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Processo n.º 351/2012
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. e esposa B. reclamam para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal que não admitiu o recurso, por si interposto, para o Tribunal Constitucional.
O despacho reclamado tem o seguinte teor:
“A. e sua mulher B. interpõem recurso para o Tribunal Constitucional.
Trata-se de recurso interposto do Acórdão do Coletivo/Formação a que se refere o nº 3 do art.72 1°-A do CPCivil, último proferido, embora, a montante, tenha sido tirado um Acórdão da Relação, do qual recorreram e sobre cuja inadmissibilidade de recurso se pronunciou o, ora, posto em crise.
Independentemente do disposto no nº 4 daquele preceito, o recurso só seria admissível se impugnada norma, ou segmento, ou interpretação, aplicada no aresto recorrido — art.70°, nº 1, b) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n°28/82, de 15 de novembro).
Ora, este Conclave limita-se a apreciar/decidir a admissibilidade da revista excecional, por aplicação do nº 3 do art.72 1° (pressuposto) e art.72 1°-A, n° 1 e 2 (requisitos e respetiva motivação) do CPCivil.
Não foi suscitada no processo a inconstitucionalidade desses preceitos,”maxime”das alíneas a) e b) do nº 1 do último citado (pedindo-se agora, sem mais, que o TC”aprecie a inconstitucionalidade”) nem recusada a sua aplicação com fundamento em inconstitucionalidade.
Aliás, os recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade da interpretação das normas em apreço sendo que tiveram oportunidade de o fazer aquando da interposição do recurso pois sabiam ser esta a posição do Coletivo, tal como consta dos vários acórdãos citados no recorrido e publicados na base de dados
Daí que não admita o recurso para o Tribunal Constitucional”.
2. Na reclamação apresentada junto deste Tribunal, os reclamantes vieram dizer o seguinte:
“1º
O sobredito recurso foi interposto ao abrigo da al. b) do nº 1 do art.º 70° da Lei nº 28/82, de 15 de novembro, para apreciação da arguida inconstitucionalidade das normas contidas nos artºs. 224°, nº 1, 560º, 781°, 783°, nº 1, 790°, nº 1, 792°, nº 1 e 813°, todos do Código Civil e art.º 652°, nº 1, in fine, este do Código de Processo Civil, na interpretação que delas foi feita nas instâncias.
2°
Com efeito, a interpretação contrária à Constituição feita de tais normas, seja pela sua aplicação, seja pela sua omissão nas decisões recorridas ordinariamente na 1.ª instância e bem assim na Veneranda Relação de Coimbra e cuja suscitação havia sido efetuada previamente pelos recorrentes na conclusão r) do recurso de apelação, ao alcance de apreciação pela Relação recorrida, como também na conclusão i) do inadmitido recurso apresentado no STJ, como bem se declarou no item 4) do que ora veio inadmitido e de que se reclama.
3º
Ora, a decisão aqui reclamada olvida a primeira das arguições referenciadas para se debruçar apenas e só sobre aquela que foi suscitada em sede da aludida alínea i) da revista apresentada, onde os recorrentes se limitavam a reiterar as razões da inconstitucionalidade arguida perante a instância antecedente.
4º
Destarte, é claro que a vexata quaestio apresentada à apreciação deste Tribunal é a que está consignada na conclusão r) do recurso de apelação apresentado ao juízo da Relação de Coimbra, com expressa indicação das normas erradamente interpretadas, as violadas e a solução jurídica tida por correta, conforme detalhadamente expresso no seu texto, ao alcance de exame.
5°
Mas a rejeição do recurso tem por fundamento exclusivo as normas dos art.ºs 721°, n.º 3, e 721°-A, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, preceitos que nem fazem parte do elenco das que se consideram violadas no antecedente, como é incontroverso.
6°
Não que o não devessem ser, vista a sua errada aplicação como se defende, nem que a sua suscitação não fosse admissível visto o inusitado do entendimento que sustenta a rejeição do recurso de revista… mas não é!
7º
E nada mais apraz dizer em face do evidente erro de apreciação para a rejeição que nada tem a ver diretamente com o recurso apresentado que carece de admissão vista a sua adequada tramitação anterior.
8°
De resto, o requerimento ia também dirigido à Relação a quo onde, em bom rigor processual, deveria ser apreciada a admissibilidade do recurso por via da rejeição da revista apresentada”.
3. O requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade tem o seguinte teor:
“1. O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do nº 1 do art.º 706 da Lei nº 28/82, de 15 de novembro.
2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas contidas nos:
a) – artºs 224°, nº 1, 560°, 781°, 783°, nº 1, 790°, nº 1, 792°, nº 1 e 813º, todos do Código Civil; e
b) - art° 652°, nº 1, in fine, este do Código de Processo Penal;
aplicadas ou omitidas nas decisões recorridas ordinariamente, com as interpretações nelas imanentes, mesmo que imperfeitamente expressas, não percetíveis ou mesmo omissas, mas que se sumariam em que por se considerar factualmente ter existido incumprimento dos devedores não releva apreciar se existe, de facto, incumprimento culposo e mora do credor em cumprir outras obrigações contratuais, designadamente as de boa prática bancária com correta aplicação e contabilização de juros remuneratórios fixados oficialmente.
3. Tais interpretações normativas, expressas ou presumidas pelo sentido das decisões em causa, violam, na perspetiva dos recorrentes, os imperativos dos art°s 3°, nº 2, 9°, al. d), 13°, 18°, nº 1, 60°, nº 1, 80º, al. a), 202°, nº 2, e 203° da Constituição da República Portuguesa.
4. A questão de inconstitucionalidade interpretativa foi suscitada na conclusão r) do recurso de apelação e, posteriormente, reiterada em sede conclusão da i) do inadmitido recurso de revista.
5. Sendo que a interpretação considerada correta das sobreditas normas legais está plasmada sucintamente a final da referida conclusão recursiva ante a Relação, coroando as que a antecediam, como ali se expressou, mas que se pode resumir a que cabe ao devedor o direito a reter os valores pecuniários a que está contratualmente obrigado se, entre o mais, estes montantes carecem de correção devido à errada contabilização do juro compensatório do mútuo por via da aplicação de taxa de juro diversa da legalmente estipulada e contratualmente prevista, em prejuízo desse devedor, prevalecendo o seu direito ante a mora do seu credor.
6. O presente recurso deverá subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão recorrida, como aquele que o antecedeu, o de ref. 818916 dos autos (art.º 78.º , nº 2, LTC)”.
4. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal veio dizer o seguinte:
“1. Pedida revista excecional do acórdão da Relação de Coimbra que, por unanimidade, confirmou a decisão proferida em 1.ª instância que havia julgado improcedente a oposição à execução deduzida pelos executados A. e B., o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão de 14 de fevereiro de 2012, não a admitiu.
2. Após o indeferimento de um pedido de aclaração, os executados interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, recurso que não foi admitido por decisão do Exmº. Senhor Conselheiro Relator, da qual, reclamaram, então, para este Tribunal Constitucional.
3. Para o douto despacho reclamado, o acórdão do qual foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional é o que não admitiu a revista excecional.
4. No requerimento de interposição de recurso não se identifica com clareza qual o acórdão recorrido.
5. Por um lado, há expressões que parecem sugerir ser o proferido na Relação, que julgou a apelação improcedente, como por exemplo: “ (...) recurso para o Tribunal Constitucional sobre a matéria correspondente às questões suscitadas ante a Veneranda Relação a quo”.
6. Por outro, ao dizer-se que se reiterou a suscitação da questão “em sede da conclusão i), do inadmitido recurso de revista”, parece indiciar que é do acórdão que negou a revista excecional que se recorre.
7. Por último, convém acrescentar que o requerimento de interposição de recurso é apresentado no Supremo Tribunal de Justiça e dirigido aos: “Exm°. Senhor Juiz Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça; Exm°s. Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra; Exm°s. Senhores Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional”.
8. Naturalmente que, considerando-se que o acórdão recorrido é o que indeferiu a revista excecional, tal aresto limitou-se a aplicar as normas que regulam a admissibilidade daquele recurso, ou seja, os artigos 721. °, nº 3 e 721.°-A, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e não os indicados pelos recorrentes.
9. Mas mesmo que se entendesse que o acórdão recorrido era aquele que, na Relação, julgou a apelação improcedente, sempre a reclamação seria de indeferir.
10. Efetivamente, vendo o requerimento de interposição de recurso e a conclusão r) do recurso de apelação — onde, segundo os recorrentes, foi suscitada a questão —-constata-se que não foi enunciada nem suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional fosse competente.
11. Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação”.
5. Foi então proferido o seguinte despacho pelo Relator:
Uma vez que, na vista, o Ministério Público identificou um outro fundamento para a não admissão do recurso de constitucionalidade e, subsequentemente, para o indeferimento da reclamação, notifique-se o reclamante para que, querendo, se pronuncie sobre a questão num prazo de dez (10) dias.
À notificação deve ser junta cópia do visto do Ministério Público.
6. Em resposta ao despacho do Relator, vieram os reclamantes dizer o seguinte:
“1. A inconstitucionalidade na interpretação das normas legais indicadas que ora está em juízo foi suscitada primariamente na conclusão r) do recurso de apelação.
2. Uma vez que foi interposto recurso de revista, a mesma questão veio a ser nele incorporada, na conclusão i), assim se cumprimento o dever de suscitação sequencial nas instâncias percorridas.
3. Rejeitado que foi este derradeiro recurso ordinário e esgotados assim os recursos de amparo, ficou por apreciar nesta sede constitucional a questão de que aqui se cuida agora e que foi arguida ante o STJ, onde se encontravam os autos, embora a matéria objeto do recurso dissesse respeito à decisão tirada na Veneranda Relação.
4. Daí que o requerimento de arguição de nulidade tivesse sido dirigido, em simultâneo, aos:
- Ex.mo Juiz Conselheiro Relator do STJ, detentor dos autos e competente para a remessa destes ao tribunal onde a inconstitucionalidade havia sido arguida;
- Ex.mos Juízes Desembargadores do TRC, mentores dos autos na fase em que a questão a apreciar foi suscitada;
- A V. Ex.cias, Senhores Juízes Conselheiros, enquanto membros do tribunal ad quem, decisores, em última instância, da questão suscitada.
5. Penitenciando-se o signatário se, por muito querer cumprir o dever de respeito por todas as autoridades judiciárias envolvidas, criou, inadvertidamente, alguma arreliadora confusão.
6. No que tange à identificação do acórdão recorrido é ele aquele que foi prolatado pela Relação de Coimbra e perante quem foi inicialmente suscitada a irregularidade constitucional da interpretação normativa que o sustenta, como está claro no texto do requerimento.
7. Sendo o texto da conclusão i) do recurso de revista um mero cumprimento das formalidades exigidas na sequência processual e a sua menção no requerimento de interposição de recurso constitucional simples demonstração de que este dever de suscitação adequada nas sucessivas instâncias havia sido rigorosamente cumprido.
8. Já no que concerne ao alegado defeito processual da sobredita conclusão r) da apelação para efeitos de recurso de inconstitucionalidade interpretativa, salvo o devido respeito, encontram nele constituídos — e com detalhe - todos os requisitos legais para ser admitido, a saber:
- as normas erradamente interpretação e as violadas;
- a interpretação possível retirada da decisão ali onde haviam sido aplicadas ou omitidas;
- o entendimento havido por correto pelos recorrentes.
Julgando ter-se esclarecido a pretensão dos recorrentes, pugna-se pela procedência da reclamação e consequente admissão do recurso para ulteriores termos até final”.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
7. O despacho reclamado, identificando como acórdão do qual é interposto recurso para o Tribunal Constitucional o acórdão do STJ que não admitiu a revista excecional, não admitiu o recurso, com fundamento em não terem as normas que integram o seu objeto sido previamente suscitadas pelos recorrentes ou aplicadas pela decisão recorrida.
Desde logo, verifica-se que o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade é duplamente irregular, pois, não só nele se não identifica com clareza qual a decisão de que se pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional, como é dirigido a três órgãos diferentes.
Ora, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 684.º-B do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 69.º da LTC, os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Ao identificar como acórdão recorrido o acórdão do STJ que não admitiu a revista excecional, o despacho reclamado limitou-se a dar sequência a um requerimento de interposição do recurso irregular.
Não cabe ao Tribunal Constitucional tomar posição sobre a correção do despacho reclamado na parte em que o mesmo identifica como acórdão recorrido o acórdão do STJ que não admitiu a revista excecional, sobretudo considerando o que já ficou dito sobre a irregularidade do requerimento de interposição do recurso.
Sendo a decisão recorrida o acórdão do STJ que não admitiu a revista excecional, é de confirmar na íntegra os fundamentos oferecidos pelo despacho reclamado para a não admissão do recurso de constitucionalidade. Com efeito, verifica--se que, não só não foram as questões que integram o objeto do recurso previamente suscitadas, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida de modo a este estar obrigado a delas conhecer, tal como é exigido pelo artigo 72.º, n.º 2 da LTC, como as normas questionadas não foram sequer aplicadas pela decisão recorrida, na medida em que, tratando-se de apreciar a admissibilidade da revista excecional, a decisão do STJ apenas aplicou as normas dos artigos 721.º, n.º 3 e 721.º-A, nos. 1 e 2.
Tanto basta para que não proceda a presente reclamação.
8. De qualquer modo, sempre se dirá que, mesmo na hipótese de se considerar como decisão recorrida, não o acórdão do STJ que não admitiu a revista excecional, mas antes o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 25.10.2011, que julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença do tribunal de primeira instância, ainda assim se não poderia conhecer do presente recurso de constitucionalidade.
Desde logo, não se poderia conhecer desse recurso, porque relativamente a ele não se encontra proferido o despacho a que se refere o artigo 76.º, n.º 1 da LTC, uma vez que, tratando-se de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, era este o órgão competente para decidir sobre a admissão do recurso.
Independentemente desse aspeto, o recurso não poderia ser admitido, porque não se verifica o pressuposto processual de prévia suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, estabelecido no artigo 72.º, n.º 2 da LTC, não se podendo como tal considerar a afirmação feita na conclusão r) das alegações do recurso de apelação, segundo a qual “[…] a interpretação feita pelo tribunal a quo das normas que se têm vindo a elencar, as dos art.ºs 224º, nº 1, 560º, 781º, 783º, nº 1, 790, nº 1, 792º, nº 1, e 813º do Código Civil, e do artº 653º, nº 2, in fine, do Código de Processo Civil, - aplicadas ou omitidas por deficiente entendimento jurídico – no sentido de que, simplesmente, existiu incumprimento da obrigação mutuária desde novembro de 2007, olvidando as razões factuais e jurídicas ponderosas que originaram a sua mera retenção, enferma de vício de inconstitucionalidade […]”. A razão por que se não pode considerar satisfeito o referido pressuposto processual é a de que, não obstante aí se afirmar que determinada interpretação dos preceitos legais identificados, enferma de vício de inconstitucionalidade, o modo como é enunciada qual teria sido essa interpretação não contém uma vocação de generalidade e abstração na enunciação dos critérios normativos que lhe estão subjacentes, autonomizáveis da pura atividade subsuntiva, ligada irremediavelmente a particularidades específicas do caso concreto e, portanto, passíveis de controlo jurídico-constitucional. Dito de outro modo, não obstante se reportar formalmente o vício de inconstitucionalidade a determinada interpretação de vários preceitos legais, o que, em substância, se questiona é a correção do próprio juízo concretamente efetuado sobre o incumprimento da obrigação mutuária, a ele se imputando o vício de inconstitucionalidade.
III – Decisão
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando o despacho reclamado que não admitiu o recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de junho de 2012.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.