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Procº 127/97 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Por Acórdão de 11 de Julho de 1996 do Tribunal Colectivo da 1ª Secção da 10ª Vara Criminal de Lisboa, foi A. condenado, conjuntamente com outra pessoa, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, nºs. 1 e 2, alínea a), e 28º, nº 1, do Código Penal, na pena de 15 anos de prisão.
Em 4 de Setembro de 1996, pretendeu interpor recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, mas tal recurso não foi admitido, por extemporâneo, uma vez que, correndo o prazo de interposição do recurso (nº 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal) durante as férias, por se tratar de caso de arguido preso ( nº 2 do artigo 104º e nºs. 1 e 2 do artigo 103º do mesmo Código), a decisão de que se pretendia recorrer transitara em julgado em 25 de Julho de 1996.
2. Em 19 de Setembro seguinte, apresentou o arguido reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em que argumentou, para fundamentar o prejuízo para a defesa que, na sua opinião, resulta de os prazos de recurso correrem em férias, não ser idêntico um prazo de 10 dias que 'corra em férias judiciais parcial ou totalmente' a um outro prazo de 10 dias 'que decorra só no período normal de abertura dos tribunais e actividade dos profissionais do foro', suscitando, além disso, a inconstitucionalidade da norma do artigo 104º, nº 2, do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 317/95, de 28 de Novembro, imputando-lhe a violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição.
Tal reclamação foi indeferida, por despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Outubro de 1996.
No despacho que desatendeu tal reclamação escreveu-se, designadamente, o seguinte:
'Terá de reconhecer-se que, correndo em férias, como regra geral, os prazos relativos a arguidos detidos ou presos ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas, excepcionalmente poderá não ser assim se, no caso concreto, o seu decurso em férias vier a prejudicar a defesa, em lugar de a beneficiar.
Como ensina o Consº Maia Gonçalves, de entre as múltiplas situações em que tal pode configurar-se, «... terá que ser a defesa a invocá-las e, ouvida a acusação, o juiz a decidir. Em princípio, se a defesa nada requerer, os prazos a que vimos aludindo correrão em férias» (cfr. «Cód. Proc. Penal Anotado», 7ª ed., Almedina, Coimbra, 1996, nota 3 ao artº. 103º, págs. 221/222).
Terá, assim, que ser a defesa a invocar, perante o caso concreto, até à apresentação do requerimento de interposição do recurso, o específico prejuízo que lhe possa advir do decurso em férias de determinado prazo processual e uma tal invocação terá que ser submetida ao princípio do contraditório.
De outro modo, estaria aberta a prova para a variabilidade dos prazos processuais entre os diversos sujeitos processuais de um mesmo processo.
E não apenas para aquela variabilidade, mas também para a absoluta imprevisibilidade do decurso dos prazos antes do início de cada período de férias judiciais.
Caberá, assim, à defesa convencer o tribunal, antecipadamente, do concreto prejuízo emergente do decurso em férias de um dado prazo, sob pena de para a prática do mesmo acto decorrerem distintos prazos - consequência certamente não pretendida pelo legislador quando da sobredita alteração da parte final do nº 2 do artº. 104º do Cód. Procº. Penal, pela incerteza que daí seguramente adviria.
Por último, esta solução em nada contende com as garantias do processo criminal consignadas no artº 32º, nº 2, da Constituição.
A presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória e a realização de julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa não sofrem violação alguma com o entendimento expendido.
E isto porque, por um lado, o decurso em férias dos prazos processuais relativos a arguidos detidos ou presos constitui, em si mesmo, um reforço das garantias da defesa, destinado a reduzir ao mínimo o tempo de prisão anterior à prolação da decisão definitiva.
E, por outro, porque a aceitação da excepção a tal decurso decorrente da existência de prejuízo para a defesa, se lhes fosse atribuída uma conotação absoluta e genérica, alheada do caso concreto, traduzir-se-ia na pura e simples abrogação da apontada regra geral e da garantia que lhes é inerente.
Terá, pois, de concluir-se pela intempestividade do recurso em causa'.
3. Do despacho acima referido interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 Novembro), 'para apreciação da inconstitucionalidade do artigo 104º, nº 2, do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 317/95 de 28/11', rematando nestes termos as alegações aqui produzidas:
'Temos, pois que ler literalmente o que dispõe o artigo 104º, nº 2, sem condicionalismos processuais, impostos discricionariamente.
E pensar, de seguida, quais são os prazos em que a defesa é prejudicada, com o decurso, em férias, dos prazos.
Nitidamente, que o prazo para recorrer de uma decisão condenatória,
é um deles. Pelas razões já aduzidas, que se prendem com a possibilidade de em tempo útil, o arguido, mudar se quiser de defensor, ou obter outros apoios que sustentem a sua defesa.
Não contraria este entendimento, a celeridade processual, que deve presidir, aos processos com arguidos detidos, nem tão pouco põe em causa qualquer princípio do processo penal, especialmente, os defendidos pelo STJ.
Mais, o contrário significa que o artº. 104º, º 2, do CPP não cumpre o disposto no artº. 32º, nº 2 da Constituição, em que a celeridade processual, imposta aos processos com arguidos presos, atropela as garantias de defesa.
Pensamos que o direito a ter todas as garantias de defesa, tal como aquelas ao dispor de um arguido não preso, é mais importante do que ter um processo especialmente rápido, em qualquer circunstância.
Pelo que o despacho recorrido, que não admitiu o recurso interposto, com fundamento no artº. 104º, nº 2, viola o artº. 32º, nº 2, da CRP, pelo que este preceito é ele próprio inconstitucional.
Fundamentos para que se requeira a apreciação da constitucionalidade do artigo 104º, nº 2 do Código de Processo Penal'.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal concluiu as suas alegações do seguinte modo:
1º
'A norma constante dos artigos 104º, nº 2, e 103º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, na redacção emergente do Decreto-Lei nº 317/95, de
28 de Novembro, ao estabelecer que correm em férias judiciais os prazos relativos a processos com arguidos presos, incluindo os respeitantes a actos a praticar em juízo por estes, salvo se requerem tempestiva e fundadamente a respectiva prorrogação judicial, durante o período das férias, não colide com o princípio constitucional das garantias de defesa.
2º
Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso'.
4. Sem vistos, por se tratar de processo urgente, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
5. É a seguinte a redacção da norma impugnada (a do nº 2 do artigo
104º do Código de Processo Penal, tal como resultou do Decreto-Lei nº 317/95, de
28 de Novembro):
'Correm em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos referidos no nº 2 do artigo anterior, excepto quando tal possa redundar em prejuízo da defesa'.
Tal redacção difere da anterior apenas na ressalva final, pelo que a questão de constitucionalidade agora suscitada é inteiramente idêntica à que, por repetidas vezes, este Tribunal já abordou (cfr.os Acórdãos nºs. 213/93,
384/93, 566/94 e 47/95, os dois primeiros publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 1 de Junho de 1993, de 2 de Outubro de 1993, e os dois últimos inéditos), uma vez que o que está em causa não é a excepção, mas sim a regra que a antecede. Aliás, se dúvidas pudessem formular-se quanto à constitucionalidade do originariamente disposto no nº 2 do artigo 104º do Código de Processo Penal, seria certamente porque de tal regra podiam resultar prejuízos para a defesa. Na medida em que a revisão do Código de Processo Penal operou um aditamento à norma, em termos, justamente, de ela não ser aplicável nesses casos, a relevância da questão parece ter-se definitivamente deslocado do plano da constitucionalidade - de que cabe a este Tribunal cuidar - para o plano da aplicação da lei - sobre o qual não cabe a este Tribunal pronunciar-se, desde que o entendimento da norma aplicada não seja desconforme com a Constituição. Ora, se a solução consagrada no nº 2 do artigo 104º do Código de Processo Penal quanto à contagem dos prazos de recurso em casos de arguidos presos era constitucionalmente conforme na sua versão originária (cfr. os acórdãos citados), por maioria de razão há-de sê-lo na sua actual redacção.
6. No primeiro acórdão em que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a constitucionalidade do disposto no nº 2 do artigo 104º do Código de Processo Penal (Acórdão nº 213/93), escreveu-se:
'A diferenciação operada pelo legislador, a qual se traduz num regime de desfavor, no que respeita aos prazos para a prática de actos processuais, dos arguidos em processos em que algum ou todos estejam detidos ou presos em comparação com os arguidos em processos em que não haja nenhum naquelas situações, poderia, prima facie, afigurar-se como materialmente infundada.
Mas, numa análise mais aprofundada das coisas, facilmente se chega à conclusão de que tal não sucede.
Na verdade, o legislador, ao adoptar um regime distinto para os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, moveu-se, fundamental- mente, pela defesa de valores constitucionalmente relevantes, tais como os da celeridade e eficiência da justiça criminal, da liberdade do arguido e da eficácia do sistema penal.
Uma vez que todos os intervenientes processuais, sempre que haja arguidos detidos ou presos, estão sujeitos à mesma regra de celeridade, não ocorre qualquer afronta à regra da igualdade constitucionalmente consagrada'.
Isso mesmo foi reafirmado no Acórdão nº 47/95 (embora aí com dois votos de vencido) e no Acórdão nº 384/93. Por outro lado, no citado Acórdão nº
566/94, procedeu-se à análise da questão da constitucionalidade da norma ora impugnada, na perspectiva das garantias de defesa do arguido - e não já, apenas,
à luz do princípio da igualdade -, tendo-se aí escrito, designadamente, que 'o estabelecimento de prazos para a prática de actos processuais (e note-se que se trata de prazos perfeitamente razoáveis) não consubstancia diminuição alguma das garantias de defesa, para mais existindo, como existe, a 'válvula de segurança' do justo impedimento' - doutrina que vale seguramente para casos como o destes autos.
7. Ao que vem de ser referido, acresce o facto de estar, agora, expressamente contemplada na lei a possibilidade de obter a prorrogação do prazo, onde tal seja adequado a prevenir eventuais prejuízos para a defesa. O
ónus de invocar tal necessidade, nos termos referidos no despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça atrás parcialmente transcrito, é perfeitamente adequado à presunção de que quem perde a liberdade em resultado de uma decisão não transitada em julgado está, sobretudo, interessado em, tão depressa quanto possível, pôr em marcha todos os mecanismos judiciais que ainda podem inverter tal decisão. Entre presumir que os arguidos presos prefeririam que os prazos processuais se suspendessem durante as férias ou corressem durante as mesmas, o legislador deu preferência ao segundo termo da alternativa: sem dúvida que a outra opção se afiguraria mais lesiva dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados.
III - Decisão.
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 30 de Abril de 1997
Fernando Alves Correia Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa