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Proc. nº 490/97
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M. G. interpôs, junto do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, recurso contencioso do despacho de 2 de Maio de 1994 da Direcção de Serviços da Caixa Geral de Aposentações que confirmou o acto dos Serviços que fez aplicação do artigo 18º da Portaria nº 79-A/94, de 4 de Fevereiro, sustentando a inconstitucionalidade orgânica desta disposição.
Por sentença de 26 de Setembro de 1996, foi negado provimento ao recurso, mantendo-se, consequentemente, o acto recorrido.
2. M. G. interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença de 26 de Setembro de 1996, sustentando a inconstitucionalidade orgânica das normas contidas nos artigos 45º, nº 4, do Decreto-Lei nº 353-A/89, e 18º da Portaria nº 79-A/94.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 11 de Junho de
1997, concedeu provimento ao recurso, recusando, para tanto, a aplicação da norma contida no artigo 18º da Portaria nº 74-A/79, de 4 de Fevereiro em virtude de a considerar organicamente inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº
1, alínea v), da Constituição.
3. O Ministério Público e a Caixa Geral de Aposentações interpuseram recursos de constitucionalidade do acórdão de 11 de Junho de 1997, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 18º da Portaria nº
79-A/94, de 4 de Fevereiro.
Junto do Tribunal Constitucional a Caixa Geral de Aposentações apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1. A norma da Portaria questionada só será inconstitucional se colocar em causa
as bases do regime e âmbito da função pública.
2. Apenas princípios fundamentais se devem considerar 'bases do regime e âmbito da função pública'.
3. Na falta de uma lei de bases da função pública, aqueles princípios devem buscar-se na legislação avulsa, na qual avultam a Lei de Bases da Segurança Social e o Estatuto da Aposentação.
4. A existência e a definição do âmbito e conteúdo de um eventual 'direito à actualização' das pensões deve buscar-se através de atenta análise da evolução do regime de protecção social gerido pela Caixa Geral de Aposentações.
5. Desta análise resulta a inexistência de qualquer princípio em matéria de actualização de pensões, designadamente um direito a uma actualização anual e uma relação de proporcionalidade ou equiparação entre aquela e a elevação geral dos vencimentos do funcionalismo.
6. A norma da Portaria, aparentemente confinada à questão da actualização, é o resultado da alteração do regime de cálculo das pensões.
7. Os princípios fundamentais em matéria de aposentação que poderiam ser afectados pela norma em causa são os do direito à pensão e o da natureza substitutiva desta face aos rendimentos do trabalho.
8. Estes princípios apenas seriam, contudo, afectados na medida em que o equilíbrio entre o regime do cálculo das pensões e o da actualização tivesse sido afectado.
9. Não foi isto que sucedeu, uma vez que estes princípios foram respeitados pela evolução do regime de cálculo das pensões e das actualizações das mesmas, embora a defesa do equilíbrio tenha passado da forma de cálculo das pensões para a forma de actualização.
10. As bases constituídas pelo direito à pensão e pela natureza substitutiva desta face aos rendimentos do trabalho nunca viram a sua vigência interrompida, uma vez que o interregno que existiu nas normas que estabelecem a limitação das actualizações entre 1979 e 1983 se destinou a impedir que aqueles princípios pudessem ser postos em causa pela inflação galopante e pelo mais que proporcional aumento das remunerações do activo.
11. O nº 18 da Portaria no 79-A/94 não é organicamente inconstitucional porque, ao limitar-se a tratar de matéria respeitante à actualização das pensões, não dispôs sobre as bases do regime e âmbito da função pública.
12. De todo o modo, sempre seria duvidoso que a Portaria em causa respeite às bases do regime e âmbito da função pública e não às da segurança social, uma vez que a actualização das pensões abonadas pela CGA é matéria que não abrange apenas funcionários públicos. Na verdade, o regime gerido pela CGA constitui um regime especial de segurança social.
13. A matéria da actualização das pensões não tem, nem alguma vez teve, dignidade suficiente para poder ser considerada como uma base da segurança social. Não sendo o regime especial de segurança social dos funcionários públicos mais do que um dos aspectos do 'regime e âmbito da função pública', nunca se poderia considerar o regime específico da actualização das pensões como uma das bases do regime e âmbito da função pública.
14. O nosso regime da função pública não conhece um princípio que exclua inteiramente o cálculo das pensões a partir das remunerações líquidas de quota para a CGA, antes o 'princípio' que de tal regime se pode retirar é o da proibição da atribuição de pensões de aposentação superiores às remunerações efectivamente auferidas no activo.
15. A Portaria limita-se a reiterar o disposto no DL no 40-A/85, nada inovando no ordenamento jurídico.
16. Se a Portaria fosse inconstitucional, o fundamento da sua inconstitucionalidade não deixaria de se aplicar do mesmo modo, ou ainda com mais força, aos diplomas que, antes dela, regularam a questão sem a mesma autorização da AR, com a agravante de que o fizeram, alguns deles, em época em que a competência para legislar sobre o regime da função pública (e não apenas sobre as suas bases !) cabia exclusivamente à AR, não podendo esta autorizar o Governo a fazê-lo.
17. Ora, se esses diplomas, que foram publicados entre a entrada em vigor da actual Constituição e a actualidade, forem inconstitucionais, a Portaria contestada já o não o será por não inovar nada na matéria em causa, sendo em tudo conforme com o regime inicial do Estatuto da Aposentação, entretanto necessariamente repristinado.
18. O regime resultante da não aplicação da Portaria, na interpretação que dele fez o douto acórdão do STA, seria inconstitucional, por violador do princípio da igualdade.
19. No regime resultante das Portarias e dos Decretos-Leis que ainda vigoram sobre a matéria, o subscritor ganha, na aposentação, mais do que se tivesse continuado a trabalhar e do que o seu actual 'substituto' nessas funções durante algum tempo, até que a não actualização das pensões e a actualização das remunerações reponha a igualdade. A partir dessa data actualizar-se-ão de igual modo.
20. Assim sendo, não ficam aqueles em nada prejudicados face aos trabalhadores do activo, bem pelo contrário.
21. Não faz sentido que a CGA pague aos pensionistas o montante da sua quota, uma vez que, estaria a, por um lado, conferir relevância às quotizações por ele descontadas para aposentação e sobrevivência ao longo da sua vida contributiva
(e o pagamento das pensões baseia-se nesses descontos) e, pelo outro, a reembolsá-lo dessas mesmas importâncias.
22. Se a CGA tivesse de devolver as quotas cobradas durante a vida activa dos subscritores logo que eles se aposentassem, não podendo com elas pagar-lhes as pensões, não se entenderia para que efeito a CGA as cobraria.
23. Em suma, o nosso regime da função Pública não conhece um princípio que exclua inteiramente a possibillidade de o legislador estabelecer um instituto com a natureza e as características do ora em apreço.
24. Nestas condições, haverá de concluir-se, pois, que um diploma legal, como a Portaria, que nem sequer veio modificar o regime jurídico desse instituto, não pondo, consequentemente, em causa a sua peculiaridade, não implica a substituição, modificação ou derrogação de qualquer princípio ou base geral do regime da função pública.
25. Assim, a emissão desse diploma não caía na reserva parlamentar do artigo
168º, nº 1, alínea u).
26. Por consequência, mesmo sem autorização legislativa (como eventualmente acontecia no caso), o Governo encontrava-se habilitado a aprová-lo.
Por seu turno, a recorrida M. G. contra-alegou, sustentando a inconstitucionalidade da norma desaplicada.
O Ministério Público também apresentou alegações, tendo tirado as seguintes conclusões:
1º - Respeita às bases gerais da segurança social da função pública o estabelecimento do princípio da actualização das pensões, constante do artigo
59º do Estatuto da Aposentação, pelo que só diplomas legais, credenciados pela Assembleia da República, poderão afrontar esse princípio fundamental ou estruturante, vigente em tal matéria.
2º - A norma constante do nº 18 da Portaria nº 79-A/94, de 4 de Fevereiro, ao estabelecer que, na actualização das pensões no ano de 1994, será deduzida a percentagem correspondente aos descontos legais para a Caixa Geral de Aposentações, com vista à implementação gradual da regra há muito estabelecida pelo nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 106-A/83, de 18 de Fevereiro, com vista a obstar a que os aposentados possam beneficiar continuadamente de uma situação mais favorável de que aquela em que se encontra o pessoal homólogo em exercício de funções, não tem natureza inovatória, pelo que não padece de inconstitucionalidade orgânica.
3º - A mesma norma, ao conduzir - para implementação da referida regra de que as pensões não devem exceder os vencimentos correspondentes pagos ao pessoal do activo - a um ocasional e concreto congelamento do aumento genericamente atribuído aos aposentados em certo ano, não afronta nem colide com o referido princípio da actualização de pensões.
4º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada.
A recorrida, notificada das alegações do Ministério Público, respondeu, propugnando de novo a inconstitucionalidade da norma objecto do presente recurso.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. A norma cuja aplicação o Supremo Tribunal Administrativo recusou aplicar tem a seguinte redacção:
18º Na actualização das pensões calculadas com base nas remunerações em vigor a partir de 1 de Janeiro de 1992 até à data da entrada em vigor da presente portaria será deduzida a percentagem correspondente aos descontos legais para a Caixa Geral de Aposentações.
Por força da aplicação de tal norma pelos serviços da Caixa Geral de Aposentações, a pensão ilíquida recebida pela ora recorrida não beneficiou de qualquer aumento no ano de 1994.
O Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão recorrido, considerou que tal norma regulamentar, por integrar as bases gerais do regime da segurança social, é inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea v), da Constituição.
6. O Tribunal Constitucional tem entendido que a reserva estabelecida pela alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição abrange unicamente o estatuto geral da função pública e o delineamento geral do seu
âmbito, mas já não a sua particularização ou concretização. Tal reserva não se reporta, nessa medida, a um tratamento desenvolvido da matéria em causa, mas tão-só à definição dos seus princípios fundamentais (cf. Acórdão nº 142/85, D.R., II Série, de 7 de Setembro de 1985; e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 676).
No que respeita ao regime de pensões dos funcionários públicos, constitui uma das suas bases o princípio da actualização das pensões. Com efeito, pode afirmar-se que constitui uma das linhas gerais que inspira a regulamentação segundo o qual as pensões dos funcionários públicos aposentados hão-de beneficiar de actualizações periódicas que acompanharão a evolução do nível de vida.
Assim, a apreciação da questão de constitucionalidade normativa que constitui objecto do presente recurso implica que se averigue se a norma posta em crise pela decisão recorrida afecta tal princípio.
O artigo 18º da Portaria nº 79-A/94, de 4 de Fevereiro, estabelece que na actualização de determinadas pensões calculadas com base nas remunerações em vigor a partir de certa data deve ser deduzida a percentagem correspondente aos descontos legais para a Caixa Geral de Aposentações. Tal medida insere-se numa orientação legislativa, patente em diplomas que em anos anteriores procederam à actualização das pensões, que visou evitar que os funcionários públicos aposentados viessem a beneficiar de uma situação patrimonial mais vantajosa do que aquela em que se encontravam os funcionários no activo com a mesma categoria (a recorrida não demonstra que tal finalidade não foi alcançada pela norma em apreciação, pois apenas afirma que o rendimento ilíquido dos funcionários no activo compreende os descontos realizados).
Trata-se de uma medida, na prática, limitadora, mas que não nega o princípio fundamental da actualização das pensões. É apenas a previsão de um critério de actualização, que tem em conta a equiparação entre os pensionistas e os funcionários no activo. Não é, claramente, uma sua violação ou derrogação.
É verdade que, por força da aplicação desta norma no presente processo, a ora recorrida não beneficiou de qualquer aumento no ano de 1994. Porém, tal circunstância afigura-se como uma consequência da aplicação dos critérios adoptados para a actualização das pensões nesse ano, não resultando da aplicação de uma norma que consagra directamente e de forma perene a não actualização de determinadas categorias de pensões. Foi um efeito colateral da aplicação do regime jurídico que em 1994 concretizou o princípio fundamental da actualização das pensões e não a adopção de uma solução legal derrogatória desse princípio.
Dever-se-á, assim, concluir que a norma desaplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo não regula matéria integrada nas bases do regime e
âmbito da função pública, assim como não colide com o princípio da proporcionalidade.
7. A recorrida sustenta que a norma em apreciação é ainda inconstitucional por violação do disposto no artigo 112º, nº 8, da Constituição.
Tal fundamento não foi invocado pela decisão recorrida, contudo, o Tribunal Constitucional não está vinculado à apreciação dos fundamentos invocados pelo tribunal a quo. Ora, no preâmbulo da Portaria em questão, são referidos expressamente os diplomas ao abrigo dos quais a mesma é emitida. Não se verifica, pois, a inconstitucionalidade invocada pela recorrida.
8. Por último, a recorrida invoca ainda a violação, pela norma indicada, do princípio da igualdade, afirmando que para o período em questão os beneficiários do regime geral foram aumentados em valor não inferior a 1.400$00.
O princípio da igualdade, tal como o Tribunal Constitucional o tem entendido, não impede que, em certos casos, situações semelhantes sob um certo ponto de vista venham a merecer um tratamento juridicamente diferenciado. A igualdade só proíbe diferenciações destituídas de fundamentação racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), pp. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp.
383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente].
Como se referiu, a norma impugnada prosseguiu um objectivo específico e racional e até a própria obtenção da igualdade de remuneração entre funcionários pensionistas e no activo, sendo certo que a sua aplicação no caso dos autos levou ao não aumento ocasional da pensão da recorrida em 1994. Porém, tal situação, porque fundamentada, e dado o seu carácter meramente instrumental de uma igualdade real, não suscitou uma situação de desigualdade constitucionalmente inadmissível. Não se verifica, portanto, qualquer violação do princípio da igualdade.
9. Conclui-se, assim, que a norma contida no artigo 18º da Portaria nº 79-A/94, de 4 de Fevereiro, não é inconstitucional.
III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 18º da Portaria nº 79-A/94, de 4 de Fevereiro, concedendo provimento aos recursos e revogando, consequentemente, a decisão recorrida de acordo com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 2 de Dezembro de 1998 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa