Imprimir acórdão
Proc. nº 484/97
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém deduziu acusação contra A..., imputando- lhe a prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punível nos termos do artigo 300º do Código Penal de 1982 (actualmente no artigo 205º do Código Penal).
O Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, por acórdão de 5 de Dezembro de 1991 absolveu o arguido.
2. A assistente D... interpôs recurso do acórdão de 5 de Dezembro de 1991 para o Tribunal da Relação de Évora.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 21 de Janeiro de
1997, negou provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, o acórdão recorrido.
Nesse aresto, o Tribunal da Relação de Évora iniciou a fundamentação, afirmando o seguinte: 'esta Relação conhece de facto e de direito, ao abrigo do disposto no artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929, aplicável ao caso atenta a temporalidade dos factos'. De seguida, procedeu
à apreciação da prova documental constante dos autos e das respostas aos quesitos, tendo mesmo alterado a resposta ao quesito 7º. A final, concluiu pela falta de prova dos elementos constitutivos do crime de abuso de confiança, absolvendo o arguido.
3. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 21 de Janeiro de 1997 ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional, em virtude de o Tribunal da Relação de Évora ter aplicado no acórdão recorrido a norma contida no artigo
665º do Código de Processo Penal, norma que foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 190/94 (D.R., II Série, de 12 de Dezembro de 1995).
Junto do Tribunal Constitucional o Ministério Público alegou, tendo tirado as seguintes conclusões:
1º - Não padece de inconstitucionalidade a invocação e interpretação da norma contida no artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 (lida sem sobreposição do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934), traduzida em a Relação, em recurso interposto pelo assistente de decisão absolutória do arguido ter apurado exaustivamente da existência de deficiência, obscuridade ou contradição entre as respostas aos quesitos, da possível insuficiência da matéria de facto provada, da existência de elementos de prova, constantes dos autos, que só por si implicassem resposta diferente aos quesitos ou de erro notório na apreciação da prova.
2º - Na verdade, os únicos limites à plenitude do exercício dos poderes cognitivos da Relação, como 2ª instância no julgamento da matéria de facto - decorrentes da inexistência de um registo das provas produzidas oralmente perante o colectivo e de as respostas aos quesitos se não encontrarem motivadas
- não é, na especificidade do caso 'sub judice' (recurso interposto pelo assistente da decisão que absolveu o arguido, confirmando tal absolvição) susceptível de colidir com as garantias de defesa do arguido, ínsitos no artigo
32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
3º - Termos em que, atenta a especificidade do caso dos autos, deverá confirmar-se o juízo de constitucionalidade da interpretação normativa dos seus poderes cognitivos, feita pela Relação, no acórdão recorrido.
Por seu turno, o recorrido contra-alegou, tendo concluído do seguinte modo: a) O recorrido adere inteiramente e subscreve as doutas conclusões do Exmo. Procurador-Geral. b) Na verdade, o Acórdão da Relação de Évora não viola as garantias de defesa do arguido prescrito no artigo 32º nº 1 da Constituição. c) O Acórdão recorrido, embora tenha aludido ao artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, fez um exame exaustivo da prova, alterando-a inclusivamente e abordando todas as questões que podiam modificar a decisão de facto. d) Em consequência o recorrido pede que este Venerando Tribunal considere que o Tribunal recorrido não praticou qualquer inconstitucionalidade, devendo confirmar a decisão recorrida.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir. III Fundamentação
5. Em arestos anteriores, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma constante do artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929 em duas dimensões diferenciadas: tanto na sobreposição interpretativa do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934 (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 219/89, D.R., II Série, de 30 de Junho de 1989) como independentemente de tal sobreposição interpretativa (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 190/94, D.R., II Série, de 10 de Janeiro de 1995).
Em todos os casos, a norma foi julgada inconstitucional por não ser compatível com o direito a um duplo grau de jurisdição em processo penal, que está consagrado, como garantia de defesa, no artigo 32º, nº 1, da Constituição
(agora de forma explícita, após a quarta revisão constitucional, aprovada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro; anteriormente, ínsito nas garantias de defesa abstractamente configuradas).
6. Ora, no caso sub judicio, a conformidade do artigo 665º do Código de Processo Penal à Constituição coloca-se de modo inédito, já que está em causa um recurso interposto pelo assistente da sentença absolutória proferida em primeira instância. Assim, não está em causa, manifestamente, uma garantia de defesa, mas antes a alegada exigência de que o recurso abranja sempre, em processo penal, a matéria de facto. Porém, não será a circunstância de os anteriores juízos de inconstitucionalidade emitidos pelo Tribunal Constitucional se fundamentarem na violação das garantias de defesa pela norma em crise que inviabilizará a priori a necessidade de examinar a susceptibilidade da sua extensão ao caso vertente e, consequentemente, a admissibilidade de um recurso ao abrigo da alínea g) do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
7. Nos julgamentos de inconstitucionalidade precedentes, o Tribunal Constitucional apenas julgou inconstitucional a norma sindicada na medida em que ela não confere ao arguido a possibilidade de um reexame da matéria de facto pelo tribunal ad quem com a latitude requerida pelas garantias de defesa. De resto, o Tribunal Constitucional frisou, em sucessivos arestos, que não há, de forma sistemática e universal, o direito a um duplo grau de jurisdição, nomeadamente em processo civil (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 31/87, D.R., II Série, de 1 de Abril de 1987; no mesmo sentido, ver Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, l994, p. 99 e ss., e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 164). Deste modo, não se pode inferir dos precedentes julgamentos de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade da norma constante do art. 665º do Código do Processo Penal de 1929, na dimensão em que não assegura a plena revisibilidade da matéria de facto no âmbito de um recurso de uma sentença absolutória interposto pelo assistente. Na verdade, tal revisibilidade plena não constitui, em sentido algum, corolário das garantias de defesa.
8. Assim, a extensão do juízo de inconstitucionalidade ao caso em análise pressuporia, em alternativa, uma de duas teses: a. Independentemente do seu autor, o recurso em processo penal tem de abarcar sempre, de idêntico modo, a matéria de facto, atendendo, nomeadamente, aos valores de justiça e verdade material que lhe estão associados; b. Em homenagem ao princípio da igualdade de armas - e às exigências de contraditoriedade -, o recurso interposto pelo assistente (ou pelo Ministério Público) não pode possuir um âmbito mais restrito do que o interposto pelo arguido. Todavia, nenhuma das asserções é verdadeira. A primeira implica a existência de um direito de recurso mesmo no caso de sentenças absolutórias, ignorando, precisamente, que são as garantias de defesa que explicam a especificidade do processo penal ante o processo civil. A segunda olvida que a igualdade de armas não pode prejudicar, justamente, certos princípios fundamentais de processo penal erigidos em defesa do arguido - é o caso, nomeadamente, da presunção de inocência com o consequente direito ao silêncio e do non bis in idem com a decorrente limitação do recurso extraordinário de revisão sempre que esteja em causa uma decisão absolutória [cf as alíneas c) e d) do nº 1 do art. 449º do Código de Processo Penal de 1987, que contemplam modalidades de recurso de revisão que se referem exclusivamente a sentenças ou acórdãos condenatórios]. Por conseguinte, a igualdade de armas e a contraditoriedade referem-se apenas à possibilidade de dirimir processualmente argumentos em condições de equilíbrio, no âmbito de um mesmo recurso. Mas não obrigam, outrossim, a que todos os recursos tenham o mesmo âmbito ou postulem, para o tribunal ad quem, os mesmos poderes cognitivos, abstraindo do seu autor (acusação ou defesa) ou da natureza de decisão impugnada (condenação ou absolvição). III Decisão
9. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na medida em que apenas permite ao tribunal de recurso, no caso de recurso interposto pelo assistente, apurar a existência de deficiência, obscuridade ou contradição ante as respostas aos quesitos, a insuficiência da matéria de facto provada e a existência de elementos de prova, constantes dos autos, que só por si impliquem resposta diferente aos quesitos ou erro notório na apreciação da prova, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida de acordo com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 3 de Fevereiro de 1999- Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa