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Proc.º nº 774/97
1ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. A... e mulher, nos autos de acção ordinária que contra eles foram intentados por M..., vieram, já após decorrido o prazo para a respectiva apresentação, e reconhecendo que nos autos «não consta o rol das testemunhas», requerer «a audição em audiência de discussão e julgamento das testemunhas» que no mesmo requerimento indicaram.
Ouvidas as herdeiras, entretanto habilitadas por óbito do Autor, estas, considerando que a junção do rol pretendido era extemporâneo, e não devendo como tal ser admitido, não se opuseram, todavia, à audição das pessoas indicadas no requerimento dos Réus, desde que se viesse a entender ser a mesma essencial para a descoberta da verdade.
O Juiz do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa proferiu, então, o seguinte despacho:
Os Autores têm razão, pois os Réus deixaram passar o prazo para apresentar o rol de testemunhas.
De qualquer forma, fique nos autos o rol agora apresentado, para que seja possível em audiência, caso se torne necessário, utilizar a faculdade do artigo 645º do C.P.C..
Deste despacho (fls. 155) não houve recurso, tendo-se efectuado a audiência de julgamento sem audição de qualquer das testemunhas indicadas naquele requerimento dos Réus.
2. Proferida sentença, em 5 de Novembro de 1992, foi a acção julgada procedente e os Réus condenados no pedido.
Inconformados, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 12 de Dezembro de 1996, negou provimento ao recurso.
3. Os recorrentes interpuseram, então, recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas suas alegações, suscitaram a questão da inconstitucionalidade da interpretação da norma constante do artigo 645º, nº 1, do Código de Processo Civil, na medida em que não permitiu a audição das testemunhas por eles indicadas. E concluiram que, quanto a essa questão, «o acórdão recorrido violou os artigos 13º e 20º da Constituição».
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 26 de Junho de 1997, que negou a revista, entendeu que aquele despacho do Juiz de primeira instância continha «duas partes decisórias, uma a não admitir o rol de testemunhas por ter sido apresentado fora de prazo e outra a admitir a possibilidade de, em caso de necessidade, as ouvir, todas ou alguma, ao abrigo do disposto no artigo 645º do C. P. Civil».
E, concluindo pela verificação do trânsito em julgado da primeira parte do despacho em causa, e pela irrecorribilidade da respectiva segunda parte, afirmou-se nesse aresto:
Sucede que os réus não agravaram da primeira parte do despacho, a que não admitiu o rol de testemunhas.
Mas o mesmo sucedeu quanto à segunda parte do despacho, a que admitiu a possibilidade de as testemunhas serem ouvidas, se necessário, na audiência de julgamento, pois que, após o tribunal ter dado por finda a inquirição das testemunhas, os réus não agravaram da não inquirição dessas testemunhas, ao abrigo do dito artigo 645º, e só falaram no assunto na alegação do recurso de apelação da sentença.
Aliás, desta segunda parte do despacho não era possível recorrer, nos termos da 2ª parte do nº 1 do artigo 679º do C. P. Civil.
4. Os recorrentes arguiram, então, a nulidade daquele acórdão, por omissão de pronúncia no tocante à invocada questão da «inexistência do despacho de fls. 155», que consideraram ser «vício insanável pelo decurso do tempo». O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu tal requerimento, por acórdão de 4 de Novembro de 1997.
Vieram, então, os recorrentes interpor recurso para o Tribunal Constitucional, «nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de
15/11», para apreciação da a questão da inconstitucionalidade da norma constante do número 1 do artigo 645º do Código de Processo Civil, na interpretação dele feita na decisão recorrida.
5. Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal, tendo os recorrentes, nas suas alegações, formulado as seguintes conclusões:
(...) a recusa do rol de testemunhas dos réus pelo despacho de fls.
155 é inexistente, porque infringe a garantia do acesso ao direito do estado democrático (art. 20º da CR e, por integração analógica, arts. 34º e 76º do CPA);
(...) o uso constitucionalmente prudente do poder discricionário do artigo 645º do CPC impunha ao julgador ouvir das testemunhas do rol dos recorrentes as necessárias ao apuramento dos respectivos factos questionados;
(...) omitida qualquer produção de prova sobre esses factos relevantes para a decisão da causa, ficou inviabilizada a justa composição do litígio constitucionalmente exigida (arts. 2º, 13º, 20º e 202º a 204º CR);
(...) assim, a interpretação e a aplicação dessa norma processual no despacho de fls. 155 é inconstitucional;
(...) a invalidade deste acto judicial, porque viola direitos e garantias fundamentais, é a de maior gravidade – a inexistência, portanto (cfr. J. Miranda, 'Manual de Direito Constitucional II/316 e M. Rebelo de Sousa, 'O valor jurídico do acto inconstitucional', 1988, pgs 324 e sgs.);
(...) a decisão inexistente não produz quaisquer efeitos e é de conhecimento oficioso e a todo o tempo (artigo 286º do C.C por maioria de razão);
(...) e produz a anulação dos actos processuais subsequentes dele dependentes – o julgamento da matéria de facto e a sentença (artigo 201º do CPC).
