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Proc. nº 851/96
1ª Secção Rel.: Consº Tavares da Costa
(Consª Maria Fernanda Palma) Falta DEc. de Voto Consª F. Palma Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I O magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos
437º e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), do acórdão desse Supremo Tribunal, de 13 de Janeiro de 1994, proferido no processo nº 45 427, da 3ª Secção, transitado em julgado, o qual, em seu modo de ver, está em oposição com o acórdão do mesmo Tribunal, de 14 de Julho de 1987, igualmente transitado, proferido no processo nº 38 844, da mesma Secção, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 370, págs. 298 e segs.. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 2 de Novembro de 1994, teve por verificada a invocada oposição de julgados e, em consequência, ordenou o prosseguimento dos ulteriores trânsitos do recurso. Conclusos os autos ao Conselheiro relator - para eventual despacho no sentido da notificação dos sujeitos processuais, com o objectivo de alegarem por escrito, em cumprimento do disposto no nº 1 do artigo 442º do CPP - foi entendido dever aguardar-se a decisão, com trânsito, no processo mais antigo que, com o mesmo objecto, corria termos naquele Supremo Tribunal. O Ministério Público discordou desse despacho, manifestando-se no sentido do prosseguimento dos autos, uma vez que, de certo modo, se estaria a impedir, arbitrariamente, a prolação de acórdão, obstando-se a que a fixação de jurisprudência tivesse em conta os argumentos do recorrente, a sua posição e os eventuais reflexos no seu caso, do mesmo passo violando-se o direito constitucional de acesso aos tribunais e o princípio da igualdade perante a lei. O Supremo, por acórdão de 6 de Novembro de 1997, confirmou a posição assumida pelo relator, de acordo com a jurisprudência corrente desse tribunal (cita-se o acórdão de 24 de Abril de 1991, proferido no processo nº 41 782 (3ª Secção), e, do assim decidido, interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro [terá querido escrever alínea b)], uma vez que o aresto
?interpretou/aplicou as normas dos artigos 445º, nº 1, do Código de Processo Penal, 137º e 279º do Código de Processo Civil, em violação do disposto nos artigos 13º, 20º, 29º, nº 4, e 282º, nº 1, da Constituição?. Recebido o recurso, alegou somente a entidade recorrente, que formulou as seguintes conclusões:
'1. As normas constantes dos artigos 445º, nº 1, do Código de Processo Penal, e
137º e 279º, do Código de Processo Civil, violam o disposto nos artigos 13º e
20º da Constituição quando interpretados conjugadamente no sentido de que, estando pendentes vários processos sobre a mesma questão objecto de recurso para fixação de jurisprudência, deve ser suspenso o processo mais recente até ser proferido acórdão a fixar jurisprudência em um deles.
2. Temos em que deve conceder-se provimento ao recurso, relativamente ao decidido sobre a questão de constitucionalidade suscitada.' Corridos os vistos legais, ocorreu mudança de relator por vencimento, cumprindo agora apreciar e decidir. II
1. - Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade a apreciação da conformidade à Constituição da interpretação conjugada das normas contidas nos artigos 445º, nº 1, do CPP, 137º e 279º, ambos do CPC, no sentido de, estando pendentes mais de um processo sobre a mesma questão objecto de recurso para fixação de jurisprudência, dever ser suspenso o processo mais recente até ser proferido acórdão a fixar jurisprudência no processo mais antigo. Sustenta o recorrente que a interpretação normativa conducente à suspensão da instância dos processos em curso, em função do 'processo mais antigo' ou do
'processo onde primeiro foi proferido o acórdão sobre a questão preliminar de oposição relevante de acórdãos', apoia-se em critérios arbitrários, obstaculizantes de regras que definam saudavelmente a prioridade a estabelecer, traduzindo-se numa limitação arbitrária do direito do recorrente, que, ao ser privado de discutir no 'seu' processo o objecto do recurso em causa, não vê considerados nem ponderados os argumentos por si aduzidos nem aproveita da produção colateral de efeitos (e, desse modo, retoma a orientação crítica anteriormente assumida, ao anotar o acórdão de 19 de Março de 1992, do mesmo Supremo, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 3, vol. 1º, págs.129 e segs.). Assim, e ainda na perspectiva do recorrente, a apontada interpretação violaria o disposto nos artigos 13º e 20º da CR.
2.1. - Nos termos do artigo 445º do CPP, sem prejuízo do disposto no artigo
443º, nº 3, a decisão que resolver o conflito (subentendido no recurso extraordinário para fixação de jurisprudência) tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais (nº 1), competindo ao Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos, rever a decisão recorrida ou reenviar o processo (nº 2). A referência ao nº 3 do artigo 443º, que remete, por sua vez, para o artigo 409º do mesmo Código, significa que devem ser observadas as regras de proibição da reformatio in pejus, ainda que o recurso tenha sido interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente, salvo quando qualquer destes tiver recorrido, em desfavor do arguido, no processo em que o acórdão recorrido foi proferido. Por sua vez, o artigo 137º do CPC dispõe não ser lícito realizar no processo actos inúteis, enquanto o artigo 279º do mesmo texto de lei, no âmbito da suspensão da instância, contempla as hipóteses em que o tribunal pode ordenar a suspensão, ou seja, e nos termos do seu nº 1, quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta ou quando se entenda ocorrer outro motivo justificado. A decisão recorrida, ao ordenar a suspensão impugnada, teve presente estes normativos que aplicou, interpretando-os, na sua casuística precipitação.
2.2. - Aí se ponderou, nomeadamente, que o princípio da economia de meios, que o artigo 137º do CPC acolhe como princípio de limitação dos actos processuais, ilegitima a realização no processo de actos inúteis, admitindo a própria lei processual - independentemente de consagrar, de igual modo, no artigo 266º, o princípio da celeridade processual - a suspensão da instância ?quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proferida e quando entender que ocorre outro motivo justificado? (citado artigo 279º). A suspensão da instância, como reconhece e sublinha o acórdão, não pode ser arbitrária, sendo decidido em função do caso concreto que se apresente. Ora, considerando o quadro fáctico subjacente, o Supremo entendeu não se configurar violação dos princípios da igualdade ou do acesso aos Tribunais pois que '[...] sendo o Ministério Público o recorrente em ambos os recursos e tratando-se de um recurso para fixação de jurisprudência, em que o conflito deve ser resolvido no interesse da lei e sendo apreciado pelo mesmo corpo de juízes
(plenário das Secções criminais) a decisão encontrada é igual para ambos os processos, sendo ?irrelevantes? os eventuais argumentos do processo suspenso'. Mais adiante, ao abordar a questão da eficácia do acórdão que fixa a jurisprudência e de acordo com o disposto no artigo 445º do CPP, observa-se que o nº 1 deste preceito 'não refere que a decisão que resolver o conflito tenha só ou apenas eficácia no processo em que o recurso foi interposto [...]'
(sublinhado original), só a suspensão impedindo actividade processual inútil, no caso vertente não prejudicando o processo suspenso.
3. - O direito de acesso aos tribunais, consagrado no nº 1 do artigo 20º da CR, implica que a garantia da via judiciária, enquanto expressão de tutela judicial efectiva, contemple o direito a recorrer a um tribunal para que este se pronuncie sobre a questão jurídica que lhe é colocada, o que significa, designadamente, que a última palavra cabe aos tribunais (cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª edição, Coimbra, 1993, pág. 238). Esta garantia constitucional, no entanto, não vai ao ponto de impor um determinado 'modelo' de processo, vinculativo para o legislador ordinário, pelo que, em princípio, este goza de 'liberdade constitutiva' para dispor quanto às regras adjectivas a observar. Escreve a este respeito Gomes Canotilho que o direito de acesso aos tribunais, na sua vertente de direito a uma protecção jurisdicional adequada, exige, como conteúdo constitucional e internacional mínimo, que a protecção jurisdicional não seja aniquilada em virtude da inexistência de uma determinação legal da via judicial adequada, observando que não bastará, no entanto, o facto de a lei assegurar, de qualquer forma, mesmo vaga e imprecisa, a abertura da via judiciária, impondo-se que essa determinação não se traduza, na prática, 'num jogo formal sistematicamente reconduzível à existência de formalidades e pressupostos processuais cuja 'desatenção' pelos particulares implica a 'perda automática das causas' (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, págs. 452-453). Nada impede, a esta luz, que o legislador estabeleça um elenco de situações e de critérios que possibilitem a utilização do mecanismo processual da suspensão da instância, nomeadamente quando assim o aconselhem razões de eficácia processual, concretamente de utilidade e de celeridade (cfr., a este propósito, v.g., o acórdão deste Tribunal, nº 222/90, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Setembro de 1990). Ora, os critérios de suspensão da instância que o complexo normativo em causa forneceu ao Supremo, e a interpretação que este deles fez, nada têm de arbitrário, uma vez que se inserem em parâmetros de razoabilidade, adequação e proporcionalidade. Eles traduzem razões objectivas de celeridade e economia processuais e subentendem, necessariamente, prévia valoração feita pelo tribunal, como órgão aplicador do direito, o que este faz (fez, in casu) em casuística apreciação, moldada no quadro referencial de valores fornecidos pela abstracta previsão normativa. Assim, independentemente das questões de saber se está em causa, no concreto caso, apenas o interesse objectivo de uniformização da aplicação do direito, subjacente no recurso de fixação de jurisprudência, ou também o direito do recorrente em ver alterada a decisão recorrida num sentido que lhe seja favorável, designadamente sendo este o Ministério Público - questões latentes que não se abordarão, por a economia do acórdão o dispensar - conclui-se pela inexistência de uma restrição constitucionalmente censurável, na perspectiva do artigo 20º da CR, da interpretação levada a efeito: contrariamente ao defendido pelo recorrente, não teve lugar uma aplicação normativa automática, mas sim ocorreu uma subsunção precedida de juízo valorativo, ditado por uma lógica de celeridade e economia processuais. E, na realidade, não se afigura desrazoável, inadequado e desproporcionado que, perante a existência de mais de um recurso interposto com a finalidade de uniformizar jurisprudência sobre a mesma questão de direito, objecto de soluções opostas, encontrando-se os autos em diferenciadas fases processuais, se lance mão da suspensão da instância nos termos em que o Supremo o fez.
4. - Semelhantemente há que decidir quanto à alegada ofensa do princípio da igualdade. Exige este, como é pacífico, que se dê tratamento igual ao que é essencialmente igual e se trate diferentemente o que for essencialmente dissemelhante. A observância do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CR, não significa, assim, proibição de distinções de tratamento, só interditando as que estabeleçam diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento legal bastante. Ou seja, como se exprimiu o acórdão nº 226/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1992) dizer igualdade é afirmar a proibição do arbítrio, do irrazoável, do injustificado, o que não significa, porém, que determinadas circunstâncias, à primeira vista 'idênticas' ou 'iguais', sob certa perspectiva, tenham, necessariamente o mesmo tratamento legal. Se entre essas situações ocorrerem, considerando outro aspecto das coisas, diversidades ou divergências significativas e relevantes, estará legitimada constitucionalmente
- se o não for exigido - a diversidade dos respectivos regimes (assim se ponderou no acórdão nº 99/88 e se retomou no acórdão nº 413/89, publicados no Diário citado, II Série, respectivamente de 22 de Agosto de 1988 e de 15 de Setembro de 1989). Ora, à luz desta principiologia e considerando que ao princípio da igualdade basta que os critérios de qualificação da igualdade se encontrem justificados pelo fim a atingir com o tratamento jurídico em causa (assim, Maria da Glória Ferreira Pinto, 'Princípio da igualdade. Fórmula vazia ou fórmula «carregada» de sentido?' in - Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, pág. 46) não se tem por susceptível de censura jurídico-constitucional a interpretação do transcrito complexo normativo feita no caso sub judicio, de modo a, aplicando-o, justificar a suspensão da instância nos termos assinalados. De resto, a interpretação feita constitui a garantia de um tratamento de igualdade entre todos os recorrentes quanto à mesma questão de direito. III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 6 de Outubro de 1998 Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Artur Mauricio (vencido nos termos da declaração de voto da Exmª Consª. Maria Fernanda Palma) Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto da Exmª Conselheira Maria Fernanda Palma) José Manuel Cardoso da Costa