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Processo n.º 25/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A C..., SA interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Novembro de 1998.
Pretende a recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade da interpretação feita pelo acórdão recorrido da norma constante do n.º 1 do artigo
871º do Código de Processo Civil, no sentido de que a referência aí feita a
'mais de uma execução sobre os mesmos bens' abrange também as execuções fiscais.
O acórdão recorrido (de 25 de Novembro de 1998) negou provimento ao recurso que a recorrente interpusera do acórdão da Relação de Lisboa (de 4 de Junho de
1998), que tinha negado provimento ao agravo por si apresentado contra o despacho judicial (de 22 de Setembro de 1997) que, ao abrigo do citado artigo
871º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ordenara a sustação da execução por ela instaurada, em 15 de Novembro de 1995, no 10º Juízo Cível de Lisboa (1ª Secção), contra A..., para cobrança da quantia de 6.605.732$00 (acrescida de juros), proveniente de um empréstimo que lhes fizera.
Os executados, no contrato de mútuo celebrado entre eles e a C..., tinham dado de hipoteca a fracção autónoma designada pela letra 'Z', correspondente ao 11º andar direito do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o n.º 29.584, do Livro B-84, e inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 1.178º. Essa fracção autónoma veio a ser penhorada na execução instaurada pela C..., sendo a penhora definitivamente registada na referida Conservatória, sob o n.º
8.192, em 7 de Maio de 1997, para garantia da quantia exequenda. No entanto, sobre a mesma fracção autónoma incidiam já duas outras penhoras com registos anteriores àquele: uma, a favor da Fazenda Nacional, de 1 de Julho de
1996, para garantia da quantia de 54.786.115$00; outra, a favor do Banco Mello, SA, de 14 de Fevereiro de 1997, para garantir a quantia de 1.530.027$00.
Foi por verificar a existência das duas penhoras por último referidas, que o Juiz da 1ª Instância, na execução instaurada pela C..., proferiu, nos termos do n.º 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil, o despacho, a que já se aludiu, a ordenar a sustação de tal execução. Foi desse despacho que a C... agravou (primeiro, para a Relação de Lisboa; e, depois, para o Supremo Tribunal de Justiça), mas sempre sem êxito.
No agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, a C... sustentou que não devia ter-se determinado a sustação da execução que instaurara, mas antes dado
'cumprimento ao disposto no artigo 864º do Código de Processo Civil',
'provocando [ -se] , assim, a intervenção da Fazenda Nacional', a qual, então, iria 'ao processo cível reclamar os seus créditos', se o quisesse fazer. E que,
'decidindo-se de maneira diferente', se violaram várias normas constitucionais, que indicou.
Neste Tribunal, a recorrente, ao ser notificada para alegar, veio 'dar por reproduzidas as [ alegações] que apresentou em 28 de Dezembro de 1998, com os esclarecimentos adicionais de 3 de Fevereiro de 1999'. Regista-se que as alegações de 28 de Dezembro de 1998, dirigiu-as a recorrente a este Tribunal, embora as tenha produzido achando-se ainda o recurso no Supremo Tribunal de Justiça; e que 'os esclarecimentos' a que se refere são a resposta ao convite que o ora relator lhe fez para dar cabal cumprimento ao artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
A recorrente concluiu as suas referidas alegações, dizendo que 'o douto acórdão recorrido violou as seguintes normas constitucionais:
(a). artigo 18º da CRP, pois o acórdão recorrido, restringindo inadmissivelmente o direito subjectivo da recorrente, peca por violação do princípio da proporcionalidade ou princípio da proibição do excesso;
(b). artigo 20º, n.º 2, da CRP: o acórdão recorrido nega à recorrente o acesso aos tribunais para defesa e efectivo exercício dos seus direitos de credora hipotecária;
(c). artigo 62º, n.º 1, da CRP: o acórdão recorrido veda à recorrente o ressarcimento, em tempo útil, do seu direito de crédito, o qual tem natureza patrimonial;
(d). artigo 205º da CRP: o acórdão recorrido recusa, na prática, à recorrente a administração da justiça, ao menos na perspectiva de que esta deve ser exercida em tempo útil;
(e). Artigo 296º da CRP: o acórdão recorrido não assegura à recorrente a defesa do seu direito de crédito e, na prática, não dirime o conflito de interesses que subjaz à acção;
(f). artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil: por não aplicável às execuções fiscais'. Os recorridos, que aqui estão representados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, concluíram do modo que segue as suas alegações:
1ª. A interpretação da norma constante do artigo 871º do Código de Processo Civil, traduzida em aplicar o normal regime de sustação da instância executiva, com fundamento da existência de anterior penhora dos mesmos bens à ordem da execução fiscal - sem que, porém, o regime vigente no Código do Processo Tributário faculte ao exequente a imediata reclamação na execução fiscal do seu crédito e da garantia que lhe é inerente, a qual só poderá verificar-se após a consumação da venda dos bens à ordem desta execução - constitui restrição excessiva e desproporcionada ao direito de acesso aos tribunais, destinado a obter, de forma eficaz e em tempo útil, a realização prática da garantia patrimonial do credor.
2ª. Na verdade, durante o hiato temporal que pode ocorrer entre a sustação da execução comum e o momento temporalmente adequado para o credor reclamar na execução fiscal a garantia emergente da penhora que obteve - sendo certo que nesta a instância poderá permanecer suspensa por períodos prolongados e indetermináveis - está o exequente privado de desencadear qualquer actuação processual tendente à efectivação da garantia patrimonial do seu crédito.
3ª. Tal restrição do direito de acesso aos tribunais - que decorreria da obrigatória e oficiosa sustação da execução comum, sem que se faculte ao exequente imediata intervenção principal na execução fiscal, cujos termos prosseguem - não é justificada pela específica natureza e necessidade de tutela dos créditos tributários, já que à Fazenda Nacional é lícito reclamar os seus direitos na execução comum, acautelando a hipótese de a venda dos bens duplamente penhorados acabar por preceder a venda à ordem da execução fiscal.
4ª. Verificando-se, porém, no caso dos autos, que está pendente uma outra execução comum, em que a penhora é anterior à da exequente, é inevitável a sustação da presente execução, nos termos do n.º 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil, o que implica que sempre teria de ser confirmada a decisão recorrida, por fundamento perfeitamente autónomo relativamente às questão de constitucionalidade suscitada.
5ª. Nestes termos - e tendo em conta o carácter instrumental dos recursos de constitucionalidade - não deverá, pela razão apontada, conhecer-se do presente recurso.
Tendo o MINISTÉRIO PÚBLICO suscitado a questão prévia do não conhecimento do recurso, foi sobre essa questão ouvida a C... que veio responder, dizendo existir interesse no conhecimento do recurso, uma vez que a execução de que ele emerge foi sustada por causa da penhora fiscal anterior, e não por via da penhora decretada na outra execução comum.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Advertência prévia: A leitura das conclusões da alegação pode inculcar a ideia de que a recorrente imputa a inconstitucionalidade ao acórdão recorrido, e não à interpretação que nele se faz da norma constante do artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil - interpretação que é a de que a referência aí feita a 'mais de uma execução sobre os mesmos bens' abrange também as execuções fiscais. Ora, se tal ideia fosse exacta, o Tribunal não podia conhecer do recurso, uma vez só lhe é permitido apreciar questões de inconstitucionalidade normativa. Lendo, porém, a alegação, logo se vê que é uma questão de inconstitucionalidade normativa que a recorrente verdadeiramente coloca, não obstante indicar também o mencionado artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil como norma violada pelo acórdão recorrido. Foi, de resto, como questão de inconstitucionalidade normativa que a entendeu - e decidiu - o acórdão recorrido, que, a tal propósito, se refere à 'mão cheia de ‘violações constitucionais’ que a recorrente atira [ ...] ao artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil'.
4. A questão prévia: Sustentam os recorridos que, tendo em conta o carácter instrumental dos recursos de constitucionalidade, se não deve conhecer do recurso, uma vez que, 'no caso dos autos, está pendente uma outra execução comum, em que a penhora é anterior à da exequente', sendo, por isso, 'inevitável a sustação da presente execução, nos termos do n.º 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil, o que implica que sempre teria de ser confirmada a decisão recorrida, por fundamento perfeitamente autónomo relativamente às questão de constitucionalidade suscitada'.
E, na verdade, como decorre do relato que atrás se fez, in casu, sobre a fracção autónoma, que foi objecto de penhora na execução instaurada pela C..., não pende apenas a execução fiscal. Sobre esse bem imobiliário acha-se também pendente uma execução comum - a execução instaurada pelo Banco Mello. E, em qualquer destas duas execuções (a execução fiscal e a execução comum), a penhora é anterior à da ora recorrente, pois os respectivos registos precedem os desta última. E isso levou o acórdão recorrido a afirmar que, como 'qualquer delas justifica plenamente a decisão recorrida', e a recorrente só levanta a questão relativamente a uma das execuções (recte, quanto à execução fiscal), tal 'torna absolutamente inconsequente o [ ...] recurso'.
Tal, porém, não significa que um eventual julgamento de inconstitucionalidade, por parte deste Tribunal, da norma constante do n.º 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil, na interpretação que dela fez o acórdão recorrido, não seja susceptível de influir no julgamento do recurso interposto pela C... perante o Supremo Tribunal de Justiça. De facto, proferido esse juízo, o aresto recorrido haveria de ser reformado quanto ao julgamento da apontada questão de constitucionalidade, não obstante, por causa da anterioridade da penhora do Banco, a execução da C... sempre ter que continuar sustada. Só que a sustação da execução passava a ter como fundamento apenas a preexistência da penhora na execução comum, e não também a existência de uma penhora anterior sobre o mesmo imóvel levada a efeito na execução fiscal. Existe, por isso, interesse processual na decisão da questão de constitucionalidade colocada no recurso. Sendo isto assim, não há qualquer obstáculo processual a que se conheça do objecto do recurso.
5. O objecto do recurso: O objecto do recurso é o de saber se, como sustenta a recorrente, é inconstitucional o n.º 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil, interpretado por forma a abranger as execuções fiscais e as penhoras nelas efectuadas na referência que faz a mais de uma execução pendente sobre os mesmos bens.
Pois bem: o n.º 1 do citado artigo 871º dispõe como segue:
1. Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, sustar-se-á quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga; se a penhora estiver sujeita a registo, é por este que a sua antiguidade se determina.
A norma acabada de transcrever dispõe que, no caso de, sobre os mesmos bens, pender mais do que uma execução, o juiz ordena a sustação daquela em que a penhora for posterior. Isto, para evitar que corram em paralelo diversas execuções em que tenham sido penhorados os mesmos bens, para garantir o pagamento de créditos pertencentes a exequentes diferentes.
O regime da sustação da execução, decorrente da norma sub iudicio, é, em síntese, o seguinte: notificada ela ao exequente, pode este, se o desejar, ir reclamar o seu crédito na execução em que a penhora é mais antiga, no prazo de
15 dias, a fim de o mesmo aí ser graduado (cf. o citado artigo 871º, nºs 1 e 2, conjugados com o n.º 2 do artigo 865º do mesmo Código). Se o fizer, passa a ter intervenção principal nas fases subsequentes desta última execução, como tudo bem decorre do artigo 885º, 886º-A e 904º, alínea a), do mencionado Código. Mais: no caso de esta execução vir a ser julgada extinta, ele pode, até ao trânsito em julgado da respectiva sentença, requerer o prosseguimento dela, com vista ao pagamento do seu crédito (cf. artigo 920º, n.º 2, do mesmo Código). Além disso, na execução sustada, o exequente pode desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e nomear outros em sua substituição (cf. o n.º 3 do referido artigo 871º).
Isto é assim, quando a execução sustada e a que continua a correr termos forem ambas execuções comuns. As coisas já, porém, se passam algo diferentemente, no caso de a execução que prossegue seus termos, por a penhora ser aí anterior, ser uma execução fiscal. Nesta última hipótese, com efeito, o exequente, que viu a sua execução sustada, tem que ajustar-se ao processamento específico do Código de Processo Tributário. E, assim, para reclamar o seu crédito na execução fiscal, tem que aguardar pela venda dos bens penhorados (cf. artigo 229º deste último Código). Ao que acresce que, se o devedor requerer o pagamento da dívida fiscal em prestações e tal for deferido, o credor pode ver a satisfação do seu crédito atrasada 5 anos, pois que as prestações podem, nalguns casos, estender-se por esse período de tempo
(cf. o artigos 279º, n.º 5 do respectivo Código), e, apesar disso, a penhora mantém-se (cf. artigo 317º, n.º 1, do mesmo Código). Depois, nalguns casos de reclamação graciosa, impugnação judicial ou recurso judicial, tendo por objecto a discussão da legalidade da dívida exequenda, a execução suspende-se até que aqueles pleitos sejam decididos (cf. artigo 255º, n.º 1, do dito Código), tal como se suspende quanto aos bens penhorados, quando se discuta, em acção judicial, a propriedade ou posse dos mesmos (cf. artigo 256º do respectivo Código) - o que tudo são situações capazes de atrasar a realização do direito daquele que viu a sua execução sustada.
Pergunta-se, então: será inconstitucional o artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil, interpretado por forma a que a execução comum, em que se penhorem bens já anteriormente penhorados numa execução fiscal, deve ser sustada?
É o que vai ver-se.
6. A questão de constitucionalidade:
6.1. Adianta-se que não assiste razão à recorrente no que concerne à invocada violação do artigo 62º, n.º 1, da Constituição, a qual, no seu entender, consistiria em que 'o acórdão recorrido veda à recorrente o ressarcimento, em tempo útil, do seu direito de crédito, o qual tem natureza patrimonial'.
É certo que no direito de propriedade (consagrado no citado artigo 62º, n.º 1) se inclui a garantia constitucional do credor à satisfação do seu crédito, se necessário à custa do património do devedor [ cf. acórdão n.º 451/95 (publicado no Diário da República, I série-A, de 3 de Agosto de 1995)] . Simplesmente, um tal direito do credor não é violado pela norma sub iudicio, como vai ver-se.
No processo de execução fiscal, existia, na verdade, um normativo - o do artigo
300º, n.º 1, do Código de Processo Tributário - que, em parte (recte, no ponto em que estabelecia o regime de impenhorabilidade total dos bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças, em execução fiscal), importava violação desse direito do credor. Simplesmente, essa norma foi, nessa parte, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo mencionado acórdão n.º 451/95. Eliminada do ordenamento jurídico uma tal restrição, adquiriu pleno vigor a regra de que, no processo executivo comum, todo o património do devedor é susceptível de penhora: de facto, passaram a poder penhorar-se nele todos os bens penhoráveis do devedor, inclusive aqueles que estejam penhorados numa execução fiscal. E isto importou, naturalmente, um reforço da garantia dos credores comuns: na verdade, embora a penhora que eles promovam não possa prevalecer sobre a da Fazenda Nacional, por lhe ser posterior, o simples facto de a poderem conseguir já lhes permite acautelar o seu direito no confronto com outros credores comuns que só ulteriormente instaurem as suas execuções. Ora, este resultado não era possível no domínio do citado artigo 300º.
Pois bem: este reforço de garantias do credor comum em nada é afectado pela sustação da execução comum (ex vi do disposto no artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil), no caso de o bem aí penhorado já ter sido, com anterioridade, objecto de penhora numa execução fiscal, pois, não obstante a sustação da execução, mantém-se inteiramente a garantia do crédito do requerente, que decorre da penhora. E outro tanto sucede com o credor hipotecário.
A posição do credor - seja ele um credor comum ou goze de garantia, designadamente de garantia real (no caso, a C... goza de hipoteca) - não é, assim, prejudicada com a sustação da execução. Além disso, como se viu atrás
(cf. supra 3.), ele pode fazer prosseguir a execução sustada: basta que desista da penhora levada a efeito e nomeie à penhora outros bens do devedor. E mais: pode também acordar com o devedor o pagamento da dívida em prestações (cf. artigo 882º do actual Código de Processo Civil). Assim sendo, tal como se concluiu no acórdão n.º 51/99 (publicado no Diário da República, II série, de 5 de Abril, de 1999), também agora se conclui que a sustação da execução comum em que tenha sido penhorado um bem que anteriormente foi objecto de penhora num processo de execução fiscal - sustação imposta pelo artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil - não afecta (ou diminui) a garantia do credor à satisfação do seu crédito, decorrente do direito de propriedade, consagrado no n.º 1 do artigo 62º da Constituição.
6.2. A norma sub iudicio também não viola o artigo 20º, n.º 2, nem o artigo 18º, ambos da Constituição: ao interpretá-la como interpretou, o acórdão recorrido, contrariamente ao que vem sustentado, não 'nega à recorrente o acesso aos tribunais para defesa e efectivo exercício dos seus direitos de credora hipotecária'; e, não 'restringindo inadmissivelmente o [ seu] direito subjectivo', não 'peca por violação do princípio da proporcionalidade ou princípio da proibição do excesso'.
É certo que a sustação da execução comum importa para o respectivo credor um atraso na cobrança coerciva do seu crédito, quando esta tiver que fazer-se na execução fiscal: de facto, ele tem que aguardar que, aí, se vendam os bens penhorados para, então, reclamar o seu crédito (cf. supra, 3). Simplesmente, a via judiciária continua aberta para esse fim, embora sujeita a demora. Acresce que, como já se disse, o credor pode promover o andamento da execução sustada, nomeando à penhora outros bens que o devedor possua (cf. artigo 885º do Código de Processo Civil). E pode também acordar com ele o pagamento da respectiva dívida em prestações (cf. artigo 882º do mesmo Código). Mais ainda: o credor, cuja execução foi suspensa, sendo um credor hipotecário, como no caso acontece, quando foi citado para a execução fiscal nos termos do artigo 321º do Código de Processo Tributário, podia ter logo reclamado aí o seu crédito, em vez de ir instaurar uma execução autónoma para penhorar um imóvel que já sabia achar-se penhorado pela Fazenda Nacional.
Não obstante a sustação da execução determinada pelo n.º 1 do artigo 871º, n.º
1, do Código de Processo Civil, o sistema legal põe, pois, à disposição do credor civil meios processuais capazes de possibilitar a cobrança do seu crédito, seja em execução autónoma, seja reclamando o pagamento do mesmo na execução fiscal, caso, este último, em que o crédito será graduado para entrar em concurso com outros, mas sempre mantendo as garantias de que, porventura, goze.
O sacrifício imposto pela norma sub iudicio ao credor civil, designadamente no que concerne ao direito de acesso ao tribunal para cobrança do seu crédito, tendo em conta, muito principalmente, os mecanismos processuais que o sistema legal põe à sua disposição para obter uma mais rápida satisfação do seu crédito, não pode, pois, considerar-se excessivo ou desproporcionado: desde logo, porque não pode dizer-se que a norma em causa torne particularmente difícil ou oneroso o exercício de tal direito. Depois, há que não esquecer que a possibilidade, prevista na lei processual tributária, de as dívidas fiscais serem pagas em prestações, com a inevitável consequência de uma dilatação dos prazos, arranca da preocupação que o Estado tem de cobrar efectivamente os seus créditos, ainda que seja de forma faseada. Ora, há-de convir-se que existe nessa preocupação um relevante interesse público, pois, só dispondo de receitas, o Estado pode cumprir os seus deveres para com os cidadãos, designadamente os mais carenciados. Nos dizeres de JOSÉ CASALTA NABAIS (Contratos Fiscais, Coimbra,
1994, página 278), está aí em causa um interesse que é 'vital para a colectividade, já que só a sua satisfação torna possível o regular funcionamento dos serviços públicos'.
Há, assim, que dizer com o mencionado acórdão n.º 51/99: Não é por força do disposto no n.º 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil
(ainda que conjugado com as normas constantes v.g. dos artigos 317º, 321º, 329º e ss., 279º e ss. do Código de Processo Tributário) que o credor fica impossibilitado de conseguir a satisfação do seu crédito, ou que essa satisfação se torna desproporcionadamente mais difícil ou onerosa, tanto mais [ ...] existindo mecanismos processuais ao dispor do credor e dependentes do seu exclusivo impulso para obter, por outras vias, o pretendido ressarcimento. Em nada fica impedido o funcionamento do concurso e graduação dos credores, assegurando-se ao credor formas/mecanismos processuais adequados que respeitam o núcleo essencial do direito de propriedade.
Eventualmente, seria melhor direito um regime processual que, ao invés de impor a sustação da execução comum no caso de, na execução fiscal, terem sido penhorados, com anterioridade, os mesmos bens que o foram naquela, permitisse que as execuções prosseguissem ambas os respectivos trâmites, ficando a Fazenda Nacional com o ónus de ir reclamar os seus créditos à execução comum, se quisesse prevenir a hipótese de a venda dos bens duplamente penhorados se fazer primeiro nesta última. Esta solução legal não é, porém, a única compatível com a Lei Fundamental, pois também a da sustação da execução comum cumpre os desígnios constitucionais.
6.3. Também não existe violação do artigo 205º da Constituição, pois, como decorre do que acabou de dizer-se, o acórdão recorrido, com a interpretação que fez da norma sub iudicio, não 'recusa, na prática, à recorrente a administração da justiça, ao menos na perspectiva de que esta deve ser exercida em tempo útil'
(são palavras da recorrente).
6.4. Por último, sublinha-se que se não descobre como é que o artigo 296º da Constituição, que versa sobre a reprivatização dos bens nacionalizados depois de
25 de Abril de 1974, possa ser violado pela norma sub iudicio. Mais: não se percebe que ligação possa existir entre a invocada violação daquele preceito constitucional e a afirmação de que 'o acórdão não assegura à recorrente a defesa do seu direito de crédito e, na prática, não dirime o conflito de interesses que subjaz à acção'. A isto há, por último, que acrescentar que uma eventual violação do artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não seria recondutível a uma questão de inconstitucionalidade normativa.
6.5. Conclusão: O artigo 871º, n.º 1, do Código de Processo Civil, interpretado por forma a que deve ser sustada a execução comum, em que se penhorem bens já anteriormente penhorados numa execução fiscal, não é, assim, inconstitucional.
Há, por isso, que negar provimento ao recurso. III. Decisão: Isto posto, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso; e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(b). condenar a recorrente nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 5 de Maio de 1999 Messias Bento Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza