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Proc. n.º 429/97
1 ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
Relatório:
1. A...–Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário,SA, sob invocação do disposto no Decreto-Lei n.º 392/82, de 18 de Setembro, requereu a avaliação fiscal extraordinária da fracção autónoma, correspondente à loja do n.º... do prédio sito na Estrada de Benfica, Lisboa, da qual é arrendatária L...,LDA. Por deliberação de 30 de Março de 1995, a Comissão de Avaliação, constituída nos termos da alínea a) do art.º 5º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, fixou em 1.440.000$00 a renda anual da referida fracção autónoma.
2. Inconformada, veio L...,LDA., por meio de requerimento interposto na 2ª Repartição de Finanças do 12º Bairro Fiscal de Lisboa, arguir a nulidade do auto de avaliação fiscal efectuado mas, por despacho de 11 de Abril de 1995 foi decidido o respectivo indeferimento, com fundamento em que 'a avaliação extraordinária pedida pelo senhorio obedeceu às normas legais'. Ainda inconformada, interpôs a L...,LDA. recurso para o Tribunal da Comarca de Lisboa, pedindo
'que a avaliação fiscal seja considerada nula e de nenhum efeito com todas as consequências legais; ou então subsidiariamente seja efectuada nova avaliação; ou alterada a decisão da comissão de avaliação, sendo a renda fixada em Esc:
144.000$00 anuais, como é de inteira Justiça'.
3. Por sentença de 17 de Abril de 1997, o 4º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa julgou-se incompetente para apreciar os termos do recurso. No essencial, ateve-se à seguinte fundamentação:
'Deste modo, o Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, é formal e organicamente inconstitucional, pois deriva de órgão de soberania que formalmente não tem competência para legislar sobre o acesso aos tribunais de recurso e que versa sobre matéria da reserva relativa da Assembleia da República, a qual não autorizou o Governo a legislar sobre ela uma segunda vez. Nos termos do art. 207º da C.R.P., os tribunais não podem aplicar normas inconstitucionais. Impõe-se, consequentemente, o recurso às disposições comuns do processo civil sobre a admissibilidade dos recursos ordinários. No caso dos autos, a recorrente atribui à causa o valor de Esc. 500.001$00 (fls.
59). Nos termos do art. 678º nº 1 do Código de Processo Civil, a decisão final a proferir nestes autos admite, pois, recurso ordinário. Conforme acima se referiu, os Tribunais de Pequena Instância Cível apenas têm competência para preparar e julgar causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssima e a causas cíveis não previstas no Código de Processo Civil aos quais corresponda processo especial e cuja decisão não seja susceptível de recurso ordinário.'
4. Dessa parte da decisão foi interposto recurso pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional. Nas suas alegações junto deste Tribunal, o Ministério Público concluiu do seguinte modo:
'1º A norma constante do § único do artigo 15º do Decreto nº 37021, na redacção emergente do Decreto Regulamentar nº 1/86, não versando sobre a matéria relativa
à ‘competência dos tribunais’ nem à que se reporta aos ‘direitos, liberdades e garantias’, não viola o disposto no artigo 168º da Constituição da República Portuguesa acerca da delimitação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
2º Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.'
5. Completados os vistos legais após mudança de relator devida a alteração na composição do Tribunal, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos:
6. No presente processo, o 4º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa julgou-se incompetente para apreciar os termos do recurso da decisão da comissão de avaliação que actualizou a renda do locado, por entender que, devido
à inconstitucionalidade da norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948 (na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro), a decisão final a proferir nestes autos admitiria recurso ordinário, enquanto os Tribunais de Pequena Instância Cível apenas têm competência para preparar e julgar causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssima e causas cíveis não previstas no Código de Processo Civil aos quais corresponda processo especial e cuja decisão não seja susceptível de recurso ordinário. A recusa de aplicação da norma em crise, com fundamento na sua inconstitucionalidade, constituiu, pois, o fundamento para o tribunal recorrido se declarar incompetente: a norma foi desaplicada de forma liminar, logo no momento de determinação da competência para conhecer do recurso. Encontrará esta recusa de aplicação – e, portanto, a decisão pela incompetência do tribunal - fundamento numa desconformidade da norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021 com a Constituição?
7. Tratemos, em primeiro lugar, a eventual inconstitucionalidade formal e orgânica, que constituiu o fundamento para o tribunal a quo recusar a aplicação da norma do do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de
1948, na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro. O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado já pela não verificação de inconstitucionalidade formal e orgânica no preceito em análise. Lê-se, assim, no Acórdão n.º 250/95 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Julho de 1995):
'[...]