As recorridas apresentaram contra-alegações, concluindo pela não verificação de qualquer inconstitucionalidade.
6. O relator ordenou, então, a notificação dos recorrentes nos termos do disposto no nº 3 do artigo 3º do CPC, por considerar que se não devia tomar conhecimento do recurso, pelos seguintes fundamentos:
A norma cuja inconstitucionalidade os recorrentes pretendem ver apreciada é a do artigo 645º, nº 1, do CPC, na medida em que consagra um poder discricionário do juiz que permite a não inquirição das testemunhas indicadas após decorrido o prazo para a apresentação do respectivo rol.
Pois bem, o que o STJ entendeu foi que o despacho que admitiu a possibilidade de uso da faculdade prevista no artigo 645º tinha, nessa parte, transitado em julgado, por não terem os recorrentes agravado, após realizada a inquirição das testemunhas, da não inquirição das por eles indicadas, apenas tendo trazido o assunto ao recurso de apelação, que não era o meio idóneo para tal efeito; e entendeu, ainda, que aquele despacho do Juiz a quo era, em todo o caso, irrecorrível, nos termos do disposto no artigo 679º, nº 1, do CPC
(correspondente ao actual artigo 679º).
É verdade que o STJ entendeu efectivamente que aquela norma atribui um poder discricionário ao juiz, uma vez que remete para a sua prudente apreciação a decisão de ouvir ou não as testemunhas. Mas, ainda que se possa afirmar que é essa mesma natureza de poder discricionário o que os recorrentes questionam, o certo, todavia, é que, como se afirmou no acórdão do STJ, os recorrentes não agravaram da não inquirição das testemunhas, assim tendo deixado precludir as hipóteses de impugnação dessa não inquirição, apenas se tendo insurgido contra ela na apelação, a qual não era meio idóneo para o efeito.
O STJ não apreciou, assim, a questão relativa à natureza daquele poder discricionário do juiz, nomeadamente, como pretendem os recorrentes, a sua natureza de poder-dever relativamente à audição das testemunhas no caso de não admissão do respectivo rol. Antes aplicou, tão-só, as normas de processo civil atinentes à determinação dos casos em que cabe recurso de apelação ou recurso de agravo, bem como as atinentes à formação de caso julgado.
Verifica-se assim a falta manifesta de um pressuposto essencial para o conhecimento do recurso: que a norma impugnada tenha sido aplicada pela decisão recorrida, designadamente com o sentido cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada.
Vieram os recorrentes responder, entendendo que o Juiz a quo
«interpretou e usou o poder conferido por essa norma processual [artigo 645º, nº
1, do CPC] de forma totalmente alheada do conteúdo constitucionalmente imperativo do conceito de boa decisão da causa», o que configuraria
«desconformidade face às garantias constitucionais de defesa dos réus», e consequente «inexistência do despacho em causa», concluindo pela tempestividade da arguição nas alegações do recurso de apelação, porquanto «qualquer destes vícios é arguível a todo o tempo e, entretanto, nenhum efeito pode esse despacho ter produzido – designadamente o de caso julgado formal».
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
7. A resposta dos recorrentes em nada abalou a exposição-parecer do relator, nem trouxe qualquer elemento novo, limitando-se os mesmos a reafirmar a sua posição.
O recurso de constitucionalidade só pode ter por objecto a apreciação da constitucionalidade de norma ou normas jurídicas concretamente aplicadas na decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade o recorrente tenha suscitado durante o processo (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC e artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição).
Ora, é manifesto que a decisão recorrida não fez a pretendida aplicação da norma impugnada, mas apenas das normas de processo civil relativas
à determinação dos casos que admitem recurso de apelação ou de agravo, e as relativas à formação de caso julgado.
Assim, não se verifica, in casu, aquele pressuposto essencial para o conhecimento do presente recurso.
III – DECISÃO
8. Nestes termos, e pelo essencial dos fundamentos constantes do parecer do relator, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) UC’s. Lisboa, 9 de Fevereiro de 1999 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa