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Processo nº 445/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A Questão
1 - O juiz de direito A. foi julgado no Tribunal da Relação de
Évora pela autoria de um crime de prisão ilegal, previsto e punido pelo artigo
417º, nº 1, do Código Penal. No mesmo processo e no mesmo julgamento foi apreciado o pedido cível de indemnização, em valor não inferior a 1.100.000$00, por danos morais, deduzido pelo assistente B., contra o qual a ordem de prisão originadora da acusação havia sido emitida e executada.
Por acórdão daquele tribunal, de 14 de Março de 1995, foi extinto por amnistia, nos termos dos artigos 1º, alínea o), da Lei nº 15/94, de
11 de Maio, em conjugação com o artigo 126º, nº 1, do Código Penal, o procedimento criminal relativo ao crime de prisão ilegal por negligência grave.
Contudo, nos termos dos artigos 483º e 496º, do Código Civil e demais disposições aplicáveis, o Tribunal da Relação condenou o arguido a pagar ao assistente uma indemnização por danos morais, no valor de 400.000$00, com juros à taxa legal, até total satisfação da dívida.
Inconformado com o assim decidido, levou o arguido recurso ao Supremo Tribunal de Justiça peticionando a absolvição e a consequente revogação do aresto condenatório.
Além do mais, na parte que aqui importa reter, concluiu a sua peça alegatória do modo que segue:
'73ª - Os Juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões salvas as excepções consignadas na lei (Const. da Rep. Portuguesa, artº 218, nº
2 e Estatuto dos Magistrados Judiciais.)
74ª - Os Magistrados Judiciais só podem ser condenados pelos danos causados quando actuem com dolo [Cód. Proc. Civil, artº 1083, nº 1, alínea b)];
75ª - Deverá ter-se em conta o estatuído no nº 3, do artº 5 do Estatuto dos Magistrados Judiciais onde se refere que a responsabilidade só pode ser directa nos crimes aí previstos;
76ª - Neste caso, a haver crime, que não há, só poderia ser responsabilizado o Estado Português e não directamente o arguido;
77ª - Nesta matéria, por erro de interpretação, foi violado o disposto no artº 218, nº 2, o artº 5, nº 3 do Estatuto dos Magistrados Judiciais e o artº 1083, nº 1 alínea b) do Cód. Proc. Civil;
78ª - Não devia pois o recorrente ter sido condenado a pagar a indemnização ao assistente.'
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2 - O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 29 de Fevereiro de 1996, negou provimento ao recurso e confirmou, integralmente, o aresto impugnado.
Para tanto, ateve-se, no essencial, à fundamentação que segue:
'O artigo 218º, nº 2, da C.R.P. estabelece que 'os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei' (sublinhado nosso).
Mas esse diploma fundamental também reza no seu artigo 271º, nº 1 que:
'Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções ou por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica'.
E o artigo 22º dispõe que 'o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus
órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem'.
Estas normas constitucionais prevalecem sobre quaisquer leis ordinárias, e estas estarão feridas de inconstitucionalidade ou de caducidade quando as contrariem.
Assim o entendeu, de resto, este Supremo Tribunal, no acórdão de
6/5/86, in BMJ nº 357º-392, quando confrontado com a questão de saber se continuava em vigor o Decreto-Lei nº 48051, de 21/11/67, na parte em que este diploma limitava (no seu artº 3º, nº 1) a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos e dos agentes do Estado e demais pessoas colectivas públicas, dando resposta negativa a esta questão 'porque - di-lo o artº 293º da CRP (hoje artº
290º, nº 2) - o direito anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados. Por outras palavras, o direito anterior à Constituição deixou de existir se não estava de acordo com ela - Heinrich Ewald Hörster, na Revista de Direito e de Estudos Sociais, XXIII, pg 73'.
Desenvolvendo raciocínio similar relativamente ao artº 1083 do Cód. Proc. Civil, logo se vê que não pode prevalecer sobre a lei constitucional qualquer segmento desse artigo que contrarie os princípios desta, acima expressos.
Aliás, o próprio artº 5º, nº 3, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei nº 21/85) é bem claro no seu ajustamento aos moldes constitucionais: 'Fora dos casos em que a falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada mediante acção de regresso do Estado contra o respectivo magistrado'.
Portanto, no caso de crime praticado por magistrado judicial, não pode questionar-se a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros por virtude da sua conduta.
Analisando na R.L.J., 123º-305, num raro caso de responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional, o Prof. Gomes Canotilho, na sua anotação ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7/3/89 (que aliás considera num leading case da jurisdictio portuguesa neste domínio), afirma:
'Sob pena de se perturbar a independência dos juízes, cumpre reconhecer que a admissibilidade de uma responsabilidade solidária - e é a esta que se refere o artº 22º da Constituição - tem de ser acompanhada de alguma prudência. Assim, salvo os casos de dolo ou culpa grave (este sublinhado é nosso), a 'culpa do juíz' tem de se integrar na ideia de 'funcionamento defeituoso do serviço da justiça'. Esta ideia justificará numa responsabilidade directa e exclusiva do Estado, mas não numa responsabilidade solidária do Estado e do juíz.'
Ora, estando verificada a comissão de um crime por negligência grave, não pode pôr-se em dúvida que o arguido se constituiu na obrigação de indemnizar o ofendido pelos danos que lhe causou, nos termos, designadamente, dos artºs 128º CP e 483º, 496, 512º, nº 1, 563º e 566º, nº 1 do Cod. Civil.'
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3 - O recorrente trouxe então, sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, os autos em recurso ao Tribunal Constitucional, em ordem à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 1083º do Código de Processo Civil, cuja aplicação foi recusada 'por invocada desconformidade com os preceitos constitucionais dos artigos 22º, 218º, nº 2 e 271º da Constituição'.
Nas alegações depois oferecidas elencou o seguinte quadro de conclusões:
'a) O ora recorrente, Juiz de Direito, foi considerado autor material de um crime de prisão ilegal p. p. pelo artº 417º do Cód. Penal na forma de negligência grave:
b) Foi condenado a pagar ao assistente uma indemnização por danos morais no valor de Esc.400.000$00;
c) A C.R.P. consagra nos artºs 22º e 271º o princípio da responsabilidade do Estado e dos seus agentes e funcionários;
d) Mas a lei constitucional consagra igualmente um regime especial para os magistrados judiciais no nº 2 do seu artº 218º ao qual está subjacente o princípio da responsabilidade dos juízes pelas suas decisões, com ressalva das excepções consignadas na lei;
e) Porque ambos são princípios constitucionais, o da responsabilidade do Estado e dos seus agentes e o da irresponsabilidade dos juízes, nenhum deles cede ou prevalece perante o outro, tendo cada um deles o seu próprio âmbito de aplicação;
f) O princípio constitucional da irresponsabilidade dos juízes foi transposto para o Estatuto dos Magistrados Judiciais através dos nºs 1 e 2 do artº 5º da Lei 21/85;
g) A irresponsabilidade dos juízes não está consagrada na Constituição de forma absoluta; admite excepções desde que previstas na lei e sejam necessárias e adequadas para proteger outros valores e princípios constitucionais;
h) O artº 1083º do Cód. Proc. Civil constitui o quadro material das excepções ao princípio da irresponsabilidade dos juízes;
i) A al. b) do nº 1 do artº 1083º do C.P.C. prevê que os magistrados judiciais possam ser responsabilizados pelos danos causados apenas em caso de dolo;
j) O artº 1083º do C.P.C. é aplicável ao caso concreto e não viola, antes se conforma com o princípio constitucional da irresponsabilidade dos juízes; e
l) O acórdão recorrido violou, assim, o princípio da irresponsabilidade dos juízes consagrado no nº 2 do artº 218º da C.R.P. e nºs 1 e 2 do artº 5º da Lei nº 21/85 (Estatuto dos Magistrados).'
Em contralegação, veio o senhor Procurador-Geral Adjunto suscitar a questão prévia do não conhecimento do recurso, por inverificação dos pressupostos de admissibilidade de que se acha dependente.
E, depois de discorrer sobre o atendimento da questão
proposta, rematou assim a respectiva fundamentação:
'1º O recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82 pressupõe que constitua ratio decidendi essencial da decisão recorrida a recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, de certa norma (ou interpretação normativa) do direito infra-constitucional, mesmo anterior à Constituição de 1976.
2º Inexiste um essencial pressuposto daquele tipo de recurso quando, na linha argumentativa constante da decisão recorrida, o decidido se funda essencialmente na invocação de um ulterior preceito legal que - dispondo sobre o tema da responsabilidade dos juízes já em consonância com os princípios da Lei Fundamental - naturalmente se sobrepõe e prevalece sobre a norma, sistematicamente inserida no Código de Processo Civil e vigente antes da Constituição da República Portuguesa de 1976, que regulamentava tal matéria.
3º Fundando-se o acórdão recorrido - de forma essencial e bastante para, só por si, fundamentar o sentido da decisão proferida - na invocação e interpretação da norma estatutária que dispõe, em conformidade com os preceitos e princípios constitucionais, sobre a responsabilidade civil conexa com a prática de infracções criminais pelos magistrados judiciais, constitui mero obiter dictum a referência pontual, no discurso argumentativo a uma eventual inconstitucionalidade de certo sentido da norma entretanto derrogada pelo disposto no artigo 5º, nº 3, da Lei nº 21/85.
4º Termos em que não deverá conhecer-se do presente recurso.
Respondendo à matéria da questão prévia, o recorrente pronunciou-se no sentido do seu indeferimento.
Foram corridos os vistos de lei, cabendo agora apreciar e decidir.
E decidir, desde logo, sobre a pertinência da questão preliminar suscitada pelo Ministério Público.
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II - A existência de pressupostos de admissibilidade do tipo de recurso interposto
1 - Em conformidade com o disposto no artigo 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28//82, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, sendo que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público quando a norma cuja aplicação tiver sido recusada constar de convenção internacional, de acto legislativo ou de decreto regulamentar [artigos 280º, nº 3, da Constituição e 72º, nº 3, da Lei nº 28//82, aditado pela Lei nº 85/89] e ainda nos casos das alíneas g), h) e i) do nº 1 do artigo 70º, salvo o disposto no nº 4 deste mesmo preceito (artigo 72, nº 3).
Como tem sido salientado pela jurisprudência deste Tribunal, as decisões de recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, as chamadas 'decisões de acolhimento ou decisões positivas de inconstitucionalidade' não têm, necessariamente, de manifestar-se num discurso de desaplicação expressa, bastando que tal recusa se contenha implicitamente na fundamentação da decisão recorrida, em termos de se haver de concluir que o conteúdo estatuidor de uma dada norma não foi acolhido pelo julgador por força do seu desalinhamento constitucional.
Mas, e isso é exigido pelo quadro de pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de constitucionalidade, a norma assim explícita ou implicitamente rejeitada, há-de ter sido convocada pelo tribunal recorrido como norma com 'interesse para a causa', como norma susceptível de integrar a respectiva fundamentação normativa, traduzindo-se o juízo sobre a sua ilegitimidade constitucional na causa excluidora da sua aplicação (cfr. por todos, os acórdãos nºs 62/84, 138/85 e 169//92, de, respectivamente, 29 de Dezembro de 1984, 28 de Janeiro de 1986 e 18 de Setembro de 1992).
Sustenta o recorrente que a decisão impugnada recusou a aplicação da norma do artigo 1083º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, relativa à responsabilidade dos magistrados judiciais pelos danos causados, com fundamento em inconstitucionalidade, sendo que tal norma, era não só decisiva para o julgamento da causa, como respeita integralmente o quadro constitucional vigente.
De seu lado, no entendimento do senhor Procurador-Geral Adjunto - e daí a suscitação da questão prévia de não conhecimento do recurso - constitui mero 'obiter dictum, no discurso argumentativo daquela decisão, a referência pontual a uma eventual inconstitucionalidade de certo sentido da referida norma entretanto já 'derrogada' pelo disposto no artigo 5º, nº 3, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, razão pela qual não ocorreu quanto a ela qualquer juízo desaplicativo potenciador do recurso de constitucionalidade'.
Para que uma dada norma possa ser convocada pelo tribunal como norma relevante para o julgamento da causa importa, desde logo, que a mesma integre a ordem jurídica e nela se encontre a vigorar. Se uma determinada norma já cessou a sua vigência (v.g. por entretanto haver sido revogada) e deixou de, como tal, subsistir no ordenamento, é manifesta a ineficácia da sua aplicação enquanto suporte das decisões judiciais.
E assim sendo, como necessária decorrência deste princípio apresenta-se como tema basilar, da qual depende o sucesso ou insucesso da questão prévia em apreço, definir o quadro normativo que rege a matéria da responsabilização dos magistrados judiciais pelas suas decisões. Importa em suma, averiguar se o segmento normativo que vem questionado foi ou não objecto, com fundamento em inconstitucionalidade, de um juízo de rejeição aplicativa.
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2 - No domínio da Constituição de 1933, dispunha-se no artigo
120º que 'os juízes são irresponsáveis nos seus julgamentos, ressalvadas as excepções que a lei configurar'. E, o Estatuto Judiciário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44278, de 14 de Abril de 1962, depois de no artigo 111º prescrever no sentido de a magistratura judicial ser 'independente irresponsável e inamovível', definia a irresponsabilidade dos juízes como constituindo em não responderem 'pelos seus julgamentos, sem prejuízo das excepções que a lei consignar e das sanções que, por abusos ou irregularidades no exercício da função, lhe possam caber à face das leis civis, criminais e disciplinares'.
Entre os preceitos que contemplavam situações excepcionais de responsabilidade, avultava o artigo 1083º do Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de Dezembro de 1961, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 47690, de 11 de Maio de 1967, cujo texto integral dizia assim:
Artigo 1083º
(Casos em que os magistrados são responsáveis)
1. Os magistrados, quer judiciais, quer do Ministério Público, são responsáveis pelos danos causados:
a) Quando tenham sido condenados por crime de peita, suborno, concussão ou prevaricação;
b) Nos casos de dolo;
c) Quando a lei imponha expressamente essa responsabilidade;
d) Quando deneguem justiça:
2. Se a denegação de justiça reunir os elementos necessários para constituir crime, observar-se-á o disposto no artigo 1093º.
Este dispositivo ainda hoje se mantém naquele Código não tendo sido abrangido pelas profundas alterações a ele trazidas pelo Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro, já que a respectiva matéria - acção de indemnização contra magistrados - não integrava o objecto da respectiva autorização legislativa (Lei nº 33/95, de 18 de Agosto).
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3 - A Constituição de 1976 desde a sua versão originária até à redacção em vigor (artigos 221º, nº 2 e 218º, nº 2, respectivamente) como componente necessária do princípio da independência dos tribunais (e conaturalmente dos juízes) sempre garantiu o princípio da irresponsabilidade, consagrando expressamente que 'os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo as excepções contidas na lei'.
E, quando em obediência ao disposto no artigo 301º da Constituição, foi publicada a Lei nº 85/77, de 13 de Dezembro (Estatuto dos Magistrados Judiciais), nela se incluiu a regra tradutora daquele princípio constitucional, dispondo-se no artigo 5º do modo seguinte:
Artigo 5º
(Irresponsabilidade)
1 - Os juízes são irresponsáveis pelos seus julgamentos e decisões.
2 - Só nos casos especialmente previstos na lei podem os juízes ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar.
A Constituição, com efeito, não garante a irresponsabilidade dos juízes com carácter absoluto, remetendo para a lei a definição daquelas situações excepcionais em que o princípio possa ser aberto a formas de responsabilização.
No entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993,
'Trata-se de uma garantia de legalidade, de reserva de lei, no que respeita às excepções constitucionalmente autorizadas, aos princípios da inamovibilidade e da irresponsabilidade. Mas a descricionariedade legislativa na definição dessas excepções está materialmente limitada desde logo pelo próprio princípio da independência dos tribunais (...), devendo todas as excepções ser justificadas pela sua necessidade para salvaguardar outros valores constitucionais iguais ou superiores, cabendo aqui invocar as regras constitucionais que regem as restrições aos direitos, liberdades e garantias'.
Ora, aquando da apresentação da Proposta de Lei nº 76/III
(Estatuto dos Magistrados Judiciais) - cfr. Diário da Assembleia da República, II Série, nº 138, de 20 de Junho de 1984, pp. 3324 e 3325) - que, em cumprimento do artigo 240º da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, visava proceder
à revisão da legislação relativa ao estatuto dos juízes dos tribunais judiciais, na respectiva 'Exposição de motivos', e no que toca à matéria da responsabilidade dos juízes, escreveu-se assim:
'5 - Ao definir-se o regime de responsabilidade dos juízes reproduzem-se basicamente os princípios que já hoje seria lícito retirar do sistema jurídico-constitucional e introduz-se uma regra suplementar, no sentido de limitar a efectivação da responsabilidade civil de magistrados à hipótese de acção de regresso por parte do Estado.'
E, na esteira deste propósito, concedeu-se ao artigo 5º, correspondente ao preceito como o mesmo número da Lei nº 85/87, a seguinte redacção:
Artigo 5º
(Irresponsabilidade)
1 - Os magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões.
2 - Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar.
3 - Fora dos casos em que a falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada mediante acção de regresso do Estado contra o magistrado que tenha procedido com dolo.
Todavia, por decorrência dos debates parlamentares e das propostas de alteração entretanto apresentadas (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série, nºs 32, 33 e 100, respectivamente, de 21 e 22 de Dezembro de
1984, e 3 de Julho de 1985, pp. 1236 a 1269, 1280 a 1287 e 3709 e 3710, e II Série, nºs 33 e 37, de, respectivamente, 20 de Dezembro de 1984 e 9 de Janeiro de 1985, pp. 624 e ss., e 775 e s.) a redacção que veio a ser fixada para o artigo 5º da Lei nº 21/85, ainda hoje em vigor, reza assim:
Artigo 5º
(Irresponsabilidade)
1 - Os magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões.
2 - Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar.
3 - Fora dos casos em que a falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada mediante acção de regresso do Estado contra o respectivo magistrado.
Ora, por força da alteração estatutária assim introduzida pela Assembleia da República na norma do artigo 5º, nº 3, parece manifesto que a efectivação da responsabilidade civil decorrente do exercício funcional dos magistrados judiciais apenas pode ser concretizada através de acção de regresso do Estado contra o respectivo magistrado, naquelas situações em que a falta não constitua crime.
Ao contrário da formulação constante da proposta de lei -
'contra o magistrado que tenha procedido com dolo' - a redacção que veio a prevalecer (movendo-se no quadro autorizador contido no artigo 218º, nº 2, da Constituição), instituiu um sistema segundo o qual, nos casos em que a falta constitua crime não só se origina responsabilidade civil, como a respectiva acção pode ser directamente proposta contra o magistrado faltoso, e não já, como nos outros casos - em que a falta não constitua crime - mediante acção proposta contra o Estado ao qual assiste direito de regresso contra o respectivo magistrado.
E assim sendo, há-de concluir-se que a norma do artigo 5º, nº
3, da Lei nº 21/85, derroga tacitamente o artigo 1083º do Código de Processo Civil, quando interpretado, talqualmente vem sustentado pelo recorrente, em termos de os magistrados judiciais apenas poderem ser responsabilizados pelos danos causados em caso de dolo.
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4 - À luz das considerações antecedentes e tendo em atenção à retórica argumentativa do acórdão recorrido, independentemente das formulações ali utilizadas a propósito do artigo 1083º do Código de Processo Civil, tem-se por seguro que esta norma - no segmento sob sindicância - não era convocável nem aplicável como fundamento normativo da respectiva decisão, pois que não subsiste já no ordenamento jurídico por dele haver sido expurgada através da Lei nº
21/85.
Ora, recordando-se de novo que, no plano dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, se perfila como requisito indispensável a susceptibilidade de a norma questionada se dever apresentar como uma norma com interesse para a decisão da causa, isto é, como uma norma capaz de integrar o fundamento normativo da decisão recorrida, haverá de concluir-se que a norma relativamente à qual o recorrente afirma ter-se verificado recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade, não dispõe dessa virtualidade.
Com efeito, ela já não subsistia no ordenamento, por ter sido derrogada pela norma estatutária do artigo 5º, nº 3, do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
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III - A decisão
Nestes termos, concedendo-se deferimento à questão prévia, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6
(seis) Ucs.
Lisboa, 13 de Maio de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida