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Procº nº 391/98.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. R... e M... intentaram contra A... acção, que veio a seguir seus termos como acção ordinária e pelo Tribunal de Círculo do Funchal, solicitando que fosse decretada a resolução de um contrato de arrendamento celebrado entre umas e outro, o qual tinha por objecto o rés-do-chão com entrada pelo n.º 4 da Avenida do Infante, na cidade do Funchal, contrato esse que se destinava à instalação de um estabelecimento de comércio próprio dos supermercados e fabrico de licores, aguardentes, salsicharia e confeitaria.
Invocaram as autoras, como fundamento do pedido, por entre o mais, que o réu cedeu, sem consentimento delas e sem alguma vez lhes ter comunicado tal facto, a exploração do referido estabelecimento à sociedade A..., Ldª.
Por saneador/sentença de 14 de Maio 1996 foi a acção julgada improcedente e, em consequência, absolvido o réu do pedido.
Não se conformando com assim decidido apelaram as autoras para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 11 de Março de 1977, negou provimento ao recurso.
Desse aresto recorreram de revista as mesmas autoras para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, na alegação que produziram, concluído:-
'I) – Na disciplina jurídica do contrato de cessão de exploração ou locação de estabelecimento comercial devem observar--se as regras da teoria da combinação e da teoria da aplicação analógica, ou recorrer-se à interpretação extensiva.
II) – Por isso, o locador ou senhorio, como titular dos direitos de uso e fruição da res locata, tem o direito de exigir que o gozo do local arrendado não seja transferido, pro tempore e onerosamente, do locatário para outrem, sem autorização da sua parte, conforme resulta do disposto nos artigos
424º., nº. 1, 1022º,, 1023.º, 1038º., alínea f), e 1035º. do Código Civil.
III) – Assim, decidindo pela improcedência desta acção, por falta de autorização das senhorias para locação do estabelecimento comercial em causa, as instâncias violaram o artigo 1038º., alínea f), do Código Civil e o artigo 64º., n.º. 1, alínea f), do R.A.U.
IV) – De qualquer modo a cessão de exploração ou locação de estabelecimento comercial, a que se referem o artigo 1682º.-A, nº. 1, alínea b), do Código Civil, o artigo 111º., n.º. 1 do R.A.U. e o artigo 89º., alínea k), do Código do Notariado, está sujeita a comunicação, ao locador ou senhorio, nos termos do artigo 1038º., alínea g), do Código em primeiro lugar citado.
V) - Logo, provado, conforme está, que a cessão titulada pela escritura de fls. 10 e segs. não foi comunicada às senhorias, as instâncias, se não tivessem violado as disposições legais acima referidas, teriam violado então o artigo 1038º., alínea g), do Código Civil e ainda o artigo 64º., nº. 1, alínea f), do R.A.U.
VI) - Com efeito, neste caso, a falta de comunicação, nos termos da alínea g) do artigo 1038º. do Código Civil, constitui fundamento para resolução do contrato de arrendamento titulado pela escritura de fls. 6 e segs., de harmonia com a alínea f) do n.º. 1 do artigo 64º. do R.A.U.
VII) – De resto, com a interpretação das instâncias, o artigo 1038º., alíneas f) e g), do Código Civil e o artigo 64º., nº. 1, alínea f), do R.A.U. estariam ferido de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 62º., n.º. 1, da Constituição, atento o disposto no artigo 1305º. do referido Código.'
2. Por acórdão de 19 de Março de 1998, o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista e, respeitantemente à questão de inconstitucionalidade, discreteou assim:-
'................................................................................................................................................................
Têm as recorrentes, por inconstitucional, por violação do nº. 1 do art.º 62º. da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dada pelas instâncias, aos artigos 1038º. alíneas f) e g) do Código Civil e 64º., nº. 1, alínea f), do Regulamento do Arrendamento Urbano.
Dispõe o referido preceito constitucional:
..................................................................................................................................................................................................
Não dizem as recorrentes como é que, ao julgar-se improcedente esta acção de despejo, se atingiu o seu direito de propriedade ou o da sua transmissão em vida ou por morte ou da fruição dos seus bens ou de não serem privadas deles.
No exercício desse direito de propriedade, as ora autoras celebraram um contrato de arrendamento com o ora réu.
Referiu-se, acima, que o seu direito de senhorias não foi, em nada, afectado pela cessão, não desse arrendamento mas do estabelecimento comercial, que foi instalado pelo ora réu no arrendado.
Uma e outra das partes vêm cumprindo as obrigações que assumiram.
Ao não se aplicar à cessão de estabelecimento comercial regras próprias do contrato de arrendamento não se está a violar o dito preceito constitucional. Trata-se de contratos diferentes, regulados por normas, como é natural, diferentes.
................................................................................................................................................................................................'
É deste acórdão que, pelas autoras da acção, vem interposto o presente recurso para Tribunal Constitucional, sendo que, de harmonia com o requerimento apresentado pelas mesmas na sequência do convite que, para tal efeito, lhes foi endereçado pelo ora relator, de concluir é que pretendem ver apreciada a (in)constitucionalidade, por ofensa do n.º 1 do artigo 62º da Lei Fundamental, das normas constantes das alíneas f) e g) do artº 1038º do Código Civil, quando interpretadas no sentido de o nelas prescrito não ser aplicável aos casos de locação de estabelecimento comercial.
Determinada a feitura de alegações, concluíram as recorrentes as por si efectuadas com as seguintes conclusões:-
'I) A Constituição garante a todos o direito à propriedade privada e
à sua transmissão, em vida ou por morte (art. 62º., nº. 1).
II) Ora, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (Cód. Civ., art. 1305º.).
III) Pois bem, decidindo que não há lugar à comunicação, ao senhorio, da cedência do gozo da res locata , pro tempore e a título oneroso, juntamente com a exploração do estabelecimento comercial ou industrial nela instalado, o acórdão recorrido interpretou a norma do artigo 62º., nº. 1, da Constituição em termos que a invalida ou vicia de inconstitucionalidade material.
IV) Efectivamente, com tal interpretação, em desacordo com a norma do artigo 1038º., alínea g), do Código Civil, e com a norma do artigo 64º., nº. 1, alínea f), do R.A.U., o preceito do artigo 62º., nº. 1, da Constituição é materialmente inconstitucional, uma vez que afecta os direitos de uso, fruição e disposição do direito de propriedade, constitucionalmente garantido, vedando a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na ineficácia da cedência, com relação ao senhorio, por falta de comunicação.
V) Por consequência, torna-se necessário que o preceito do artigo
1038º., alínea g), do Código Civil seja interpretado em tal sentido, devendo assim, a decisão recorrida aplicar-se, no caso sub judice, com a referida interpretação, ou seja, no sentido de que abrange os chamados negócios jurídicos de cessão de exploração ou locação de estabelecimento comercial.'
De seu lado, o recorrido rematou a sua alegação propugnando pela improcedência do recurso.
II
1. Segundo o disposto nas alíneas f) e g) do artº 1038º do Código Civil, são obrigações do locatário [n]ão proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar, e
[c]omunicar ao locador, dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada.
A decisão sob censura qualificou o negócio jurídico celebrado entre o réu e mulher e a sociedade A..., Ldª, como um contrato de cessão de exploração comercial, concluindo seguidamente que da mesma se não 'justificaria, nem autorização nem levar ao conhecimento do senhorio'.
Significa isto, pois, que o acórdão impugnado veio interpretar aquelas alíneas de sorte a que a cessão de exploração de um estabelecimento comercial, levada a efeito pelo detentor desse estabelecimento, que arrendou determinado local para a sua instalação, não está dependente de prévia autorização do senhorio e comunicação ao mesmo da realização desse negócio.
E é esta interpretação que as recorrentes, por intermédio do vertente recurso, impugnam do ponto de vista da sua validade constitucional, pois que, na sua óptica, ela violaria o que se dispõe no nº 1 do artigo 62º Lei Fundamental.
Dispõe-se neste preceito constitucional que [a] todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
E é essa garantia que as recorrentes consideram violada com a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez da norma constante da alínea g) do art.º 1038º do Código Civil, ao nela se não abranger, no conceito de cessão onerosa ou gratuita da posição jurídica do arrendatário a cessão de exploração do estabelecimento comercial ou industrial instalado na coisa locada.
No aresto ora impugnado foi sublinhado que 'em nada foi afectada a posição contratual das senhorias' porquanto '(c)ontinua a ser o mesmo, o arrendatário' e a transferência 'incidiu, directamente, sobre o estabelecimento comercial do réu, só abrangendo, digamos indirectamente, bens nele porventura existentes e o arrendamento'.
2. De acordo com a noção legal, o arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição (cfr. artº 1º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321B/90, de 15 de Outubro).
A natureza jurídica do direito do arrendatário tem sido objecto de controversa na doutrina portuguesa.
Autores como Paulo Cunha, Luís Pinto Coelho, Dias Marques, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, podem ser apontados como defensores da tese da realidade do direito de locatário, enquanto que outros, como Inocêncio Galvão Teles, Pinto Loureiro, Gomes da Silva, Pires de Lima, Manuel Henrique Mesquita, Adriano Vaz Serra, João de Matos, Cunha e Sá, Rodrigues Bastos, Pereira Coelho, Manuel Januário Gomes, Antunes Varela e António Santos Lessa se postam como sustentando aquilo que, comummente, se designa por concepção personalista (cfr. Jorge Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, 1996, 52 e 53 – nota 64).
A mais impressiva (e, quiçá maioritária) jurisprudência, por seu turno, tem, nos feitos à mesma submetido, optado por aquilo que se pode desenhar como seguindo uma perspectiva iluminada pela tese personalista do direito do locatário.
Como é sabido, esteia-se esta tese na circunstância de o Código Civil parecer, na noção contida no seu artº 1022º, 'reflectir ... a imagem tradicional da locação como contrato obrigacional e não real', o que é transponível para a noção utilizada no artº 1º do RAU (cfr. António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 4ª edição, 56).
Em abono da defesa do arrendamento como um direito real, não poderá deixar de citar-se José de Oliveira Ascensão (Direito Civil – REAIS, 4ª edição refundida, 471), que ensina que o 'direito de arrendamento é inerente ao prédio e atribui o aproveitamento deste', pelo que, '[e]m consequência, não é atingido por quaisquer transmissões, em vida ou por morte, do direito concorrente que limita', defendendo que '[e]ste princípio vem hoje estabelecido em geral para a locação do artigo 1057º'.
Torna-se claro que este Tribunal não tem, in casu, que tomar qualquer posição sobre a controvérsia de que se vem dando notícia, havendo, apenas, que não deixar passar em claro que, mesmo que se sustentasse que o contrato de arrendamento não tem natureza essencialmente pessoal, como diz Pereira Coelho (Direito Civil – I Arrendamento, Sumários das lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas em 1980-1981, 19 e segs), que pugna por não haver argumentos decisivos para essa concepção afastar), não é de desprezar o facto de a lei equiparar, por vezes, o direito do arrendatário aos direitos reais para determinados efeitos.
E, por isso, não se deixa de mencionar alguma da corte argumentativa utilizada por quem sustenta o reconhecimento da natureza pessoal do direito do locatário, como é o caso de Manuel Henrique Mesquita (Obrigações reais e ónus reais, 1990, 176), que escreve:
'................................................................................................................................................................ as manifestações normativas da realidade apenas se verificam após a efectivação da relação de uso ou fruição da coisa locada – e a relação jurídica locativa, conforme vimos, nasce por mero efeito do contrato de locação, não pressupondo, por conseguinte, a entrega da coisa ao locatário. Em segundo lugar, porque, mesmo depois de instaurada a relação de uso ou fruição, a posição jurídica do locatário continua a ser disciplinada, quanto a alguns dos seus efeitos ou vicissitudes, em função e à luz de uma relação intersubjectiva estabelecida entre ele e o locador, consubstanciada no contrato locativo. O direito do locatário não chega a autonomizar-se da sua matriz contratual, sendo disciplinado pela lei, não apenas no seu momento genético, mas também para além dele, como uma das faces da relação negocial de cooperação de que promana.
................................................................................................................................................................................................'
Aliás, no Acórdão nº 267/95 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 20 de Julho de 1995, teve este Tribunal ocasião de ponderar que:
'.................................................................................................................................................................................................
8 – Seja, porém, qual for em definitivo a natureza jurídica do direito ao arrendamento (real ou obrigacional), uma coisa é certa: um tal direito é, em certa medida, protegido pelo artigo 62º da Constituição, ou seja, pela garantia constitucional do direito de propriedade.
Vejamos em que medida.
O artigo 62º , n.º 1, da Constituição garante o direito à propriedade privada e à sua transmissão, ‘nos termos da Constituição’, isto é, dentro dos limites e termos definidos noutros pontos da lei fundamental, competindo ao legislador definir o conteúdo e limites do direito de propriedade privada
[artigo 168º, n.º 1, alíneas b) e j), da Constituição].
Elemento essencial do direito de propriedade é o direito de não de ser privado dela, que a Constituição não garante em termos absolutos, prevendo-se no n.º 2 do artigo 62º apenas o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e o direito à percepção de uma indemnização no caso de requisição ou de expropriação por utilidade pública
.........................................................................................................................................................................................'
3. Perante esta parametrização, tona-se claro que, no caso sub specie, e para que se não tenda a precipitar um raciocínio com base no qual, não podendo o arrendamento ser desligado do direito garantido pelo nº 1 do artigo
61º do Diploma Básico, a interpretação normativa sub specie constitucionis se figuraria como feridente de tal garantia, há que levar mais longe a análise da questão.
Efectivamente, não pode o problema em apreço ser desligado de uma outra óptica, justamente aquela que consiste no desenho do que, no caso, se postava, ou seja, aquilo que os tribunais judiciais deram como assente (e que, de todo em todo, este Tribunal não pode, no dito caso, pôr em crise) e que consistiu em se tratar uma situação de cessão de exploração do estabelecimento.
Como se sabe, a relação de arrendamento é susceptível de sofrer, como qualquer outra relação jurídica, modificações subjectivas, ou seja, aquelas que operam no plano dos sujeitos.
No que se refere ao arrendamento com um fim que não seja o de habitação, a doutrina tem considerado apenas como modificações subjectivas da relação jurídica os seguintes casos: simples cessão da posição contratual; subarrendamento; trespasse de estabelecimento comercial ou industrial; e cessão de escritório, consultório ou estúdio de profissão liberal (cfr. Jorge Pinto Furtado, ob. cit., 442).
Não importando, para o caso, as situações previstas no art.º 122º do RAU (redacção e numeração operadas pelo Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro) - a que corresponde ao art.º 1120º do Código Civil -, não se vai sem dizer que as restantes situações se encontram reguladas nos artº 1059º, nº 2, do Código Civil, e no artº 115º do RAU.
Tem a doutrina assinalado que na cessão da posição contratual há
'uma sucessão a título particular, importando a substituição de um sujeito da primitiva relação pelo accipiens e, assim, o arrendatário, cedendo a sua posição contratual através de um negócio jurídico a isso endereçado, desaparece da relação arrendatícia, deixando o cessionário no seu lugar', enquanto que no subarrendamento 'já não há sucessão a título particular, mas o surgimento duma nova relação, ao lado da primeira, de modo que, com um subarrendamento, o arrendatário, conservando embora perante o locador a sua posição contratual de arrendatário,, com ela todavia acumula ainda a posição de senhorio, perante o subarrendatário' (cfr. Jorge Pinto Furtado, ob. cit., 467).
Ora, nestes dois casos exigem expressamente os artigos 424º, nº 1, ex vi do art.º 1059º, nº 2, um e outro do Código Civil – quanto cessão da posição de arrendatário -, 1038º, alínea f), do mesmo corpo de leis e 44º do RAU
- quanto ao subarrendamento - o consentimento do senhorio.
Tratando-se de um estabelecimento comercial, convém efectuar um mui perfunctória discorrer sobre respectivo conceito e aquilo que tem sido vincado como a diferenciação entre os seus trespasse e cessão de exploração
Assim, Pinto Furtado (ob. cit., 486 a 488), defende que o estabelecimento comercial deve ser visualizado como um 'complexo de bens patrimoniais congregados pelo empresário para a realização da sua actividade económica', acrescentando:-
.
'...............................................................................................................................................................
Complexo de bens que envolverá, pois, não apenas as coisas materiais ou corpóreas, mas também as coisas imateriais ou incorpóreas, com valor económico, que lhe dão aisance instrumental – como, designadamente, o aviamento, ou seja aquela qualidade em clientela e organização que está para o estabelecimento comercial como a fertilidade do solo está para a organização duma exploração agrícola, ou como o nome ou insígnia do estabelecimento.
..................................................................................................................................................................................................temos ainda um nítido afloramento de semelhante perspectiva jurídico-positiva universalizante na facti species do art.º 115 RAU.
..................................................................................................................................................................................................
O estabelecimento comercial ou industrial, a que se reporta este preceito, constitui portanto o que na dogmática se denomina universalidade.
................................................................................................................................................................'
De seu lado, Oliveira Ascensão (Estabelecimento comercial, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 47-1987, I, 14), doutrina no sentido de que:
'................................................................................................................................................................ o estabelecimento comercial é uma universalidade de facto: é uma coisa colectiva, unificada pela aptidão para o desempenho de uma função produtiva.
.................................................................................................................................................................................................. que há um sentido técnico de estabelecimento comercial, entendido agora como complexo de situações jurídicas. Neste sentido, o estabelecimento comercial é uma universalidade de direito. É ponto em que nos não podemos deter; mas também não vemos motivo nenhum para fugir à qualificação. O estabelecimento comercial, como situação jurídica, cai inteiramente naquela noção, pois é um complexo de situações jurídicas (ou uma situação jurídica complexa) juridicamente unificadas para efeitos da sua sujeição a vicissitudes comuns
...............................................................................................................................................................................................'
Também Ferrer Correia (Reivindicação do estabelecimento comercial como unidade jurídica, in Estudos Jurídicos, II, 1969, 262 e segs.) defende que
'é como verdadeira unidade jurídica, e não apenas como unidade económica, que o estabelecimento comercial deve ser concebido'.
Dada a sua relação com a cessão da exploração de estabelecimento, não é dispicienda a citação da seguinte passagem do mesmo autor: 'a chamada concessão de exploração comercial ou industrial (rectius: locação de estabelecimento) não é redutível a tantos contratos distintos e autónomos quantos os singulares elementos componentes da universalidade. Designadamente, o negócio jurídico não poderá ser qualificado como arrendamento, sem embargo de envolver a transferência para o locatário, por todo o tempo do contrato, do uso do prédio onde o estabelecimento está instalado.' ( pág. 265).
Ainda Pinto Furtado, e agora a propósito do trespasse, é do entendimento de que :
'.................................................................................................................................................................
O art.º 115-1 RAU alude a transmissão por acto entre vivos da posição contratual de arrendatário (...), sugerindo deste modo que aquela em que consiste o trespasse constituirá uma transmissão inter vivos,.........................................................................................................................................................................................
Além disso, entende-se pacificamente que ele envolverá, por outro lado, necessariamente, uma transferência definitiva do estabelecimento. A mera transmissão pro tempore não forma um trespasse – asserção que hoje parece seguramente confirmada pela destrinça que o Regime estabelece entre trespasse, referido no art.º 115, e concessão ou cessão da exploração, que contempla no seu art.º 111.' (pág. 490).
Também Manuel Januário Gomes considera que os conceitos de trespasse e de cessão de exploração são distintos, porquanto no caso do primeiro haverá
'sempre que ocorrer uma transferência definitiva e unitária do estabelecimento comercial' (Arrendamentos comerciais, 1991, 2ª ed., 162 e 163), enquanto que o segundo 'consiste numa forma de negociação do estabelecimento comercial traduzida numa transferência temporária e onerosa do seu gozo ou exploração.'
(dita obra, 61).
4. Sem se ter que tomar partido - já que isso se situa fora dos poderes cognitivos deste Tribunal - sobre o que se deva entender por cessão de exploração efectuada pelo recorrido, tal como foi dado por assente pelo Supremo Tribunal de Justiça (e que, aliás, se encontra apoiada por autores tais como Orlando de Carvalho, Rui Alarcão, Pereira Coelho e M. Januário Gomes - quanto a este último, veja-se a obra já citada, 77), é evidente que havemos de tomar por assente que na interpretação do art.º 1038º, alínea g), do Código Civil, que aqui é objecto de recurso, foi considerado que aquela cessão não alterou a relação jurídica estabelecida entre as recorrentes, como locadoras, e o recorrido, como arrendatário, qualidade que, no entender daquele Alto Tribunal, se manteve inalterada quanto, nomeadamente, às suas obrigações.
É, pois, num primeiro passo e neste plano, que se tem de verificar da existência ou não da alegada contrariedade com a Constituição da norma contida na alínea g) [e também a da alínea f)] do artº 1038º do Código Civil no entendimento segundo o qual havendo cessão do estabelecimento comercial instalado em local arrendado, o arrendatário não necessita da autorização do senhorio para efectuar essa cessão, nem de lha comunicar.
Neste contexto, há que não olvidar que, como se sublinhou no Acórdão deste Tribunal nº 425/87 (publicado no Diário da República, 2ª série, de 5 de Janeiro de 1988) que, tomando por referência o 'direito de propriedade privada, dir-se-á, desde logo, que a conflitualidade existente entre o senhorio e o inquilino radica numa base obrigacional, derivando os direitos e deveres respectivos de um contrato entre ambos celebrado ...'.
Assim sendo, e atentos os direitos e obrigações das partes no contrato de arrendamento para comércio ou indústria razoavelmente admissíveis e que, porventura, no prisma do senhorio, se podem configurar como tendo incidência nos poderes de uso, fruição e disposição do seu direito sobre a coisa locada (quiçá podendo acarretar uma sorte de «limitações» àqueles poderes), não se pode dizer que o proprietário do locado (ou quem sobre ele tenha poderes de uso e fruição, caso não seja proprietário) fique afectado ou veja alteradas mais gravosamente essas «limitações» decorrentes do arrendamento que livremente antes celebrou no desfrute da sua autonomia contratual e na decorrência dos poderes de fruição que tinha sobre essa mesma coisa.
É que, esse anterior contrato, com toda a corte de eventuais
«limitações» que dele promanem para o livre e incondicionado exercício do direito de propriedade sobre o locado (ou um outro direito de conteúdo patrimonial, não passando em claro, que, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 331, o espaço semântico-constitucional do direito de propriedade não se limita à proprietas rerum) continua intocado e sujeito a toda a regulamentação que o pauta, continuando a ser exigível pelo locador que o arrendatário cumpra as obrigações inerentes a esse contrato, mantendo-se, pois, de pé os mesmíssimos direitos, obrigações e ónus decorrentes do contrato.
O que, com a cessão, ocorreu, foi unicamente uma alteração subjectiva da gestão do estabelecimento, tido como uma universalidade e da qual faz parte o próprio local onde o mesmo se encontra instalado, estabelecimento esse que continua a ser o mesmo e titulado pelo mesmo arrendatário sobre o qual, como se disse, continuam a impender as mesmas obrigações que defluem do contrato de arrendamento.
Na interpretação de que se cura, a posição das ora recorrentes, no que tange ao seu direito de propriedade sobre a coisa locada não deve, por isso, considerar-se «tocada» ou, pelo menos, apresentar maiores «limitações» do que aquelas que eventualmente já decorriam do contrato de arrendamento que celebraram com o locatário.
E isto, é evidente, mesmo que para quem perfilhe a perspectiva de que o contrato de arrendamento, mesmo para comércio e indústria, é um contrato intuito personae (questão sobre a qual, atento o que acima se disse já, este
órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa não tem aqui que tomar posição), por isso que o mesmo mantém o seu objecto, continuando a ser as mesmas as partes contratantes e as condições e cláusulas a que tal contrato obedece.
Mas, mesmo para quem não perfilhe na sua integralidade uma fundamentação como a que se veio de expor, por isso que poderia defender que a mesma, levada às últimas consequências, porventura conduziria a que não fossem consideradas como contrárias à Constituição todas as alterações da pessoa do arrendatário (verbi gratia, nos casos de trespasse ou de outras situações de cessão do arrendamento) sem que houvesse necessidade de comunicação ou autorização do senhorio, o que é certo é que, tratando-se, como no caso se trata, de uma cessão de exploração de um estabelecimento comercial ou industrial, a manutenção do contrato de arrendamento onde tal estabelecimento se sedia ou situa, não deixará de ser perspectivável como uma protecção desse mesmo estabelecimento e, desta sorte, de protecção da própria livre iniciativa económica consubstanciada na exploração do estabelecimento.
Não se divisa, assim, que a interpretação, seguida pelo aresto recorrido e de harmonia com a qual, a falta de comunicação ou de autorização do senhorio a que aludem as alíneas f) e g) do artigo 1038º. do Código Civil, não constitui fundamento para resolução do contrato de arrendamento, estando em causa a cessão de exploração do estabelecimento, seja contrária à Constituição, antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se consagram nos artigos 61º, nº 1, e 62º nº 1 desde diploma fundamental.
III
Termos em que se nega provimento ao recurso, condenando-se as recorrentes nas custas processuais, fixando em dez unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 12 de Maio de 1999 Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa