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Processo n.º 166/98 Conselheiro Messias Bento Falta Decl. De Voto da Cons. F.Palma;
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO interpõe o presente recurso, ao abrigo do disposto no artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão n.º 486/98, tirado nestes autos, com fundamento em que, quanto à questão de constitucionalidade de certo segmento das normas constantes dos artigos 410º, n.º 2, e 433º do Código de Processo Penal, tal decisão ?está em directa colisão com a jurisprudência adoptada por ambas as secções deste Tribunal, ne esteira do decidido no acórdão n.º 322/93 (publicado no Diário da República, II série, n.º 254, de 29 de Outubro de 1993) da 2ª Secção, que considerou não padecerem de inconstitucionalidade as normas que ora foram julgadas inconstitucionais?. O acórdão aqui recorrido foi proferido no recurso interposto por J. B., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Outubro de 1997, que manteve a condenação de 16 anos de prisão, que, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes agravado e de um outro de branqueamento de capitais agravado, a
1ª instância lhe aplicara; e que julgou as mencionadas normas legais compatíveis com a Constituição. Naquele aresto (o referido acórdão n.º 486/98), o Tribunal, depois de concluir que, por falta dos respectivos pressupostos, não podia conhecer do recurso na parte em que ele tinha por objecto as normas dos artigos 129º, n.º 1, 374º, n.º
2, e 1º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, e as dos artigos 21º, n.º 1, 23º, n.º 1, e 24º, alíneas b), c) e j), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, julgou inconstitucionais, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, ?as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que ?o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum??. Pedida, pelo então recorrente J. B., a aclaração desse acórdão n.º 486/98, na parte em que nele se decidiu não conhecer do recurso tendo por objecto a norma do artigo 129º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Tribunal, pelo seu acórdão n.º 530/98, aclarou a afirmação tida por inexacta, constante daquele aresto. No presente recurso para o Plenário, o MINISTÉRIO PÚBLICO formulou as seguintes conclusões:
1ª.A exigência legal, constante do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, de que o vício, imputado pelo recorrente à decisão proferida sobre a matéria de facto, resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não constitui restrição arbitrária ou desnecessária do direito ao recurso, configurando-se antes como simples corolário de princípios estruturantes do processo penal;
2ª. Na verdade, tal regime é, desde logo, mera decorrência do princípio consignado mo artigo 355º do Código de Processo Penal, segundo o qual não podem valer em julgamento, para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência;
3ª. Cumprindo, deste modo, ao arguido e seu defensor - se o colectivo não usou porventura os poderes de indagação oficiosa que lhe são conferidos pelo artigo
340º do Código de processo Penal, atendendo a tal elemento probatório que constava dos autos - requerer o seu exame em audiência, impugnando a improvável decisão que indeferisse tal pretensão;
4ª.Não lhe sendo lícito vir suscitar tal questão apenas no âmbito do recurso interposto da decisão proferida sobre a matéria de facto - que desprezou tal elemento probatório - pretendendo a sua valoração pelo tribunal ?ad quem?, quando, por facto que lhe é claramente imputável, não provocou a sua apreciação pelo tribunal recorrido, no momento processual adequado;
5ª. E sendo certo que - não existindo em processo penal provas dotadas de valor probatório pleno, que só por si possam ditar decisão sobre a matéria de facto diferente da proferida pelo colectivo - a consideração isolada ou atomística de quaisquer elementos probatórios, constantes dos autos mas não valorados na audiência, não poderia nunca inutilizar a convicção que o tribunal formou, com base nas restantes provas perante si globalmente produzidas, com oralidade e imediação;
6ª. Termos em que deverá proceder o recurso, mantendo-se integralmente a jurisprudência firmada na esteira do acórdão n.º 322/93, considerando as normas a que se reporta o presente recurso plenamente conformes com a Constituição. O ora recorrido J. B. concluiu como segue as suas alegações:
1ª. O artigo 410º não permite o reexame da matéria de facto. As alíneas do n.º 2 do artigo 410º circunscrevem a reapreciação de facto ao
?texto da decisão recorrida?;
2ª. Não sendo os factos quesitados, não permitem que se descubra o vício mesmo quando a decisão em si enferma de irregularidades na ponderação da prova recolhida em audiência;
3ª. Quando a matéria de direito se não apresenta como controversa o cidadão recorrente encontra-se limitado na sua legítima expectativa de ver o seu caso reexaminado sob o aspecto fáctico;
4ª. As disposições combinadas dos artigos 432º, alínea c), 433º e 410º, nºs 2 e
3, do Código de Processo Penal estão feridas de inconstitucionalidade por violação do duplo grau de jurisdição ex vi artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, artigo 11º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, recebido e elevado a princípio constitucional pelo artigo 16º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e do artigo 14º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 16 de Dezembro de 1966, aprovado pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho, e artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro;
5ª. Assim sendo, devem as normas referentes aos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal serem declaradas inconstitucionais, até porque a nova Constituição da República Portuguesa, revista em Setembro, consagra claramente esse duplo grau de jurisdição ao afirmar no n.º 1 do artigo 32º que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa incluindo o recurso;
6ª. Na Constituição da República Portuguesa revista e anotada por Jorge Lacão é o próprio a afirmar expressamente que a inclusão da garantia do recurso entre as garantias de defesa constitucionalizou no domínio do processo penal o duplo grau de jurisdição.
