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Proc. nº 803/92
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 – Por decisão do 5º Juízo Cível da Comarca do Porto, de 12 de Maio de 1991, foi julgada parcialmente procedente a acção especial de despejo que M... (ora recorrida) interpôs contra F... e mulher (ora recorrentes) e, em consequência, declarada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre estes e a anterior usufrutuária do prédio.
2 – Inconformados com o teor do aresto supra referido os réus recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, tendo desde logo suscitado, nas respectivas alegações, a questão da inconstitucionalidade material do nº 2 do art. 5º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (diploma que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano – abreviadamente RAU), por violação do disposto no art. 65º da Constituição. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 22 de Junho de 1992, negou provimento ao recurso confirmando na íntegra a decisão recorrida. No que especificamente se relaciona com a suscitada questão de inconstitucionalidade, disse aquele Tribunal:
'Trata-se (o artigo 65º da CRP), como diz o Prof. Galvão Telles, no seu parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, 59, apenas de uma directriz programática, de um dever político imposto ao Estado no sentido de adoptar as providências adequadas à realização do nobre ideal que é o de todos poderem realmente ter, para si e sua família, uma habitação condigna, com os requisitos enunciados no citado preceito constitucional (...). O novo regime fixado com a eliminação do nº 2 do artigo 1051º restringe-se ao círculo das relações entre os particulares e nada tem a ver com a tarefa que ao Estado está consignada no referido artigo 65º. É a este que compete assegurar a habitação daqueles que a não têm e não aos particulares proprietários. Aliás, no caso em apreço, a invocada eliminação do nº 2 do artigo 1051º do Código Civil não implica a perda do direito à habitação. Como já se disse, não obstante a caducidade do arrendamento, o inquilino fica com direito a novo arrendamento. Conclui-se, assim, inexistir a apontada inconstitucionalidade.'
3 – É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso de constitucionalidade. Pretendem os recorrentes ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 5º, nº
2, do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, por entenderem que tal norma viola o disposto no artigo 65º da Constituição Portuguesa.
4 – Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para apresentar alegações, o que fizeram, tendo concluído nos seguintes termos: 'O disposto no nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, está ferido de inconstitucionalidade material, pois, ao dispor da maneira que dispôs, violou o corpo e espírito do artigo 65º da C.R.P.'.
5 – Igualmente notificada para alegar, a recorrida disse, a concluir, que 'O presente recurso não é mais do que um mero expediente dilatório. O artigo 5º, nº
2, do Decreto-Lei nº 321-B/90 não está ferido de inconstitucionalidade'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
7 – Dispõe a alínea c) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil que o contrato de locação caduca 'quando cessa o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado'. E dispunha o nº 2 daquele artigo 1051º, em vigor à data da propositura da acção de despejo que deu início ao presente processo, que: 'No arrendamento urbano, o contrato não caduca pela verificação dos factos previstos na alínea c) do número anterior, se o inquilino, no prazo de 180 dias após o seu conhecimento, comunicar ao senhorio, por notificação judicial, que pretende manter a sua posição contratual'. Já na pendência da acção entrou em vigor o Decreto-Lei nº 321º-B/90, de 15 de Outubro, cujo nº 2 do artigo 5º revogou expressamente o nº 2 do artigo 1051º do Código Civil. Em sua substituição estabeleceu-se no nº 2 do artigo 66º do RAU que 'Quando o contrato de arrendamento para habitação caduque por força da alínea c) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil, o arrendatário tem direito a novo arrendamento nos termos do artigo 90º'. Em suma: Segundo o regime em vigor à data da propositura da presente acção de despejo - o previsto no artigo 1051º, nº 2, do Código Civil - cessando o direito com base no qual o contrato de arrendamento havia sido celebrado - no caso o direito de usufruto - este não caducava se o inquilino, no prazo de 180 dias após o conhecimento da cessação daquele direito, comunicasse ao senhorio, por notificação judicial, a intenção de manter a sua posição contratual. Nos termos do regime entretanto instituído pelo RAU, a cessação do direito com base no qual o contrato de arrendamento foi celebrado importa a caducidade deste contrato, mas o arrendatário tem direito, ex vi do artigo 66º, nº 2, a um novo contrato de arrendamento a celebrar nos termos do artigo 90º daquele diploma.
8 - Entendeu o Tribunal da Relação do Porto, por força da interpretação que fez do regime previsto em matéria de aplicação da lei no tempo pelo artigo 12º do Código Civil, que o novo regime era aplicável à situação objecto dos autos, e, em consequência, confirmou a decisão recorrida na parte em que esta declarava a caducidade do contrato de arrendamento, reconhecendo contudo o direito dos inquilinos (os ora recorrentes) à celebração de um novo contrato de arrendamento.
É esta decisão que os recorrentes contestam, designadamente por entenderem que ela se funda na aplicação de uma norma - o artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
321º-B/90, de 15 de Outubro - que é, quando aplicada aos autos sem se estabelecer um prazo de 180 dias para a sua entrada em vigor, inconstitucional por violação do direito à habitação previsto no artigo 65º da Constituição. Vejamos se têm razão.
9 - Importa, antes de mais, delimitar com rigor o objecto do recurso. Tem este Tribunal afirmado de forma reiterada que os seus poderes de cognição estão limitados pelo pedido - embora não pela causa de pedir -, no sentido de que o recurso de constitucionalidade se restringe à apreciação da compatibilidade com a Constituição das normas cuja apreciação haja sido requerida pelos recorrentes. E, mais, tem dito este Tribunal que o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade constitui o acto idóneo para a fixação do respectivo objecto
(cfr., entre muitos outros nesse sentido, o Acórdão nº 366/96, em Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996). Constitui, em suma, jurisprudência assente neste Tribunal que o recurso de constitucionalidade, designadamente o previsto na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da lei nº 28/82, é limitado à apreciação da compatibilidade com a Constituição da(s) norma(s) cuja apreciação tenha sido requerida no respectivo requerimento de interposição, que assim delimita o seu objecto. Ora, nos termos do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade que agora se julga, os requerentes apenas suscitam a questão da constitucionalidade da norma que consta do artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
321º-B/90, de 15 de Outubro. É pois este – e só este – o seu objecto. Fora do objecto possível do presente recurso ficam assim, de acordo com a jurisprudência antes expressa, a questão da compatibilidade com a Constituição do sentido normativo do artigo 12º do Código Civil por que optou a decisão recorrida - segundo o qual o regime previsto no novo diploma era de aplicar à situação objecto dos autos -, bem como a questão da inconstitucionalidade material do regime previsto no artigo 66º, nº 2, do RAU.
10 – Delimitado, nos termos supra expostos, o objecto do recurso, cabe decidir da alegada inconstitucionalidade material do artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei
321º-B/90, de 15 de Outubro. Será inconstitucional, designadamente por violação do artigo 65º da Constituição, a revogação por aquele artigo 5º, nº 2, da excepção à caducidade do contrato de arrendamento prevista no nº 2 do artigo
1051º do Código Civil ? Entendemos que não. No acórdão nº 381/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25. Vol., pp. 547 e ss.) o Tribunal Constitucional foi confrontado com a questão de saber se seria inconstitucional o nº 2 do artigo 1051º do Código Civil, designadamente por violação do artigo 65º da Constituição, na parte em que fazia depender a não caducidade do contrato de arrendamento, nas hipóteses previstas na alínea c) do nº 1 daquele preceito, da comunicação por parte do inquilino, por notificação judicial, da intenção de manter a sua posição contratual. E, a propósito dessa questão, disse o Tribunal Constitucional:
'Este preceito (o artigo 65º da Constituição) vem, no seu nº 1, reconhecer a todos os cidadãos o direito a terem, para si e para a sua família, uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. Aqui, pois, nas palavras do acórdão deste Tribunal nº 130/92 (Diário da República, II Série, de 24 de Julho de
1992), se consagra «o direito a uma morada decente...; uma morada que seja adequada ao número de membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade». Tem sido reconhecido que este direito – e independentemente agora de entrar na questão de saber se se trata de um verdadeiro direito subjectivo ou de uma mera pretensão jurídica (cfr. , sobre a questão, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., pp. 680 1 682, e Vieira de Andrade, Os direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 1987, p. 205) – tem fundamentalmente como destinatário passivo o Estado, entidade à qual se dirigem as incumbências e imposições constantes dos números 2, 3 e 4 do artigo 65º, e não, em princípio e em primeira linha, os titulares dos direitos de propriedade ou de gozo das habitações. Por isso, dir-se-á afoitamente, é explicável que, uma vez cessado o direito com base no qual o usufrutuário, no exercício dos poderes de uso, fruição e administração do prédio urbano usufruído, transmitiu temporariamente o respectivo gozo para outrem por intermédio de um contrato de locação, cesse também para o inquilino o gozo de que desfrutava, pois que, com aquela cessação,
«convalidaram-se» no proprietário de raiz todos os poderes inerentes ao direito de propriedade de que é titular, sendo certo que ele não interveio na transferência temporária do gozo antecedentemente feita e que constituía uma
«oneração» obrigacional sobre esse prédio, a tal transferência sendo, pois, estranho. Há, aqui, uma razão válida, justamente fundada no direito de propriedade do prédio urbano, que justifica a caducidade do contrato de arrendamento, em consequência não se podendo dizer que a norma que prevê essa caducidade seja feridente da Constituição. (Sublinhado nosso)'. Concluiu assim o Tribunal Constitucional - conclusão que se mantém perfeitamente válida - pela não inconstitucionalidade da norma que prevê a caducidade do contrato de arrendamento na hipótese de cessação do direito – no caso de usufruto – com base no qual ele foi celebrado.
É, pois, esta jurisprudência que agora há que reiterar, uma vez que o sentido material de quanto se dispõe no artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei 321º-B/90, de 15 de Outubro, é precisamente o de estabelecer o regime da caducidade do contrato de arrendamento na hipótese de cessação do direito com base no qual ele foi celebrado.
11 - Acresce – como, bem, notava já a decisão recorrida – que a revogação pelo artigo 5º, nº 2º, do Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, da excepção ao regime da caducidade do contrato de arrendamento prevista no nº 2 do artigo
1051º do Código Civil, não pode ser desligada do que se dispõe actualmente no artigo 66º, nº 2, do RAU - regime que veio substituir o que constava daquele artigo 1051º, nº 2. É que, por força de quanto se dispõe naquele artigo 66º, nº
2, a revogação da excepção ao regime da caducidade do contrato de arrendamento prevista no nº 2 do artigo 1051º do Código Civil não implica a perda do direito
à habitação, pois que o inquilino adquire nessas hipóteses o direito a um novo contrato de arrendamento a celebrar nos termos dos artigos 90º e seguintes. Encontrou assim o legislador, dentro da margem de liberdade de que dispõe, uma nova forma de conformar os interesses em conflito, salvaguardando, ainda que por outra via, a manutenção do direito à habitação. De tudo o exposto decorre, pois, que o artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
390-B/90, de 15 de Outubro, não é inconstitucional por violação do artigo 65º da Constituição.
12 - A norma já foi contestada quanto à sua constitucionalidade orgânica. Sobre o ponto pronunciou-se, no sentido da não inconstitucionalidade, por entender que tem credencial nas alíneas a) e c) do artigo 2º da respectiva lei de autorização legislativa (Lei nº 42/90, de 10 de Agosto), o Acórdão nº 658/98 (inédito) da 1ª secção deste Tribunal. Mesmo quem como o presente relator dê uma interpretação à alínea c) diferente da adoptada nesse acórdão (cfr. as posições tomadas sobre essa alínea no acórdão nº 55/99 - inédito - do plenário deste Tribunal ) poderá ainda acolher as razões nele referidas no sentido do cabimento na alínea a). Acresce que se trata de uma norma que sempre constou dos anteprojectos legislativos (artigo 5º, quer do documento Estrutura Jurídica da Reforma do Regime do Arrendamento Urbano, quer do documento Autorização ao Governo para Legislar sobre Rendamento Urbano-Projecto de Proposta de Lei do Governo) que antecederam a autorização parlamentar.
III – Decisão Assim, e pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida quanto à suscitada questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 1999 José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto junta) Declaração de voto
Votei vencido, por entender que a norma em apreço se encontra ferida de inconstitucionalidade orgânica.
Com efeito, se a alínea c) da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, se me afigura imprestável como credencial para a edição, pelo Governo, de uma norma com o conteúdo da norma impugnada (como resulta, necessariamente, da declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 311/93), a verdade é que igualmente imprestável se me afigura, no caso, a alínea a) do mesmo artigo.
É que, em conformidade com a referida alínea, a autorização conferida ao Governo para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano deveria obedecer ao propósito de codificação dos diplomas existentes naquele domínio, «por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade». Ora, no caso vertente, não ocorre o pressuposto identificado pela Assembleia da República.
Assim, não se descortina como pode ter como objectivo a codificação dos diplomas existentes uma norma meramente revogatória, que obviamente não pode colmatar lacunas, como não pode solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da multiplicidade normativa, já que a norma revogada era a
única que regulava a matéria. Aliás, esta circunstância elimina igualmente a possibilidade de a norma revogatória pretender remover contradições existentes na legislação então em vigor, sendo estas contradições a que obviamente se referia a autorização legislativa para codificar.
Nem se argumente com uma eventual contradição entre a norma revogada e certos princípios gerais. É que, como assinalou expressamente este Tribunal no Acórdão nº 381/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., pág. 547 e segs.), a excepção constante do artigo 1052º, nº 2, do Código Civil, encontrava credencial bastante no artigo 65º da Constituição, ficando «dependente da vontade do legislador, no uso da liberdade de conformação que lhe deve ser reconhecida, o estabelecimento de excepções ao princípio da caducidade dos contratos de locação por cessação do direito ou pela finalização dos poderes legais de administração por via dos quais aqueles contratos foram celebrados».
Nesta conformidade, é inquestionável que a norma impugnada veio inovar, invertendo a opção legislativa vigente, sem que o Governo se encontrasse munido da indispensável autorização legislativa.
Messias Bento Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com dispensa de visto) José Manuel Cardoso da Costa