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Proc. nº 211/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. V..., S.A., interpôs, para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho de Sua Excelência o Ministro da Justiça que decidiu um recurso hierárquico para si interposto pela Recorrente. Na origem deste recurso contencioso esteve a reclamação deduzida por V..., perante o Notário do 1º Cartório Notarial do Porto, contra a conta de emolumentos notariais cobrados aquando da celebração de uma escritura de constituição de propriedade horizontal e de compra e venda. Do despacho do Notário que desatendeu essa reclamação, foi interposto recurso hierárquico para o Director-Geral dos Registos e Notariado; negado provimento a esse recurso (por despacho de 5 de Março de 1996), foi apresentado novo recurso hierárquico, que veio a ser indeferido por despacho do Senhor Ministro da Justiça, de 21 de Março de 1996. No entender da Recorrente os emolumentos em causa constituiriam um verdadeiro imposto e, por isso, só poderiam ter sido estabelecidos por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo no uso de autorização legislativa. Ora, o Decreto-Lei nº 397/83, de 2 de Novembro, não foi precedido de qualquer autorização legislativa, razão por que enferma do vício de inconstitucionalidade o artigo 5º da tabela de emolumentos, com base no qual foi calculada a conta da mencionada escritura. No Supremo Tribunal Administrativo, o Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o despacho do Senhor Ministro da Justiça não era contenciosamente recorrível, utilisando a seguinte fundamentação:
'Nos termos do artigo 69º do Decreto-Lei nº 519-F2/79, de 29 de Dezembro, das decisões dos notários sobre reclamações contra erros da conta os interessados podem reclamar para o Director-Geral dos Registos e Notariado ? nº 1 ? ou podem imediatamente recorrer contenciosamente ? nº 2 ? e do despacho proferido por este sobre a reclamação não há recurso, podendo o reclamante, porém, impugnar contenciosamente a decisão do notário, através do recurso que couber ? nº 4. Por sua vez, o Decreto Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro, que regulamentou aquele diploma, estabelece, no seu artigo 139º, que contra qualquer erro da conta podem os interessados reclamar verbalmente perante o notário ? nº 1 ?, podem reclamar da decisão deste para o Director-Geral dos Registos e Notariado ? nº 3 ? e, no seu artigo 140º, que do despacho deste não há recurso, podendo o interessado interpor recurso da decisão inicial do notário ? nº 7. Em face deste regime, tem de concluir-se que o acto do Senhor Notário que apreciou a reclamação que a recorrente refere [...] era um acto material e verticalmente definitivo, para efeitos de impugnação contenciosa, embora podendo ser precedido de reclamação hierárquica. O recurso hierárquico interposto para o Senhor Ministro da Justiça, assim, tinha natureza meramente facultativa. O acto recorrido, assim, sendo posterior ao acto horizontalmente definitivo, não
é o acto definidor da posição jurídica final da Administração perante a recorrente, e carece de definitividade horizontal, pelo que não é contenciosamente recorrível ? artigo 25º, nº 1, da LPTA'. No acórdão proferido neste recurso contencioso interposto por V..., o Supremo Tribunal Administrativo considerou que:
'[...] o recurso hierárquico interposto pela Recorrente para o Ministro da Justiça tinha natureza meramente facultativa, daí que não pudesse interpor recurso contencioso do despacho ministerial de 21.5.96 em causa, pois o acto do Director-Geral dos Registos e Notariado já era definitivo e passível de recurso contencioso (art. 25, nº 1, do ETAF), limitando-se o despacho ministerial a confirmar aquele acto. Quer dizer: o recurso contencioso tinha de ser interposto do despacho do Senhor Director-Geral dos Registos e Notariado de 5.3.96 e do despacho do Senhor Ministro da Justiça de 21.5.96 que confirmou aquele. Assim, o recurso interposto do despacho do Senhor Ministro da Justiça é de rejeitar (art. 57, § 4, do RSTA)'.
O Supremo Tribunal Administrativo acrescentou:
'[...] este entendimento está de acordo com a natureza do acto tributário em causa.
[...] Sendo uma receita tributária, a respectiva liquidação pode ser sindicada pelos tribunais tributários de 1ª instância (art. 62, nº 1, alínea a), do ETAF; cfr. os arts. 117, 118, nº 2, alínea a), e 123º, nº 1, alínea a), do CPT), logo após a notificação para pagar os emolumentos. Daí que o eventual recurso hierárquico da decisão do Notário seja de natureza facultativa [...]. O mesmo pode dizer-se da reclamação para o Notário'. Considerou-se finalmente que:
'a tramitação a seguir para reagir contra a liquidação dos emolumentos notariais em causa é a impugnação judicial (art. 62, nº 1, alínea a), do ETAF), por isso, as normas do DL 519-F2/79, de 29.12 (art. 69), e do DR 55/80, de 8.1 (arts. 139 e 140), que atribuem competência ao tribunal de comarca para conhecer do recurso da decisão do notário são incompatíveis com os preceitos que regulam a impugnação judicial (art. 62, nº 1, alínea a), do ETAF) e, por consequência, inconstitucionais (arts. 113, nº 2, 213, nº 1, e 214, nº 4, da C.R.P.; cfr. acórdão do TC nº 36/87 [...])'. O Supremo Tribunal Administrativo concluiu que 'em face do exposto, a pretensão da recorrente não pode ser apreciada por não se ter seguido a tramitação legal' e rejeitou o recurso 'por o acto recorrido não ser passível de recurso contencioso'.
2. Deste acórdão interpôs recurso de constitucionalidade o Magistrado do Ministério Público junto daquele Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, a), e 72º, nºs 1, a), e 3, e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. No Tribunal Constitucional, o Magistrado do Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo concluído no sentido de que deve confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida. II
3. Constitui pressuposto do recurso previsto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional que a decisão recorrida tenha recusado a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade. Tendo o recurso de constitucionalidade natureza instrumental, só existe interesse jurídico em conhecer da questão de constitucionalidade que constitui objecto do recurso se a decisão de tal questão puder influir na decisão do processo de onde aquele emerge. Ora, apenas pode dizer-se que a decisão da questão de constitucionalidade é susceptível de influir na decisão do processo de onde emerge o recurso se a decisão recorrida tiver assentado (ou tiver assentado também) no julgamento de inconstitucionalidade nela feito. Se o julgamento de inconstitucionalidade constituir, na decisão recorrida, mero obiter dictum ? e não uma sua ratio decidendi ?, não existe interesse processual que justifique o conhecimento da questão pelo Tribunal Constitucional, pois, em tal caso, seja qual for o sentido da decisão que recaia sobre a questão, manter-se-á inalterada a decisão do tribunal recorrido.
4. Importa assim averiguar se o julgamento de inconstitucionalidade, constante do acórdão recorrido, constitui nele um mero obiter dictum ou se, pelo contrário, surge aí como ratio decidendi. O Supremo Tribunal Administrativo decidiu que 'a pretensão da recorrente não pode ser apreciada por não se ter seguido a tramitação legal' e rejeitou o recurso 'por o acto recorrido não ser passível de recurso contencioso'. No acórdão recorrido, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se no sentido de que a tramitação a seguir para reagir contra a liquidação dos emolumentos notariais em causa deveria ter sido a impugnação judicial. Fundamentou a sua decisão na qualificação dos emolumentos como 'receita tributária'. Sendo receita tributária, a respectiva liquidação teria de ser sindicada pelos tribunais tributários de 1ª instância, logo após a notificação para pagar os emolumentos. Invocou nesse sentido o artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril (com alterações posteriores), e os artigos
117º, 118º, nº 2, alínea a), e 123º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Tributário (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril (também com sucessivas alterações). Considerando que um eventual recurso hierárquico da decisão do Notário (bem como a própria reclamação para o Notário) sempre teria natureza facultativa, o acórdão rejeitou o recurso por o acto recorrido (o despacho do Senhor Ministro da Justiça) não ser passível de recurso contencioso (nos termos do artigo 57º, §
4, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo). A ratio decidendi da decisão do Supremo Tribunal Administrativo ? o fundamento da rejeição do recurso contencioso de anulação ? residiu na circunstância de o acto recorrido (o despacho do Senhor Ministro da Justiça) não ser passível de tal recurso. A decisão do Supremo Tribunal Administrativo assentou nas normas do artigo 62º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do artigo 57º, § 4, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo As considerações sobre o problema da constitucionalidade das normas do artigo
69º do Decreto-Lei nº 519-F2/79, de 29 de Dezembro, e dos artigos 139º e 140º do Decreto Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro ? porventura determinadas pelo teor do parecer do Magistrado do Ministério Público, que se fundamentou em tais normas ?, são manifestamente alheias à ratio decidendi. O julgamento de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida aparece nela como mero obiter dictum. Assim, fosse qual fosse o sentido da decisão do Tribunal Constitucional sobre a referida questão de constitucionalidade, em nada se alteraria a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo. Conclui-se portanto não estar preenchido o pressuposto do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Lisboa, 2 de Julho de 1998 Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Artur Mauricio Luis Nunes de Almeida