2. Cumpre, então, decidir a questão de constitucionalidade das normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, na parte em que as mesmas limitam os fundamentos do recurso a que ?o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum?. II. Fundamentos:
3. Advertência prévia: Apenas a mencionada questão de constitucionalidade constitui objecto deste recurso para o Pleno. De facto, este Tribunal, no acórdão recorrido (o referido acórdão n.º 486/98), só julgou inconstitucionais as mencionadas normas processuais. Ora, foi esse julgamento de inconstitucionalidade - e só ele - que, por ser divergente dos julgamentos anteriormente proferidas sobre tais normas, abriu a via do recurso para o Pleno (cf. artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional). No mais, o referido acórdão n.º 486/98 transitou em julgado.
4. A questão de constitucionalidade:
4. 1. São incontáveis as vezes que este Tribunal teve que apreciar a constitucionalidade das normas dos artigos 410º, n.º 2, e 433º do Código de Processo Penal, e sempre ele concluiu, embora com vozes discordantes, pela sua compatibilidade com a Lei Fundamental. Fê-lo, primeiro, no acordão n.º 322/93
(publicado no Diário da República, II série, de 29 de Outubro de 1993), e, depois, em muitos outros que seguiram na sua esteira, designadamente nos acórdãos nºs 356/93, 443/93, 141/94, 170/94, 171/94, 172/94, 399/94, 504/94,
635/94, 55/95 e 177/96. E, mais recentemente, o Tribunal reafirmou esta sua jurisprudência, no acórdão n.º 533/98, por publicar. Apenas, pois, no acórdão n.º 486/98, aqui recorrido, o Tribunal concluiu pela inconstitucionalidade das normas sub iudicio, entendendo que elas, na medida apontada (ou seja: ?na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que ?o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum??), violam o direito ao recurso, que se inclui no princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
4.2. O julgamento de inconstitucionalidade das normas sub iudicio, feito no acórdão recorrido (o acórdão n.º 486/98), não é, porém, de manter. Ele deve ser revogado, reafirmando-se a compatibilidade de tais normas com a Constituição. E isso, justamente pelos fundamentos dos arestos em que se firmou tal jurisprudência, em especial dos do acórdão n.º 322/93, para os quais se remete. Da fundamentação do citado acórdão n.º 322/93, recordam-se aqui apenas algumas notas. Assim, como aí se mostrou, o tribunal colectivo (de cujas decisões se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça), tendo em conta as regras do seu próprio modo de funcionamento e as que comandam a audiência de discussão e julgamento, constitui, ele próprio, uma primeira garantia de acerto no julgamento da matéria de facto. Depois, no recurso de revista alargada, há também lugar a uma audiência de julgamento, sujeita às regras respectivas, nela podendo haver alegações orais. E, embora esse recurso de revista alargada vise, em regra, tão-só o reexame da matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça pode, não apenas anular a decisão recorrida, como decretar o reenvio do processo para novo julgamento. Questão (para este último efeito) é que detecte erros grosseiros no julgamento do facto (a saber: insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova) e que o vício detectado resulte do ?texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum?. Acrescenta-se agora que, se não puder dizer-se (com o Ministério Público) que a exigência feita pelo artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal (a saber: ter o erro de julgamento do facto que resultar do ?texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum?) constitui mero corolário de dois princípios estruturantes do processo penal (recte, do princípio de que um elemento probatório, que não haja sido produzido ou examinado em audiência, não pode valer como tal; e do princípio de que, no processo penal, não existem provas plenas), há-de, ao menos, convir-se em que uma tal exigência não é arbitrária ou irrazoável, nem desproporcionada. De facto, nunca o tribunal de recurso, socorrendo-se de um elemento de prova que, acaso, constasse dos autos (verbi gratia, um documento aí junto), mas que o tribunal colectivo não tivesse apreciado, poderia alterar o julgamento do facto proferido pelo colectivo com base nas provas perante si produzidas, com observância das regras da imediação e da oralidade e com sujeição ao crivo do contraditório, e que ele avaliou com observância das regras da lógica e da experiência e das leis da psicologia.
É certo que, no processo penal, se procura a verdade material e que tal se faz sem impor ao arguido qualquer ónus de prova. Simplesmente, é o dever
ético-jurídico de buscar a verdade material que impede que, no processo, se atendam provas que não tenham sido examinadas na audiência de julgamento. E impede-o, porque, a atender-se a tais provas, podia acabar por falsear-se a verdade, já que elas não foram submetidas ao fogo do contraditório.
É por isso que o artigo 355º, n.º 1, do Código de Processo Penal prescreve que
?não valem em julgamento, nomeadamente para efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência?. Acresce que a hipótese, figurada no acórdão recorrido, de estar junta aos autos uma certidão de uma escritura pública (que comprova um facto que entra em contradição com os factos dados como provados pelo tribunal colectivo), que este não tomou em consideração porque o arguido não referiu esse facto na contestação ou porque, tendo-o feito, o tribunal colectivo não levou esse facto às conclusões da contestação, é altamente improvável. Altamente improvável, por várias razões: desde logo, porque é inconcebível que o arguido negligencie a sua defesa ao ponto de não referir esse facto na sua contestação, de não requerer o exame de tal meio de prova na audiência ou de, tendo-o requerido sem êxito, não reagir, impugnando a eventual decisão de indeferimento; depois, porque seria incompreensível que o tribunal colectivo - sobre o qual impende o dever de, autonomamente, esclarecer e instruir o facto sujeito a julgamento, investigando, independentemente dos contributos da acusação e da defesa, tudo quanto possa conduzir ?à descoberta da verdade e à boa decisão da causa? (princípio da investigação: cf. artigo 340º do Código de Processo Penal) - não diligenciasse na averiguação do facto documentado pela certidão da escritura pública, mesmo que o arguido nada referisse a esse propósito, ou que não atribuísse a esse facto o relevo que verdadeiramente ele tinha. Uma tal situação, além de altamente improvável, a verificar-se nalgum caso, relevaria - sublinha o Ministério Público - da ?pura patologia processual? e radicaria, ?em última análise, na grosseira negligência do arguido e do seu defensor?. Sublinha-se, por último, que, não tendo o direito ao recurso sobre a matéria de facto - como este Tribunal decidiu no acórdão n.º 401/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 8 de Janeiro de 1992) - que implicar renovação de prova perante o tribunal ad quem, nem tão-pouco que conduzir à reapreciação de provas gravadas ou registadas - como este Tribunal também decidiu no acórdão n.º 253/92
(publicado do Diário da República, II série, de 27 de Outubro de 1992) -, a garantia do duplo grau de jurisdição sobre o facto tem fatalmente - como faz notar o Ministério Público - que circunscrever-se ?a uma verificação pelo tribunal de recurso da coerência interna e da concludência de tal decisão; e sendo certo que a efectividade de tal reapreciação do acerto da decisão sobre a matéria de facto pelo tribunal ad quem depende, de forma decisiva, da circunstância de ela estar substancialmente fundamentada ou motivada - não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto relevante como provado ou não provado?. Recordam-se e sublinham-se estes pontos para concluir, uma vez mais, que o sistema da revista alargada, plasmado, designadamente, nas normas legais citadas, preserva o núcleo essencial do direito ao recurso, em matéria de facto, contra sentenças penais condenatórias - direito que, recorda-se, está compreendido no princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa. Ou seja: a revista alargada, tal como o nosso ordenamento jurídico a modela, ainda é remédio jurídico ou válvula de segurança suficiente contra erros grosseiros de julgamento. Por ela, o processo penal, ao mesmo tempo que assegura ao Estado ?a possibilidade de realizar o seu ius puniendi?, oferece aos cidadãos ?as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta? (cf. o acórdão n.º 434/87, publicado no Diário da República, II série, de 23 de Janeiro de 1988). Ou seja: a revista alargada cumpre as exigências feitas, nesse domínio, pelo princípio do Estado de Direito.
4.3. Conclusão: As normas sub iudicio não são, pois, inconstitucionais. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo
433º do Código de Processo Penal com o corpo do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que ?o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum?;
(b). conceder provimento ao recurso interposto do acórdão n.º 486/98, que, por isso, se revoga na parte recorrida;
(c). em consequência, negar provimento ao recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Outubro de 1997, na parte que tem por objecto a questão de constitucionalidade das mencionadas normas legais, confirmando-se o julgamento aí feito. Lisboa, 13 de Outubro de 1998 Messias Bento Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Vítor Nunes de Almeida Bravo Serra Artur Maurício Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Maria Helena Brito (vencida, pelo essencial dos fundamentos constantes das declarações de voto dos Exmºs. Conselheiros Luís Nunes de Almeida e José de Sousa e Brito) José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos de declaração de voto junta) Maria dos Prazeres Beleza (vencida, pelas razões constantes das declarações de voto dos Senhores Conselheiros Luís Nunes de Almeida, Sousa e Brito) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO Votei vencido, por entender que o nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ao exigir que o vício resulte do texto da decisão recorrida, limita de forma inadmissível o direito de recurso, o que consequencia a sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição, posição que assumi desde o Acórdão nº 322/93. Assim, teria confirmado o Acórdão nº 486/98, que subscrevi na secção, e cuja doutrina se encontra vazada na declaração de voto do Ex.mo Conselheiro José de Sousa e Brito, a qual acompanho no essencial, no que se refere a este ponto. Apenas uma nota adicional, para sublinhar que considerei muito particularmente não merecer acolhimento a argumentação aduzida no acórdão que obteve vencimento, no sentido de que a norma em causa constitui mero corolário de princípios estruturantes do processo penal, que consequenciam a impossibilidade de o tribunal de recurso «alterar o julgamento de facto proferido pelo colectivo com base nas provas perante si produzidas, com observância das regras da imediação e da oralidade e com sujeição ao crivo do contraditório». Com efeito, nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal, a ocorrência dos vícios referidos no nº 2 do artigo 410º implica que o tribunal de recurso determine «o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão do reenvio». Nesta conformidade, a eliminação da exigência de que o vício resulte do texto da decisão recorrida em nada colidiria com os mencionados princípios estruturantes do processo penal, já que se manteriam intactos os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório. Luís Nunes de Almeida Declaração de Voto As garantias de defesa que o nº 1 do artigo 32º da Constituição assegura no processo criminal ao arguido incluem, em princípio, o direito ao recurso quer da declaração de culpabilidade quer da condenação na pena, e quer quanto à matéria de direito quer quanto à matéria de facto. É certo que, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal (nomeadamente no Acórdão nº 401/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20 pp. 153 ss., especialmente 164) garantia do recurso quanto à matéria de facto não implica a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso, porque militam em sentido contrário interesses constitucionalmente protegidos e outros princípios constitucionais, como sejam o próprio interesse na prossecução penal e o princípio da verdade material. Cabe ao legislador definir em pormenor os limites do direito ao recurso, mas não pode restringir tal direito para lá do que é racionalmente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nº 2 do artigo 18º da Constituição). Ora não se vê necessidade racional da restrição, expressa no corpo do nº 2 do artigo 410º, 'desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum'. O mesmo se diga da restrição do fundamento de recurso da alínea c) do mesmo número nos casos em que o erro na apreciação da prova seja 'notório'. Note-se que o Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de recurso tem presentes os autos e não apenas a decisão recorrida (artigo 406º do Código de Processo Penal). Para julgamento de nulidades que tenham sido invocadas como fundamento do recurso, nos termos do nº 3 do mesmo artigo 410º, terá o Supremo, em muitos casos, que examinar os autos. Isto mesmo foi reconhecido no Acórdão nº 322/93
(Acórdãos cit, 25, pp.375 ss. a p.390), para concluir que no caso paradigmático de não consideração na decisão de escritura pública, de que se juntara certidão aos autos, e que, por hipótese, comprovasse um facto em contradição com os dados no acórdão por provados, teria havido erro notório na apreciação da prova. Só que esta conclusão não é cogente, porque se tem que fazer depender de tal escritura ser invocada na contestação. Do artigo 374º, nº 1, alínea d) e nº 2 conjugado com o artigo 379º, alínea a), só resulta que a sentença é nula se não contiver um 'sumário', feito pelo tribunal que a proferiu, das conclusões da contestação. Pode, pois, a escritura dos autos não ter sido referida na contestação, ou, tendo-o sido, não ter sido referida no sumário das conclusões da mesma feito na decisão recorrida. Em ambos os casos a não consideração da escritura não resultaria do texto da decisão recorrida, pelo que não relevaria para o erro notório na apreciação da prova, nem implicaria falta das menções referidas na alínea a) do artigo 379º, pelo que não fundamentaria a nulidade prevista nessa alínea. De qualquer modo, sempre o exame dos autos será indispensável para saber se houve condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia
(alínea b) do artigo 479º). Não se vê por que razão qualquer erro detectável na apreciação da prova através do exame dos autos não haja de poder ser fundamento de recurso, como, aliás, o era no regime do Código de Processo Penal de 1929 (artigo 665º). Não é apenas a garantia dos direitos de defesa do arguido que o exige. No mesmo sentido vão aqui o princípio da verdade material e o interesse da prossecução penal. A maior simplicidade ou celeridade da decisão do recurso não são decerto interesses comparáveis. As restrições ao conhecimento do facto adoptadas pelo artigo 410º, nº 2 são ainda menos necessárias, do ponto de vista do artigo 18º da Constituição, se se atentar, como faz o Conselheiro Mário de Brito na sua declaração de voto no Acórdão 322/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25,p.393 ss.), que elas limitam a cognição do tribunal de recurso mesmo se e quando toda a prova produzida em audiência estiver registada, bem como nos casos da declaração prevista no artigo 364º (cfr. o artigo 428º, nº 2), do Código de Processo Penal, em que todas as declarações ficam a constar da acta, pelo que o tribunal de recurso tem perante si documentada toda a prova produzida em audiência. No mesmo sentido pode invocar-se o regime da modificabilidade da decisão de facto em processo civil, (artigo 712º do Código de Processe Civil). No processo civil a decisão do tribunal de primeira instância sobre matéria de facto pode ser alterada em termos mais amplos que os do Código de Processo Penal e, nomeadamente, sem a restrição de o vício do julgamento sobre o facto resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Não que haja um mandamento constitucional de coerência entre o processo penal e o processo civil. O que há é uma proibição constitucional de restringir o direito ao recurso sobre matéria de facto, que é uma das garantias de defesa do arguido asseguradas pelo nº 1 do artigo 32º da Constituição, para lá do que é racionalmente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nº 2 do artigo 18º da Constituição). Ora a circunstância de uma tal restrição não ser considerada necessária em processo civil é certamente um argumento válido para demonstrar a sua desnecessidade em processo penal, se não se encontrarem razões específicas do processo penal para a existência da restrição. Resta ponderar se se justifica a restrição do erro de apreciação da prova ao
'erro notório'. Desde já se esclarece que não se julga justificável a interpretação de tal erro como aquele 'de tal modo evidente que o homem médio o detecta com facilidade'. Pode ser 'notório' apenas para o julgador com a especial formação e experiência de um juiz do Supremo Tribunal de Justiça. Mas mesmo quando seja apenas suficientemente seguro para fundar a responsável e undamentada convicção do julgador, tanto deve bastar para a procedência do recurso. Impor aqui a restrição da alínea c) do nº 2 do artigo 410º - que, mais uma vez, não existia no direito anterior - não é necessitado pelos princípios e interesses constitucionalmente relevantes que se referiram a propósito da restrição ao texto da decisão recorrida, além que seria também uma injustificada restrição da autonomia judicial na aplicação do direito, garantida pelo artigo
206º da Constituição. Mantenho, assim, o conteúdo do acórdão nº 486/98 aqui recorrido, bem como das minhas declarações de voto nos acórdãos nºs 322/93 e 264/98 (inédito). José de Sousa e Brito
Declaração de Voto Votei vencido porque tenho entendido que o Tribunal Constitucional devia ter optado por um juízo de inconstitucionalidade material do artigo 433º, conjugado com o artigo 410º, nºs 2 e 3, incluindo o corpo do nº 2, ambos do Código do Processo Penal (e a versão da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto não alterou aqueles preceitos – cfr. artigos 410º e 434º), e, por consequência, devia neste caso manter-se na parte recorrida do acórdão nº 486/98. Foi essa a minha posição constante da declaração de voto junta ao acórdão nº
141/94, publicado no Diário da República, II Série, nº 6, de 7 de Janeiro de
1995, e que tenho seguido em posteriores acórdãos (cfr. por exemplo, o acórdão nº 156/97, inédito). Remato, pois, essencialmente, para as razões expostas nessa declaração de voto e para os fundamentos do citado acórdão nº 486/98, tendo sempre presente a ideia de que não há uma necessidade nacional para as restrições aos poderes de arguição do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de recurso Guilherme da Fonseca