16 - Verifica-se, portanto, que o Tribunal Constitucional tem entendido que se inscreve na reserva parlamentar pelo menos a questão da competência em razão da matéria, a qual se prende com a distribuição de matérias pelo diversos tribunais dispostos horizontalmente (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 94, e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p.
207). Por outro lado, as normas que regem directamente a competência em razão da hierarquia ou funcional – que consiste na repartição de funções entre ordem da mesma espécie ou categoria e dentro da mesma causa (cf. Manuel de Andrade, ob. cit., p. 98, e Antunes Varela, ob. cit., p. 212) – limitam-se a determinar que cabe aos tribunais superiores «julgar recursos» [cf. artigos 71º, alínea a) e
72º, alínea a9, do Código de Processo Civil, e 28º, n.º 3, alínea a), e 41º, n.º
1, alínea a), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais]. A subsequente determinação dos casos em que tem lugar recurso depende de normas que, em primeira linha, disciplinam requisitos ou pressupostos de admissibilidade de recursos e não de normas de competência propriamente ditas, embora delas resulte, indirectamente, a delimitação dos casos de intervenção dos tribunais superiores. Ora, essas normas definidoras de condições de admissibilidade de recursos são normas de indiscutível carácter processual e só num plano mediato se repercutem na delimitação da competência dos tribunais superiores – escapando, portanto, ao âmbito da reserva parlamentar.
17 – Este é, aliás, o entendimento mais recentemente expresso pelo Tribunal Constitucional. A propósito da apreciação da eventual inconstitucionalidade orgânica do artigo 46º, n.º 1, do Código das Expropriações, que proíbe o recurso das decisões da relação para o Supremo Tribunal de Justiça, e sobre a questão de saber se o Governo podia, através do decreto-lei autorizado, excluir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, diz-se no Acórdão n.º 330/91 (Diário da República, 2ª série, de 15 de Novembro de 1991) que «não estando a norma em apreciação a regular específica e autonomamente a matéria de competência do Supremo Tribunal de Justiça, mas disciplinando apenas os requisitos ou pressupostos de admissibilidade de recursos, num processo cível especial, matéria de simples carácter processual, o Governo podia criar a norma impugnada». Utilizando a mesma fundamentação, pode agora concluir-se que a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º37 021, na redacção do Decreto Regulamentar n.º
1/86, não versa sobre matéria relativa à «competência dos tribunais». Essa norma reporta-se a matéria de processo civil, que não se encontra reservada à Assembleia da República. Assim, tal norma não viola o disposto na alínea q) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição.' O mesmo entendimento foi, mais recentemente, confirmado por este Tribunal nos Acórdãos n.ºs 124/98 e 383/98, o primeiro dos quais publicado no Diário da República, II série, de 30 de Abril de 1998. Reitera-se no presente processo esse entendimento, e conclui-se, pelo exposto, que não se verifica qualquer inconstitucionalidade formal ou orgânica.
8. Todavia, cabe ao Tribunal Constitucional apurar se se verificam outros fundamentos de inconstitucionalidade da norma em causa. Designadamente, há que averiguar se se verifica qualquer inconstitucionalidade material, resultante, em particular, da violação do princípio constitucional da igualdade, ao impedir-se o recurso quanto à questão de direito da admissibilidade ou inadmissibilidade da avaliação fiscal extraordinária. Há, pois, que apurar se a norma em causa conduz a uma situação de tratamento processual injustificadamente diferente daquele reservado a interesses e questões idênticas às discutidas no processo de avaliação fiscal extraordinária que originou o presente recurso. Na verdade, o Tribunal decidiu no citado Acórdão n.º 124/98
«julgar inconstitucional a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, norma aditada pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, mas apenas na parte em que veda o acesso aos tribunais superiores em via de recurso, em processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, para discussão da questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária requerida, por violação do artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa». Escreveu-se neste Acórdão n.º 124/98, para fundamentar tal juízo da inconstitucionalidade:
'Ora, no caso sub judicio – e diferentemente do que ocorreu no caso sobre o qual foi tirado o citado acórdão n.º 270/95 – verificam-se duas circunstâncias especialmente atendíveis:
- por um lado, está suscitada uma questão de natureza jurídica que excede a mera reapreciação de uma decisão resultante de um juízo de discricionariedade técnica da comissão de avaliação sobre o valor de mercado da renda para certa fracção destinada ao exercício de profissão liberal;
