição inicial. Na parte que ao Território de Macau dizia respeito, por considerar verificar-se uma situação de ilegitimidade passiva; e, na parte respeitante ao Alto Comissariado contra a Corrupção e Ilegalidade Administrativa, por entender ser já possível decidir no sentido da improcedência da pretensão do autor. No que especificamente se refere aos fundamentos utilizados para o indeferimento da pretensão do autor contra o Alto Comissariado contra a Corrupção e Ilegalidade Administrativa, escreveu-se, desde logo, na decisão do Tribunal Administrativo de Macau:
'O A., no seu primeiro fundamento, considera que, durante o tempo em que esteve ao serviço daquele órgão, auferiu uma remuneração inferior à que lhe era legalmente devida. Pois bem. Só isto poderia vir a ser bastante para o indeferimento liminar, porquanto o processamento de vencimentos e outros abonos não constituem simples operações materiais, antes assumindo a natureza de verdadeiros actos administrativos geradores de efeitos jurídicos externos, impugnáveis (entre vários o Ac. S.T.ª, 8/7/93, in A.D. nº 385/1). Não tendo havido recurso contencioso, colocar-se-ia, com pertinência, a questão do caso decidido ou resolvido, o que poderia obstar à utilização do presente meio (cfr.
69º, nº 2, L.P.T.A.)(sublinhado nosso).
Vamos, porém, passar à frente, uma vez que, como decorre da petição e dos elementos que a instruíram, ao que parece só agora terá tido o autor acesso aos elementos com que alicerça a causa de pedir'.
3 - Não se conformando com a decisão do Tribunal Administrativo o ora reclamante apresentou, em 10 de Novembro de 1997, recurso para o Tribunal Superior de Justiça de Macau. No que especificamente se relaciona com a questão da constitucionalidade do nº 2 do artigo 69º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), limitou-se o recorrente a dizer nas respectivas alegações - sem, contudo, ter levado a matéria às respectivas conclusões:
'...64. Por último, não deixa de atentar na mui douta alusão feita na Decisão em recurso quanto à questão dos vencimentos e outros abonos não constituírem simples operações materiais, antes assumindo a natureza de verdadeiros actos administrativos geradores de efeitos jurídicos externos, impugnáveis e de poder-se colocar a questão do caso decidido ou resolvido por falta de interposição do recurso, por forma a obstar à utilização da acção proposta pelo A. (cfr. fls. 7 dos autos).
65. No modesto entendimento do R., esta douta alusão corresponde a uma interpretação do art. 69º/2 da LPTA segundo a qual a acção de reconhecimento de um direito ou interesse legítimo teria um carácter puramente residual (teoria do alcance mínimo).
66. Ora, e tal como entende o Prof. Doutor J.C. Vieira de Andrade, já desde a revisão constitucional de 1989 que não há dúvidas sobre a inadmissibilidade de tal interpretação, por não assegurar uma tutela efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos em determinadas situações, como - acrescenta-se
- a situação decorrente dos presentes autos (v. Justiça Administrativa, lições impressas na Faculdade de Direito da Universidade de Macau, ano 1997/1998, págs.
120 e ss.).
67. É esta uma das situações em que com flagrância se alcança a imprestabilidade da teoria do alcance mínimo, na medida em que em termos práticos e de garantia de tutela de um direito, não se vê como o A. poderia ter interposto recurso sequer de um acto da entidade dirigente do organismo onde se encontrou a exercer funções, em regime precário e temporário de comissão de serviço e sem qualquer princípio de renovação automática para o seu termo'.
4 - O Tribunal Superior de Justiça de Macau, por Acórdão de 18 de Fevereiro de
1998, decidiu, embora por fundamentos diferentes dos invocados na decisão recorrida, negar provimento ao recurso e, em consequência, indeferir a acção, por manifesta ilegalidade na sua instauração, nos termos do nº 2 do artigo 69º da LPTA. Em síntese, entendeu o Tribunal Superior de Justiça de Macau que se verificava o pressuposto processual negativo a que se reconduz a excepção dilatória inominada do nº 2 do art. 69º da LPTA, que é do conhecimento oficioso, questão já suscitada na decisão recorrida, mas - no entender deste Tribunal -
'...sem o devido desenvolvimento e sem daí se terem tirado as necessárias consequências legais'.
5 - Inconformado com o teor do aresto supra referido dele interpôs o recorrente, em 25 de Fevereiro de 1998, recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão do Relator do processo no Tribunal Superior de Justiça, não foi admitido, com o fundamento em que não havia sido suscitada pelo recorrente, durante o processo, a questão da constitucionalidade do art. 69º nº 2 da LPTA, uma vez que não havia sido levada às conclusões de recurso, pelo que, em consequência, sobre ela não se pronunciou o Tribunal no Acórdão recorrido.
6 - Contra este despacho de não admissão do recurso apresentou o recorrente, em
6 de Fevereiro de 1998, a reclamação para o Tribunal Constitucional que agora se aprecia, aduzindo na exposição das razões que a justificam, em síntese, o seguinte:
'...31. Para o indeferimento do recurso para o Tribunal Constitucional, alicerçou-se a mui douta Decisão em reclamação no facto de o ora reclamante não ter levado para as conclusões do recurso interposto a questão da inconstitucionalidade do art. 69º/2 da LPTA e considerar, assim, que o mesmo abandonou implicitamente tal questão.
32. Apesar de reconhecer (pelo menos, implicitamente!) que tal questão havia sido posta nas alegações.
33. Assim, mui doutamente veio a concluir '...não ter sido suscitada pelo recorrente a questão da inconstitucionalidade durante a pendência da causa, por tal questão não ter sido levada às conclusões do recurso e, assim, dela não se ter pronunciado o TSJ no acórdão ora recorrido'.
34. Ora - salvaguardando de novo o muito devido e honroso respeito - , se, por um lado, não nos parece que a pretendida apreciação de inconstitucionalidade do art. 69º/2 da LPTA pelo Tribunal Constitucional carece de ser também levada às conclusões de recurso apresentado na pendência da causa, por outro lado, o Tribunal Superior de Justiça atentou e aderiu a uma determinada interpretação do art. 69º/2 da LPTA, que mui doutamente reputa de conforme às diversas versões do art. 268º da Constituição (cfr. idem, fls. 122 a 124).
35. O recurso interposto pelo ora reclamante para o Tribunal Constitucional fundou-se, além do mais e no que importa, no art. 280º/1/b da CRP e no art.
70º/1/b da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que, com teor semelhante, prevêem o direito ao recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
36. Com esta norma pretende-se acautelar um conhecimento prévio da questão de inconstitu-cionalidade suscitada pelo Tribunal do qual se recorre.
37. Ora, como se viu - e salvo o respeito por entendimento contrário - o reclamante suscitou a questão da inconstitucionalidade do art. 69º/2 da LPTA no
âmbito das alegações de recurso para o Tribunal Superior de Justiça, pese embora não tenha levado tal questão para as conclusões de recurso.
38. Assim sendo, deve considerar-se suscitada tal questão de inconstitucionalidade durante a presente causa.
39. E não deve, assim, considerar-se necessário que tal questão de inconstitucionalidade tivesse que ser também levada às conclusões de recurso, por aplicação dos artigos 676º/1, 660º/2/2ªparte/3, 684º/2/2ª parte e 690º/1/3 do Código de Processo Civil.
40. Ao assim não ter entendido, violou a mui douta Decisão do Tribunal de Justiça de Macau de que ora se reclama os artigos 280º/1/b da CRP, 70º/1/b e 73º da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
41. E aplicou indevidamente os referidos artigos 676º/1, 660º/2/2ªparte/3,
684º/2/2ª parte e 690º/1/3 do Código de Processo Civil.
42. Com efeito, admitindo-se que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada mas não foi levada às conclusões de recurso não pode presumir-se ou concluir-se que tal questão foi abandonada, atenta a irrenunciabilidade do direito ao recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 73º da Lei 28/82, de
15 de Novembro).
43. Ainda que não se entenda conforme o que vem de se expor - e sem prescindir - o recurso interposto para o Tribunal Constitucional deveria ter sido admitido porque o mui douto Acórdão de que se pretende recurso, em última instância, aplicou no presente caso, como se viu, inesperadamente, a norma do art. 69º/2 da LPTA, sem que ao ora reclamante se tivesse dado oportunidade de se pronunciar sobre a mesma.
44. Sob pena de, por esta via, se limitar o direito fundamental do ora reclamante de acesso aos Tribunais e ao Direito (art. 20º/1 da CRP)'.
7 - Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido da improcedência da presente reclamação, alegando, em síntese, que o ora reclamante não suscitou de forma adequada e tempestiva, podendo fazê-lo, a questão de inconstitucionalidade normativa que constituía objecto do rejeitado recurso de constitucionalidade interposto, fundado na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei 28/82.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - Fundamentação
8 - O recurso previsto na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que: a) o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - e que; b) não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado a norma ou a interpretação normativa - no julgamento do caso. Quanto ao pressuposto de admissibilidade do recurso referido em a) constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, e de forma processualmente adequada, quando tal se faz em tempo e em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para resolver e, consequentemente, a poder e dever decidir. Tal implica, em suma, que a questão seja suscitada de forma clara e perceptível
(nesse sentido, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 269/94, 102/95 e 595/96 in Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994, II Série, de 17 de Junho de 1995 e II Série, de 22 de Julho de 1996, respectivamente), antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita; ou seja: em regra, antes da prolação da sentença
(veja-se, entre muitos nesse sentido, os Acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do T.C., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente). Somente tem este Tribunal admitido que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - seja suscitada depois de proferida a decisão em hipóteses, excepcionais, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida. Quanto ao pressuposto de admissibilidade do recurso referido em b) tem-se dito, fundamentalmente, que essa admissibilidade está condicionada por uma efectiva aplicação, como ratio decidendi e não simples obiter dictum da norma - ou interpretação normativa - cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo (nesse sentido, entre muitos, os Ac. 284/94 e 367/94, in Acórdão do T.C., 27º vol., pp. 809 e ss. e 28º vol., pp. 147 e ss., respectivamente).
9. Enunciada, em termos genéricos, a forma como este Tribunal tem interpretado os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, que no caso estão em discussão, cumpre agora ver de que forma é que essa jurisprudência se aplica ao caso que é objecto dos autos.
10. Considera o reclamante que suscitou durante o processo e de forma processualmente adequada - concretamente nas alegações de recurso para o Tribunal Superior de Justiça - a questão da constitucionalidade do nº 2 do art.
69º da LPTA. Considera ainda que, mesmo que assim não se entenda, sempre seria de admitir o recurso por ter o recorrente sido surpreendido com a inesperada aplicação pela decisão recorrida da norma cujo pedido de apreciação da constitucionalidade é objecto do mesmo. Porém, como vai ver-se, ao reclamante não assiste razão. Nem a questão da constitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 69º da LPTA - pelo menos quando interpretada com o sentido com que, a final, veio a ser aplicada pela decisão recorrida - , foi suscitada, de forma processualmente adequada, antes de proferida a decisão recorrida, nem o reclamante foi confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação dessa norma, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão da sua constitucionalidade antes da prolação da decisão.
11. Quanto à questão de saber se o recorrente suscitou, antes de proferida a decisão recorrida e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade do nº 2 do art. 69º da LPTA - quando interpretado com o sentido com que veio a ser aplicado pela decisão recorrida -, a resposta a dar é negativa. Vejamos porquê. Referiu o recorrente nos pontos 64 a 67 das alegações de recurso para o Tribunal Superior de Justiça de Macau:
'...64. Por último, não deixa de se atentar na mui douta alusão feita na Decisão em recurso quanto à questão dos vencimentos e outros abonos não constituírem simples operações materiais, antes assumindo a natureza de verdadeiros actos administrativos geradores de efeitos jurídicos externos, impugnáveis, e de poder-se colocar a questão do caso decidido ou resolvido por falta de interposição do recurso, por forma a obstar à utilização da acção proposta pelo A. (cfr. fls. 7 dos autos).
65. No modesto entendimento do R., esta douta alusão corresponde a uma interpretação do art. 69º/2 da LPTA segundo a qual a acção de reconhecimento de um direito ou interesse legítimo teria um carácter puramente residual (teoria do alcance mínimo).
66. Ora, e tal como entende o Prof. Doutor J.C. Vieira de Andrade, já desde a revisão constitucional de 1989 que não há dúvidas sobre a inadmissibilidade de tal interpretação, por não assegurar uma tutela efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos em determinadas situações, como - acrescenta-se
- a situação decorrente dos presentes autos (v. Justiça Administrativa, lições impressas na Faculdade de Direito da Universidade de Macau, ano 1997/1998, págs.
120 e ss.).
67. É esta uma das situações em que com flagrância se alcança a imprestabilidade da teoria do alcance mínimo, na medida em que em termos práticos e de garantia de tutela de um direito, não se vê como o A. poderia ter interposto recurso sequer de um acto da entidade dirigente do organismo onde se encontrou a exercer funções, em regime precário e temporário de comissão de serviço e sem qualquer princípio de renovação automática para o seu termo'. Ora, independentemente de saber se seria ou não necessário, para que a questão se pudesse considerar suscitada durante o processo de forma processualmente adequada, que a questão da constitucionalidade do art. 69º nº 2 da LPTA fosse levada às conclusões das alegações de recurso; ou, mesmo, independentemente da questão de saber se a suscitação da questão de constitucionalidade foi, no caso concreto, feita em termos claros e perceptíveis, a verdade é que da confrontação da transcrição acima feita - da parte das alegações em que o recorrente pretende que suscitou a questão da constitucionalidade do art. 69º nº 2 da LPTA - com os termos da fundamentação da decisão recorrida, resulta evidente que a presente reclamação não pode proceder.
É que, quando muito, o que o recorrente teria suscitado nos pontos 64 a 67 das alegações de recurso para o Tribunal Superior de Justiça teria sido a questão da inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 69º da LPTA, quando interpretado e aplicado com o alcance que lhe confere a denominada 'teoria do alcance mínimo', que vê nas acções um meio processual meramente residual em relação ao recurso contencioso, só susceptível de ser utilizado quando, em abstracto, não existir outro meio processual à disposição do particular para obter a tutela eficaz das suas posições subjectivas; quando - como, aliás, se refere na decisão do Tribunal Superior de Macau que decidiu indeferir o recurso de constitucionalidade que o ora reclamante pretendeu interpor -, não foi essa a interpretação a que, a final, aderiu a decisão recorrida (embora não deixe de sobre ela efectuar um juízo de constitucionalidade), mas aquela outra, mais moderada, que se convencionou designar por 'teoria do alcance médio' e que sustenta já não o carácter residual mas complementar deste meio processual (as acções) em relação ao recurso contencioso. Nesse sentido escreveu-se na fundamentação da decisão recorrida:
'Hoje, a jurisprudência mais recente do STA tem evoluído no sentido de atribuir
à acção para o reconhecimento de direito ou interesse legítimo, em vez do carácter residual que lhe atribuía a jurisprudência anterior, antes a natureza de via complementar dos meios contenciosos comuns (Acs. Do STA de 27.03.90, Rec.
27.635 - AD nº 359, págs. 1195 e segs. - e de 03.03.94, Rec. 33.290). Quer dizer: tendo surgido tal acção para assegurar a tutela de direitos ou interesses não cabalmente garantidos pelos outros meios contenciosos, ela só será aplicável quando por seu intermédio se obtenham efeitos não susceptíveis de ser conseguidos através de qualquer das outras vias contenciosas. De qualquer modo, quer se siga a via mais radical do carácter residual, quer a via mais moderada do carácter complementar da acção, a solução para o caso que agora nos interessa é sempre a mesma. Assim, face ao disposto no nº 2 do art. 69º da LPTA, não é possível ao interessado optar por qualquer das vias: recurso ou acção. Ele terá, antes, de, obrigatoriamente, lançar mão, sempre que exista um acto administrativo definidor da sua actuação jurídica, do recurso e dos demais meios acessórios e só poderá lançar mão do meio complementar da acção para reconhecimento de um direito quando por seu intermédio se obtenham os efeitos não susceptíveis de serem alcançados através daqueles primeiros meios contenciosos. Se se chegar à conclusão que o recurso é o meio adequado à tutela judicial efectiva das posições subjectivas dos particulares, o recurso e a respectiva execução de sentença anulatória terá de ser a via escolhida, não podendo o interessado, a seu talante, prescindir do recurso e escolher a via da acção. Face aos princípios legais atrás enunciados, tinha o ora recorrente, no caso sub judicio, necessidade de lançar mão da via da acção para conhecimento de direito ou interesse legítimo, ou seja, os meios do recurso contencioso e os relativos à execução da sentença anulatória não eram suficientes para assegurar a efectiva tutela jurisdicional dos direitos arrogados na presente acção ? A resposta a esta última questão não poderá deixar de ser positiva, ou seja, os meios do recurso contencioso eram suficientes, conforma passaremos a demonstrar'. E, mais à frente:
'Não é esta última a situação dos presentes autos, como vimos, visto que o recorrente, se tivesse, em tempo oportuno, interposto recurso contencioso dos actos que definiram, mensalmente, os seus vencimentos e subsídios de férias e de Natal, bem como recurso hierárquico necessário, seguido de recurso contencioso, do acto que definiu a sua situação jurídica no concernente à indemnização a que tinha direito nos termos do nº 4 do art. 5º do DL nº 85/89/M, de 21 de Setembro, e dos artºs 16º, nº 1 do DL nº 7/92/M, de 29 de Janeiro e 18º, nº 2 do DL nº
88/89/M, de 21 de Dezembro, e requerido a consequente execução das sentenças anulatórias nos termos do DL nº 256-A/77, de 17 de Junho, não obteria, pela via da acção, efeito que não pudesse conseguir pela via do recurso contencioso, que, deste modo, se apresentava como o meio processual adequado à tutela efectiva e integral dos seus direitos ou interesses legítimos eventualmente violados e que pretendia ver definidos pela referida acção'. Em suma: a racio decidendi da decisão recorrida, o fundamento normativo que, a final, utilizou na decisão da causa, não foi o que resulta da interpretação do 2 do art. 69º da LPTA com o
sentido que o recorrente reputa de inconstitucional (teoria do alcance mínimo), mas um outro sentido do preceito, que vê nas acções um meio complementar dos recursos contenciosos (teoria do alcance médio), e a inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do art. 69º da LPTA, quando interpretada neste sentido, inequivocamente não foi suscitada pelo ora reclamante nas alegações de recurso para o Tribunal Superior de Justiça de Macau. Assim, e ainda que fosse de entender que o reclamante suscitou, de forma processualmente adequada, a questão da inconstitucionalidade do nº 2 do art. 69º da LPTA, quando interpretada no sentido que corresponde ao da chamada 'teoria do alcance mínimo', sempre faltaria um dos pressupostos de admissibilidade do recurso que o recorrente pretendeu interpor; a saber: que a decisão recorrida tenha, a final, aplicado a norma, como sua ratio decidendi, na dimensão normativa que o recorrente reputa de inconstitucional.
12. E também não procede a alegação, feita pelo reclamante, de que foi confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão da sua constitucionalidade antes da prolação da
decisão.
É certo que o Tribunal Constitucional tem afirmado que o recorrente poderá ainda suscitar a inconstitucionalidade depois da prolação da decisão nas hipótese em que a aplicação da norma - ou de uma sua interpretação - pela decisão recorrida, seja de todo em todo insólita e imprevisível, em termos de ser desrazoável e inadequado exigir ao interessado um prévio juízo de prognose relativo a essa aplicação. Só que, manifestamente, não é esta a situação que está retratada nos autos. Como se refere no parecer do Ministério Público junto deste Tribunal '...estando em causa a definição do campo de aplicação de dois meios procedimentais inseridos no contencioso administrativo - os recursos e as acções - é manifesto que a norma do nº 2 do art. 69º da LPTA, enquanto delimitadora das respectivas
áreas de actuação, irá necessariamente ser chamada à colação, o que, desde logo, se configura como «previsível» para o recorrente que, na sua estratégia processual, contemple a eventualidade de interposição de um recurso de fiscalização concreta'. Acresce, no caso, que o recorrente deveria estar especialmente alertado para essa possibilidade, na medida em que essa questão
tinha já sido colocada pela decisão do Tribunal Administrativo de Macau de que o ora reclamante então recorreu. Assim, sendo a questão que se relaciona com o pressuposto processual de admissibilidade da acção a que se reconduz a excepção dilatória inominada do nº
2 do art. 69º da LPTA de conhecimento oficioso e, para mais, tendo essa questão já sido suscitada na decisão do Tribunal Administrativo de Macau, era razoavelmente exigível ao recorrente que antecipasse a possibilidade de aplicação pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau do art. 69º, nº 2, da LPTA, com o sentido com que o veio a fazer, e, se fosse essa a sua estratégia processual, invocasse e sustentasse a inconstitucionalidade na norma em questão também naquela dimensão normativa. Por ser assim, não procede a alegação de que a suscitação da questão da constitucionalidade do nº 2 do art. 69º da LPTA, depois de proferida a decisão recorrida, ainda se pode, no caso, considerar tempestiva para efeitos de considerar verificado o pressuposto processual do recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III - Decisão Por tudo o exposto, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 10 unidades de conta. Lisboa, 8 de Julho de 1998 José de Sousa e Brito Messias Bento Luis Nunes de Almeida