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Proc. nº 267/97
1ª Secção Rel: Consº Artur Mauricio
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Em 27 de Fevereiro de 1995, V. H., que também usa e é conhecido pelos nomes de V. T. ou T. H., casado no regime de separação de bens com C. P., aposentado, residente no Território de Macau, na Povação do Campo, nº..., em Coloane, propôs uma acção declarativa com processo ordinário contra o MINISTÉRIO PÚBLICO e INTERESSADOS INCERTOS, no Tribunal de Competência Genérica de Macau, pedindo, a título principal, que fosse reconhecido como proprietário do prédio onde habita e que recebera por doação de seu pai e, a título subsidiário, que fosse reconhecido como titular do domínio útil do prédio em causa, nos termos da legislação local que indicou. Logo na petição inicial sustentou que, ainda que fosse aplicável o art. 8º da Lei de Terras de Macau, procederia o pedido principal, visto o prazo prescricional se ter concluído antes da entrada em vigor dessa lei, considerando que - mesmo a admitir-se que, por força do regime especial dos solos de Macau, o prédio em causa tivesse sido integrado no domínio privado do Território - seria mister 'concluir que os sinais físicos da posse do A., desde tempos consideravelmente antigos, constituem uma afectação do terreno em termos em que a própria Lei de Terras o integra na propriedade privada, uma vez que as obras que provam a posse provam também a afectação' (art. 47º). Tal implicaria o afastamento do regime de posse presumida do art. 5º, nº 4, da Lei nº 6/80/M, na redacção que lhe foi dada pelo art. 1º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho. A entender-se de outro modo, isto é, que haveria imposição do 'regime presumido - com a consequente redução imposta pelo art. 2º, da última das citadas leis - equivaleria, atentos os sinais de afectação que se deixaram descritos e que traduzem o seu ingresso na propriedade privada, mesmo à luz daquele regime, a uma verdadeira expropriação, ferindo a aquisição da propriedade privada quer pela usucapião comum, quer pela afectação, sendo - com tal sentido - inconstitucional, por atingir o art. 62º da Constituição da República, porque retiraria aquilo que já foi adquirido nos termos da lei civil' (art. 49º da petição). Ao formular o pedido a título subsidiário, pediu que fosse reconhecida a aquisição por usucapião 'do domínio
útil do prédio possuído pela A., composta pelas parcelas A1, A2, A3, B e parte da parcela C, acrescido de mais de dez por cento' (art. 56º do mesmo articulado).
O pedido foi contestado pelo Magistrado do Ministério Público, o qual sustentou que, nos termos da referida Lei das Terras, faltando o título de aquisição, o terreno devia ser considerado vago, integrando-se no domínio privado do Território. Tal solução seria a que resultaria, de resto, dos sucessivos regimes sobre a ocupação de terrenos no Ultramar, a começar na Lei de
21 de Agosto de 1856. Concluiu pela improcedência dos pedidos principal e subsidiário.
Seguiu-se despacho saneador, especificação e questionário.
Após o julgamento e a apresentação de alegações escritas pelo autor, onde se sustentou qual a área que pode ser usucapida, veio a acção a ser julgada parcialmente procedente, sendo julgada improcedente o pedido principal e declarado o autor titular do domínio útil do prédio identificado nos autos, parcelas A e B (sentença de 22 de Maio de 1996, a fls. 173 a 179 vº dos autos). Na mesma sentença relegou-se para execução de sentença a concretização e implantação da área de dez por cento calculada a partir da área ocupada pelos edifícios, a que aludia o art. 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, afirmando-se que o autor se abstivera de juntar 'uma planta com a implantação da
área correspondente aos dez por cento' (a fls. 179 dos autos).
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Magistrado do Ministério Público, o qual foi admitido por despacho de fls. 182. O autor não impugnou, a título principal ou subordinado, a sentença, relativamente às partes dela que lhe foram desfavoráveis.
Nas contra-alegações, o particular recorrido considerou que a norma do art. 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, na interpretação propugnada pelo Magistrado do Ministério Público nas suas alegações, era inconstitucional por violação dos arts. 62º, nº 1, e 13º da Constituição da República Portuguesa
(o Ministério Público sustentava que, dada a extensão da área total do imóvel, em que a parte construída só representava cerca de dez por cento do total, não funcionava a presunção legal de aforamento e não podia haver aquisição do domínio útil por usucapião).
Através de acórdão de 12 de Março de 1997, o Tribunal Superior de Justiça de Macau concedeu provimento ao recurso do Ministério Público, revogando a decisão recorrida. Nesse acórdão, depois de se chamar a atenção para o facto de ter transitado em julgado a decisão da 1ª instância quanto à improcedência do pedido principal, passou a apreciar-se o recurso quanto à decisão favorável respeitante ao pedido subsidiário. Aí se começou por analisar os diferendos interpretativos acerca das pretensões dos particulares à aquisição de determinados prédios por usucapião no domínio da primitiva redacção da Lei das Terras de 1980, mostrando-se qual a génese da modificação legislativa ocorrida em 1994:
'Neste circunstancialismo, viu-se o legislador na necessidade de intervir introduzindo em 1994 alterações à Lei das Terras. E, assim, pela Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, aditou-se dois números ao art. 5º da Lei nº 6/80/M, prevendo-se que o domínio útil do prédio urbano objecto da concessão por aforamento pelo Território é adquirível por usucapião, nos termos da lei civil. E mais: estabelece uma presunção de aforamento pelo Território, sempre que não haja título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento do foro, desde que haja posse por mais de vinte anos. Contudo, impôs no seu art. 2º, nº 1, uma limitação ao direito de adquirir o domínio útil por usucapião, ao estatuir: «A extensão dos prédios urbanos (...) não pode exceder em dez por cento a área ocupada pelos edifícios que nela estejam incorporados.» E no seu nº 2 faz recair sobre o Autor o ónus de juntar à petição inicial as respectivas plantas cadastrais. Faz, pois, o legislador apelo a um conceito e a um critério matemático. E, como se decidiu no Acórdão de 31.10.95 deste T.S.J., Proc. 258: «Quando o legislador faz apelo às regras de ciência, de arte ou da técnica, por os ter como os mais adequados à composição dos interesses que visa regular, ao juiz não caberá nenhuma autonomia na integração desses conceitos e antes apenas lhe cabe respeitá-los». Assim, no caso dos autos, verifica-se pela alínea b) da Especificação que explicita a planta cadastral junta com a petição inicial, que o imóvel em causa
é constituído por três parcelas: a parcela A (A1, A2, e A3) correspondente a
áreas construídas, com 133m2, a parcela B a um terreno ocupado sem construção e coberto com um toldo (com a
área de 279 m2) e a parcela C a um terreno ocupado e descoberto (com a área de
892 m2). Assim, mesmo que viesse a considerar-se a parcela B como um «edifício incorporado», por apresentar estacas ligadas ao solo que seguram o toldo existente, sempre haveria 892 m2 de área desocupada. Sempre haveria cerca de 2/3 do imóvel sem qualquer edificação. Não está, assim, preenchido o requisito estatuído no art. 2º, nº 1 da lei nº
2/94/M, de 4 de Julho, que é, a nosso ver, uma condição para a procedibilidade do pedido da declaração de propriedade a incidir sobre o domínio útil. Caberia, nos termos do regime probatório, ao Autor o ónus da prova (art. 342º do Código Civil), pelo que se nos afigura, salvo o devido respeito, menos adequado o Mº Juiz «a quo» ter remetido para execução de sentença essa indagação e essa prova. Tal decisão poderia pressupor a divisibilidade do imóvel pelas diversas parcelas que o integram, o que não pode ocorrer.' (a fls. 226 vº a 227 vº)
E, passando a analisar as arguições de inconstitucionalidade, o Tribunal Superior de Justiça de Macau considerou serem as mesmas improcedentes, dadas as razões invocadas no preâmbulo da Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho, ou seja, a reduzida extensão geográfica do Território de Macau, a alta densidade demográfica, a quase inexistência de explorações agrárias, a finalidade essencialmente urbana do aproveitamento dos terrenos disponíveis, a construção em vertical, a saturação da parte velha da cidade e a proliferação de barracas. Nesse enquadramento concluiu:
' Esta preocupação foi, em primeira linha, a de resolver toda a problemática dos
«terrenos urbanos», dando a possibilidade àqueles que sempre viveram nas suas habitações, algumas delas «barracas e outras construções provisórias», ao menos, tivessem a possibilidade legal de virem a ser declarados proprietários do respectivo domínio útil. Esta parece ser a inequívoca intenção do legislador, não havendo nem desrespeito do princípio da igualdade, uma vez que legislou para um grupo indeterminado de pessoas que se encontrassem em determinadas circunstâncias que, em seu critério, julgou por bem acautelar, nem do princípio da protecção da propriedade privada, já que a legislação que vem sendo referida tentou, nomeadamente pelo art. 5º da Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho, na leitura que dele fazemos, salvaguardar a propriedade privada.' (a fls. 228)
Inconformado com este acórdão, dele interpôs recurso de constitucionalidade o autor, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, indicando como objecto do mesmo a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 1 do art. 2º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, na interpretação acolhida no acórdão, por violação dos arts. 13º e 62º, nº 1 da Constituição.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 233.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações o recorrente e o recorrido Ministério Público.
O primeiro formulou as seguintes conclusões:
' 1ª O Ac. recorrido, para dar provimento ao recurso do Ministério Público e revogar a sentença de 1ª instância, fez aplicação da norma do art. 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho.
2ª Tal norma - se tiver o sentido que prevaleceu na decisão recorrida - é inconstitucional pois viola o art. 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
3ª E é - o ainda por violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Lei Fundamental.
4ª Se se entender que ela é susceptível de outra interpretação - nomeadamente a que dela faz o recorrente - então é inconstitucional na interpretação dela feita pelo tribunal recorrido, por violação dos mesmos princípios supraidentificados.
5ª Uma interpretação conforme à Constituição impõe a conclusão de que a presunção de aforamento pelo Território, na falta de título de aquisição ou registo deste ou prova de pagamento de foro, não ocorre apenas em prédios urbanos cuja extensão não exceda em 10% a área ocupada pelos edifícios neles incorporados.
6ª Mostram-se preenchidos, no caso dos autos, os requisitos de viabilidade do pedido formulado, a tal não constituindo obstáculo o facto da área dos edifícios incorporados no prédio ser inferior a 90% da área global do prédio, por tal circunstância apenas implicar a redução quantitativa da área usucapível.' (a fls. 257-258)
Nas alegações por si subscritas, formula o Senhor Procurador-Geral Adjunto as seguintes conclusões:
1º Tendo-se o autor conformado com a decisão, proferida em 1ª instância, que julgou parcialmente procedente o pedido subsidiário deduzido - de reconhecimento da titularidade do domínio útil sobre certo prédio, relegando para execução de sentença a concretização e implantação da área de 10% ocupada pelos edifícios a que alude o artigo 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho - o âmbito do recurso, interposto unicamente pelo Ministério Público para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, circunscreve-se à questão da admissibilidade da redução quantitativa da área usucapível, a efectivar em liquidação em execução de sentença.
2º Não padece de inconstitucionalidade a interpretação daquela norma da Lei de Terras de Macau que se traduz em impor ao A. o ónus de alegar e provar que o prédio sobre que pretende efctivar a aquisição por usucapião do domínio útil não excede a área estabelecida imperativamente no citado artigo 2º, nº 1, concluindo que a acção declaratória e a subsequente liquidação em execução de sentença não são formas procedimentais idóneas e adequadas para operar a redução da área usucapível, realizando a divisão material de prédio descrito como unitário.
3º Incumbindo, consequentemente, ao A., quando a área do prédio que descreve como unitário excede aquela superfície, o ónus de obter prévia divisão material ou fraccionamente do imóvel, de modo a destacar dele a parcela sobre a qual o referido direito de aquisição se poderá efectivar, nos termos previstos na lei.
4º Deverá, pois, ser julgado improcedente o presente recurso.' (a fls. 275-276)
Foram corridos os vistos legais.
Cumpre decidir.
3. Importa, previamente, salientar a competência do Tribunal para conhecer do recurso.
De facto, no Estatuto Orgânico de Macau são atribuídas competências ao Tribunal Constitucional (arts. 11º, nº 1, alínea e), 30º, nº 1, alínea a), e
40º, nº 3), do mesmo passo que o art. 41º, nº 1, desse Estatuto dispõe que, nos feitos submetidos a julgamento, 'não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam as regras constitucionais ou estatutárias ou os princípios nelas consignados'. Por outro lado, a Constituição portuguesa dispõe que a lei ordinária pode atribuir funções e competências ao Tribunal Constitucional (art.
223º, nº 3).
Nos termos do art. 1º da Lei do Tribunal Constitucional, este
'exerce a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa'. Ora, a ordem jurídica vigente em Macau até 1999 é indiscutivelmente uma ordem portuguesa (art. 292º da Constituição). Por outro lado, a Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau ressalva transitoriamente as competências de diferentes tribunais portugueses, entre os quais as do Tribunal Constitucional
(veja-se o seu art. 34º).
É, de resto, pacífica na jurisprudência do Tribunal Constitucional a aceitação da competência deste para conhecer de recursos de constitucionalidade, em fiscalização concreta, interpostos de decisões dos tribunais de Macau, bem como de reclamações previstas no art. 76º, nº 4, daquela mesma lei (veja-se a análise da jurisprudência mais antiga em António Vitorino, Macau na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, in Estado & Direito, nºs 5-6, 1990, págs. 99 a 114; na mais recente, vejam-se, por exemplo, os acórdãos nºs. 481/94,
75/95, 76/95, 454/95 e 227/97 publicados no Diário da República, II Série, nºs.
288, de 15 de Dezembro de 1994, nº 135, de 12 de Junho de 1995, nº 136, de 14 do mesmo mês e ano, nº 258, de 8 de Novembro de 1995, nº 146, de 27 de Junho de
1997, respectivamente).
4. Afirmada a competência do Tribunal, importa salientar que constitui objecto do presente recurso, tal como o recorta o recorrente, a norma do art. 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho ('Alterações à Lei de Terras'), na interpretação que, segundo ele, teria sido acolhida no acórdão recorrido.
Dispõe esse art. 2º da Lei nº 2/94/M, sob a epígrafe 'Área e planta cadastral dos prédios urbanos':
'1. A extensão dos prédios urbanos a que se refere o nº 4 do artigo 5º da Lei nº
6/80/M, na redacção dada por esta lei, não pode exceder em dez por cento à área ocupada pelos edíficios que nela estejam incorporados.
2. As petições em que se alegue a posse de prédios referidos no número anterior devem ser acompanhadas das respectivas plantas cadastrais a emitir pelos seviços competentes.'
Para o recorrente, a interpretação da norma em causa adoptada no acórdão recorrido seria a seguinte: a presunção de aforamento só ocorre em relação a prédios urbanos cuja extensão não exceda em 10% a área ocupada pelos edifícios nele incorporados, funcionando tal particularidade como um requisito de viabilidade do pedido formulado, em termos de se excluir a possibilidade da providência aos particulares que possuam um prédio que exceda em tal percentagem a área ocupada pelos edifícios nele incorporados(sic).
Aceita, por outro lado, o recorrente - embora com dúvidas - a constitucionalidade da norma enquanto estabelece uma limitação quantitativa de extensão dos prédios urbanos, na área não construída, susceptível de usucapião.
5. Vejamos, em seguida, qual o segmento normativo e pertinente dimensão interpretativa que foram aplicados no acórdão recorrido.
Como se acentua não só no acórdão recorrido, como nas alegações apresentadas pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, é imprescindível atender à situação processual sub judicio e ao teor da própria sentença de primeira instância, revogada pelo acórdão ora recorrido. De facto, só estava em causa, no recurso de apelação interposto pelo representante do Ministério Público para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, a sentença do Tribunal de Competência Genérica na parte em que julgava parcialmente procedente o pedido do autor formulado a título subsidiário, não a parte que julgara improcedente o pedido principal de aquisição da propriedade plena de todo o imóvel e que, por falta de interposição de recurso em devido tempo pelo autor, transitou em julgado.
Como se refere nas contra-alegações do Ministério Público:
' O autor conformou-se com tal decisão [de improcedência do pedido principal], o que significa que não poderá questionar-se, no âmbito do presente recurso, a validade constitucional e a vigência das normas da Lei das Terras de Macau que estabelecem limites ou restrições à plena usucapibilidade de direitos reais de gozo (nomeadamente a do artigo 8º da Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho), relativamente ao regime - regra estatuído no Código Civil para o conjunto do ordenamento nacional.' (a fls. 266)
O mesmo Magistrado põe em destaque que, não tendo o ora recorrente pretendido impugnar a decisão proferida em 1ª instância quanto ao pedido subsidiário, na parte em que lhe foi desfavorável, antes propugnando pela sua integral confirmação na apelação, ficou assente 'em consequência daquela decisão, não impugnada pelo autor, que o limite «físico» emergente da norma cuja constitucionalidade é questionada tem de ser respeitado na presente acção: daí precisamente que o pedido subsidiário haja sido julgado só «parcialmente» procedente e se tenha relegado para liquidação em execução de sentença a
«divisão material» do prédio, em termos de a área não construída, cujo domínio
útil viria a ser objecto de aquisição, se conformar com os referidos limites
«físicos» decorrentes da Lei das Terras' (a fls. 267). Nessa medida, considera-se nestas contra-alegações inviável, face ao disposto no nº 4 do art.
684º do Código de Processo Civil, que o ora recorrente 'venha agora questionar
«in totum» a constitucionalidade da norma do artigo 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho: ficou, na verdade, assente - como consequência da não impugnação pelo A. da decisão proferida em 1ª instância - que o A. não tinha, na presente acção, direito a adquirir, por usucapião, o domínio útil de todo o prédio, mas apenas de uma parcela deste, que respeitasse os limites físicos estabelecidos imperativamente naquela norma legal' (ibidem).
Não pode deixar de se concordar com a análise rigorosa feita pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto quanto aos limites de natureza processual que condicionam o objecto do recurso.
Nesta medida, não poderia o Tribunal apreciar a questão da eventual inconstitucionalidade do nº 1 daquele art. 2º da Lei nº 2/94/M, na parte em que estabelece um certo limite (a extensão dos prédios urbanos cujo domínio útil pode ser adquirido por usucapião 'não pode exceder em dez por cento a área ocupada pelos edifícios que nela estejam incorporados') à aquisição por usucapião.
A verdade, porém, é que, em bom rigor, nem esta questão é colocada pelo recorrente que, como atrás se disse, aceita, ou admite, a referida limitação.
A norma do art. 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, no segmento que foi aplicado pela decisão recorrida, na interpretação nela acolhida, é, afinal, a de que não é viável operar ex officio a divisão material do prédio, não pedida expressamente pelo ora recorrente na petição inicial, nem no processo declarativo, nem na fase de liquidação do subsequente processo executivo, em termos de se mostrarem respeitados os limites estabelecidos naquela norma legal.
Acolhe-se, assim, a posição do representante da entidade recorrida, o qual afirma nas referidas contra-alegações:
'... em rigor, afigura-se-nos que o objecto do recurso não terá carácter ou natureza substancial, mas antes procedimental: não se trata de apurar se os limites físicos ou materiais estabelecidos na norma questionada podem valer e ser aplicados; mas tão-somente que verificar se será conforme à Lei Fundamental a decisão que rejeita a possibilidade de - invocando o A. a usucapião sobre um prédio unitário, que engloba áreas não construídas manifestamente superiores ao limite estabelecido naquela lei - se proceder à divisão material do mesmo prédio, no âmbito do processo cível pendente perante o tribunal de competência genérica.' (a fls. 268)
6. Ora, sendo assim aplicada no acórdão recorrido a norma em causa com a referida interpretação, certo é que o recorrente acaba por eleger como objecto do recurso uma interpretação normativa que àquela se não ajusta.
Na verdade, ele imputa, como se viu, ao acórdão recorrido o entendimento - que nele se não reconhece - segundo o qual a norma obstaria à aquisição por usucapião, do domínio útil de qualquer parte do prédio, desde que a área do logradouro fosse superior em mais de 10% da área construída.
Que assim é, revelam-no claramente o passo e as conclusões 5ª e 6ª supra transcritas das alegações do recorrente.
Trata-se, aliás, de uma interpretação do acórdão recorrido que Antunes Varela igualmente faz na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
130º, nºs. 3875-3876, pp. 86 a 88.
O que o recorrente poderia questionar - e não questiona - era a conformidade constitucional da interpretação acolhida no aresto do Tribunal Superior de Justiça ao dar provimento à apelação do Ministério Público, por ter considerado que o recorrente não cumprira o ónus de alegação e de prova dos factos constitutivos do direito invocado.
Na verdade, como acima se referiu ao transcrever-se parte da fundamentação do acórdão recorrido, o Tribunal Superior de Justiça situou o problema num plano de direito processual, considerando que não podia ser deferido o pedido do autor, ora recorrente, que tinha por objecto o reconhecimento da aquisição do domínio útil sobre certas construções que formavam um 'conjunto urbano' (parcelas A e B) e sobre um terreno sem construções adjacente (parcela C), porque o autor não tinha demonstrado que era divisível o imóvel pelas diversas parcelas que o integram, não estando por ele determinada a área de logradouro (que não podia exceder em dez por cento a área ocupada pelos edifícios que nela estejam incorporados). Por isso, censurou a sentença do tribunal de primeira instância que não tinha considerado que devia recair sobre o autor esse ónus probatório, e que, em consequência, julgara o pedido subsidiário parcialmente procedente, relegando para a fase liminar da subsequente acção executiva a demarcação ou delimitação da área do logradouro, para cumprimento do normativo legal. Deve notar-se, porém, que o Tribunal Superior de Justiça não acolheu, de forma expressa, a tese do Ministério Público, sustentada nas alegações da apelação, que negava que pudesse haver usucapião no caso concreto, por se mostrarem excedidas as áreas máximas previstas na lei.
Tendo o Tribunal Superior de Justiça considerado que o autor não cumprira o ónus de demonstração da divisibilidade do terreno pelas parcelas construídas e não tendo este proposto na petição da acção uma limitação do logradouro, também entendeu que não era na acção executiva (movida pelo autor contra o Território, para exigir a entrega de coisa certa?) que tal limitação se podia fazer.
Poderia, no entanto, objectar-se que o ónus imposto ao recorrente de delimitar a área do logradouro cujo domínio útil fosse usucapível, sempre conduziria, na prática, por uma hipotética inviabilidade de o cumprir, ao resultado do entendimento que o recorrente atribui ao acórdão impugnado.
Mas não parece procedente uma tal objecção.
De facto, podem conceber-se, sem grande dificuldade, modos de o autor, ora recorrente, proceder à delimitação da área de logradouro cujo domínio
útil pode ser usucapível, se não for viável seguir o processo administrativo de demarcação previsto na Lei das Terras: desde logo, a apresentação de um pedido cumulado nesse sentido, na acção de reconhecimento da aquisição do domínio útil, movida contra o Território, onde se refira com rigor a área delimitada, ou, eventualmente, a outorga de acto de divisão, pactuado com o Território ou autorizado pelo juiz através de um processo de jurisdição voluntária de suprimento de falta de consentimento do Território.
O que se deixa dito conduz, inevitavelmente, ao não conhecimento do objecto do recurso - não foi aplicada no acórdão recorrido a norma do artigo 2º nº. 1 da Lei nº. 2/94/M com a interpretação que o recorrente contesta e atribui
àquele aresto, pelo que se não verifica um dos requisitos de admissibilidade do recurso ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82.
7. Decisão
Pelo exposto e em conclusão decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs. Lisboa, 15 de Dezembro de 1998 Artur Maurício Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa (com declaração de voto que junto) Declaração de voto No entendimento a que o Tribunal chegou do sentido e alcance - puramente
'processuais' - do acórdão recorrido do Tribunal Superior de Justiça de Macau,
'salva-se' aquilo que, do meu ponto de vista, era essencial. A saber: a não convalidação de uma interpretação da norma do nº 1 do artigo 2º da Lei nº
2/94/M, segundo a qual ela obstaria à aquisição, por usucapião, do domínio útil de qualquer parte de um dos prédios a que se refere, sempre que a respectiva extensão exceda em mais de 10% a área ocupada pelos edifícios que nele estejam incorporados (dito por outras palavras, sempre que a área do logradouro seja superior em mais de 10% à área construída) - interpretação que, na verdade, tenho por inconstitucional. Simplesmente, dada a 'ambiguidade' de que, a meu ver e salvo o devido respeito, o acórdão recorrido, na sua formulação, de todo o modo se reveste, votei no sentido de que lhe fosse dado - quando menos, por razões cautelares - outro entendimento (concretamente: o de que nele era implicitamente acolhida a interpretação, acabada de referir, já de alcance 'substantivo', da norma questionada), se conhecesse, em consequência, do mérito do recurso e se julgasse inconstitucional, nesse seu segmento e interpretação, a mesma norma. José Manuel Cardoso da Costa