- por outro lado, o valor da anuidade da renda fixada (é este o valor normal a que se atende nas acções de despejo – cfr. art. 307º, n.º 1, do Código de Processo Civil) excede a alçada dos Tribunais da Relação. Por força da conjugação destas duas circunstâncias, entende-se que viola o princípio da igualdade a solução constante da norma desaplicada, por força da qual não poderá haver recurso, em caso algum, de decisão proferida pela primeira instância, independentemente do valor do processo, quando esteja em causa a própria legalidade da realização da avaliação. De facto, estando em causa uma pura questão de direito (litigiosa) entre as partes, poderia a mesma ser objecto de uma acção de simples apreciação (art. 4º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil), em que o acesso aos sucessivos graus de jurisdição dependia exclusivamente do valor da causa (art. 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Ora, in casu, tendo sido suscitada a questão de saber se é legal a própria avaliação extraordinária – num recurso em acção cujo valor ultrapassa a alçada da Relação – a circunstância de estar sempre vedado o acesso aos tribunais da Relação e, eventualmente, ao Supremo Tribunal de Justiça constitui uma discriminação infundada das partes do recurso. Como se escreveu no acórdão n.º 68/85 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional,
5º vol., págs. 541 e segs.) e se se repetiu no acórdão n.º 359/86 (in Acórdãos,
8º vol., págs. 605 e seguintes):
«[...] se se concebe que nem todas as decisões tenham de admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ‘o que a lei já não poderá fazer é admitir o recurso em toda uma categoria de casos e depois excluí-lo apenas em relação a um sector dessa categoria, sem que nenhuma justificação objectiva se verifique para tal discriminação’.» Há, assim, que concluir que a mera utilização de um certo processo especial – pensado para apreciar apenas o modo de aplicação dos critérios legais ou o juízo de discricionariedade técnica atinente à actualização de rendas prevista na lei
– não constitui justificação objectiva para a retirada a qualquer das partes do acesso aos tribunais de 2ª instância para a apreciação de questão de saber se, in casu, podia haver avaliação extraordinária.' Estes fundamentos foram repetidos, mais recentemente, no citado Acórdão n.º
383/98 (ainda inédito). E, no presente processo, tal como no decidido por este último Acórdão, esses fundamentos são pertinentemente aplicáveis:
· nele foi, efectivamente, suscitada pela requerida uma pura questão de direito, relativa à legalidade da avaliação extraordinária, não se tendo tomado conhecimento desta questão por se entender que inexistia recurso;
· sendo certo que o valor do processo permitiria, em termos normais (por exemplo, numa acção de simples apreciação em que o acesso aos sucessivos graus de jurisdição dependesse exclusivamente do valor da causa), recurso, pelo menos, até ao Tribunal da Relação. Pelo que se pode concluir, como nos citados Acórdãos n.ºs 124/98 e 383/98, pela existência de uma violação do princípio da igualdade, enquanto a norma em apreço não permite o recurso para discussão de uma questão jurídica, em processo cujo valor é superior ao da alçada do tribunal recorrido.
9. É certo que este Tribunal, no recente Acórdão n.º 638/98 (ainda inédito) da
2ª Secção, decidiu que a diferenciação resultante da norma introduzida pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro (como § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021) não se mostra arbitrária e desprovida de qualquer fundamento material bastante, pois
'é a própria natureza especial do processo em causa que justifica o estabelecimento de uma regra igualmente especial em matéria de recursos.' Concluiu, assim, este Acórdão que a referida norma não viola o princípio da igualdade, não se pronunciando pela sua inconstitucionalidade. Todavia, como se afirma na declaração de voto aposta ao citado Acórdão, ainda que se concedesse que, vendo melhor as coisas, seja questionável a possibilidade de, em hipóteses como a dos autos, lançar mão, em alternativa, de uma acção de simples apreciação, só cabendo no caso o processo especial do Decreto-Lei n.º
37021 (na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86), sempre restaria que, então, seria este processo que ficaria aberto à discussão e decisão de uma
'comum' questão de direito – ou seja, de uma questão não atinente ao mérito da avaliação da renda (para a qual aquele processo foi seguramente pensado e configurado, pelo menos em primeira linha), mas à própria admissibilidade legal da avaliação. E, perante a identidade de natureza (puramente jurídica) da questão controvertida - relativamente ao objecto de outros processos, com valor idêntico ao do caso dos autos e que admitem reapreciação em via de recurso -, não se afigura ao Tribunal que a simples previsão de uma forma especial de processo possa fornecer a justificação para o estabelecimento da impossibilidade de recurso da decisão judicial, nesse processo especial. Isto, porque a questão
é, justamente, a de saber se a mera utilização de um processo especial - pensado para apreciar apenas o modo de aplicação dos critérios legais ou o juízo técnico atinente à actualização de rendas prevista na lei – constitui, só por si, justificação objectiva bastante, à luz do princípio da igualdade, para a retirada a qualquer das partes do acesso aos tribunais de 2ª instância para reapreciação de questão, jurídica, de saber se, no caso, podia haver avaliação extraordinária. O Tribunal entende que se deve responder negativamente a esta questão, não se divisando na mera remissão para a previsão legal de um processo especial fundamento material bastante para a diferenciação em causa. Há, pois, que reiterar no presente caso a jurisprudência do Tribunal que resultou dos citados Acórdãos n.ºs 124/98 e 383/98, no sentido de que, na medida em que não permite o recurso para discussão da questão da admissibilidade legal da avaliação extraordinária em processo cujo valor é superior ao da alçada do tribunal recorrido, a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, introduzido pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, é inconstitucional, por violação do artigo 13º, n.º 1 da Constituição. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide: a. Julgar inconstitucional a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º
37021, de 21 de Agosto de 1948, na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de
2 de Janeiro inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na medida em que não permite o acesso aos tribunais superiores em via de recurso, em processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, para discussão de questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária requerida; e b. Em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando, ainda que com diversa fundamentação, a decisão recorrida, na parte impugnada. Lisboa,15 de Dezembro de 1998 Paulo Mota Pinto Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Artur Maurício, vencido de acordo com a declaração junta e revendo posição:
Declaração de voto A jurisprudência do Tribunal Constitucional é pacífica no sentido de que a Constituição não impõe, em processo civil, dois graus de jurisdição, gozando o legislador ordinário de 'uma ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos' (Cfr. Lopes do Rego in 'Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional', p.80); neste sentido cfr., entre outros, os Acórdãos nºs
275/94, 95/96 (inéditos) e 310/94 (publicado in DR, II Série, nº. 199 de
29/8/94, p. 8888). Aquela margem de discricionariedade tem, porém, como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade (artigo 13º da CRP). A consideração deste limite há-de fazer-se com uma cuidada ponderação dos interesses em jogo – nem sempre de primeira evidência – sem o que a regra da livre conformação do legislador ordinário se pode converter em excepção. A tese que fez vencimento no presente acórdão, aferindo a constitucionalidade da norma do artigo 15º § único do Dec. nº 37021, na redacção do Dec. Regulamentar nº 1/86, com o princípio da igualdade, ultrapassa, a meu ver, a fronteira em que deverá conter-se a análise comparativa dos regimes dos recursos. Na verdade, justificada a solução de um só grau de jurisdição atendendo à finalidade típica do processo de avaliação fiscal extraordinária de rendas
'isola-se', uma questão de direito nele discutida, para se concluir que, podendo haver recurso de acordo com o valor da causa, da decisão que a resolvesse, não há fundamento material bastante para que o legislador a não preveja naquele processo especial. Ora, sem embargo de, com determinados fundamentos, concretamente especificados na lei de processo civil, a admissibilidade do recurso se desprender do valor da causa e das alçadas dos tribunais (nºs 5 e 6 do artigo 678º do CPC), entendo que, em regra, a limitação dos recursos feita pelo legislador ordinário deve ser analisada em função da finalidade típica do processo em causa. É em função dessa finalidade que o legislador, ponderando a natureza e importância dos interesses envolvidos e a necessidade de preservar a própria operacionalidade da organização judiciária, estabeleceu, no uso da liberdade que se lhe reconhece, o regime dos recursos e, concretamente, se é admissível um duplo ou até triplo grau de jurisdição. A resolução de todas as outras questões – prévias, incidentais ou acessórias – está, em princípio, subordinada ao regime de recorribilidade da que corresponde
à finalidade típica do recurso. Ora, se, no caso, se poderia justificar, ponderados aqueles referidos factores, a irrecorribilidade do julgado que decidisse o valor da renda em função da avaliação, justificada está, igualmente, a irrecorribilidade da decisão com o fundamento invocado. Por outro lado, entendo que a questão não deve ser resolvida sem ter em conta outros tipos de processos em que o interessado possa ver reconhecido o mesmo direito, ou seja, no caso, o de não ser actualizada extraordinariamente a renda que paga. Na verdade, se houver outro tipo de processo – e, no caso, parece viável, uma acção declarativa de simples apreciação – em que o interessado possa impugnar as decisões que vierem a ser proferidas sobre o seu pedido, de acordo com o valor da causa, essa não será razão para concluir que, no processo especial de avaliação, tal direito de impugnação lhe seja, também, conferido. Não exigindo a Constituição que o legislador ordinário estruture o processo civil de molde a oferecer aos interessados uma multiplicidade de meios processuais para a mesma tutela que o direito invocado requer, a existência daquele outro tipo de processo é, até, uma razão acrescida para que se não julgue inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma em causa.
José Manuel Cardoso da Costa