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Procº nº 733/96.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. A., recorreu para o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto impugnando o acto de liquidação de receita tributária aduaneira praticado pelo Verificador Chefe da 1ª Secção da Alfândega do Porto e datado de 27 de Maio de
1991.
Por sentença de 13 de Outubro de 1992 foi o recurso considerado improcedente, o que motivou que a A. recorresse dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo.
Esse Alto Tribunal, por acórdão de 3 de Julho de 1996, tirado por maioria, veio a conceder provimento ao recurso.
Para tanto, recusou a aplicação, por inconstitucionalidade material, do artº 22º, alínea d), da Lei nº 40/81, de 31 de Dezembro, e, por inconstitucionalidade derivada, do Decreto-Lei nº 54/83, de 1 de Fevereiro.
2. Em síntese, aquele aresto fundamentou o juízo de inconstitucionalidade que levou a cabo na seguinte ordem de considerações:-
- a sobretaxa de importação, que foi criada pelo Decreto-Lei nº
271-A/75, de 31 de Maio, foi, por força de vários diplomas posteriores, prorrogada anualmente, tendo o Governo sido autorizado, por intermédio da disposição constante da alínea d) do artº 22º da Lei nº 40/81, a, no âmbito aduaneiro, prorrogar tal taxa até 31 de Dezembro de 1982 e a rever o respectivo regime;
- no uso dessa autorização foi editado o Decreto-Lei nº 54/83, o qual fixou em 30% a sobretaxa de importação criada pelo Decreto-Lei nº 271-A/75 e estabelecida no artº 1º do Decreto-Lei nº 110/79, de 3 de Maio;
- tendo em conta a data da aprovação em Conselho de Ministros do citado D.L. nº 54/83, era de entender, ponderando a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que o tal diploma não excedia o prazo de duração da autorização legislativa concedida pela Lei nº 40/81, a qual terminava em 31 de Dezembro de
1982, dado tratar-se de uma lei orçamental visando aquele ano de 1982;
- tal autorização unicamente comportava o sentido de poder ser prorrogada a sobretaxa e de ser revisto o respectivo regime, nela se não fazendo qualquer alusão à respectiva taxa ou se especificando quais os elementos do regime a rever;
- daí que a mesma, no que à revisão do regime concerne, tenha de ser entendida como a passagem de 'um cheque em branco' ao executivo, em matéria fiscal';
- muito embora a versão originária da Constituição - que regia aquando da edição da Lei nº 40/81 - não fizesse, no nº 1 do artigo 168º, menção a que as leis de autorização legislativa deveriam comportar o sentido dessa autorização, visto que, então, se mencionavam somente como requisitos dessa espécie de leis a definição dos respectivos objecto e extensão, deveria entender-se que o requisito da definição do sentido era algo que já era exigido, integrando-se no conceito de objecto;
de onde haver que concluir que o normativo constante da alínea d) do artº 22º da Lei nº 40/81 estava ferido de inconstitucionalidade material 'por violação do artº 168º, nº 1, da Constituição de 1976, na sua redacção originária, ou é supervenientemente inconstitucional, por violação do artº 168º, nº 2, da Constituição, na revisão de 1982', consequentemente padecendo de inconstitucionalidade derivada o D.L. nº 54/83.
3. É deste acórdão que vem, pelo Ministério Público, interposto o presente recurso, tendo o seu Representante em funções no Tribunal Constitucional rematado a alegação que produziu com as seguintes conclusões:-
'1º O nível de exigência constitucional quanto à definição do conteúdo mínimo essencial das leis de autorização legislativa, no texto originário da Constituição de 1976, era inferior ao que passou a reger face à nova redacção concedida ao nº 2 do artigo 168º pela revisão constitucional de 1982.
2º Na verdade antes de vigorar tal preceito, e conforme a prática parlamentar e constitucional dominante, não era exigível que o Parlamento especificasse detalhadamente o 'sentido' da autorização concedida, em termos de precisar qual a concreta e precisa orientação político legislativa a adoptar na regulamentação jurídica do instituto a que a delegação se reportava.
3º Não é, deste modo, inconstitucional o 'bloco normativo' constituído pela Lei de Autorização que faculta ao Governo a revisão do regime de certa sobretaxa de importação e pelo decreto-lei autorizado, que apenas aproveitou tal autorização genérica para modificar - segundo objectivos conjunturais da política macro-económica, ligados ao estado da balança de pagamentos - o montante da taxa relativa a mercadorias importadas.
4º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade das normas desaplicadas na decisão recorrida'.
A recorrida, por seu turno, não produziu alegação.
Cumpre decidir. E decidir se a norma constante da alínea d) do artº 22º da Lei nº 40/81 violou o nº 1 do artigo 168º da versão originária da Constituição, que era a que regia ao tempo da edição daquele diploma.
II
1. De harmonia com aquele nº 1 do artigo 168º, permitia--se à Assembleia da República que autorizasse 'o Governo a fazer decretos-leis sobre matérias da sua exclusiva competência, devendo definir o objecto e a extensão da autorização, bem como a sua duração'.
Essa disposição, como resulta dos trabalhos preparatórios da Assembleia Constituinte (cfr. Diário da Assembleia Constituinte, nº 117, de 11 de Março de 1976, 3869) resultou de uma aprovação por unanimidade, não se tendo, na discussão, feito qualquer alusão à necessidade de, na definição ou no âmbito das leis de autorização legislativa, se indicar o sentido que as mesmas deveriam comportar.
1.1. Porque a prática política demonstrou que, nas autorizações legislativas concedidas pelo Parlamento ao Governo, as respectivas leis, na grande maioria dos casos, não continham indicação do sentido em que se devia orientar a legislação a emitir ao abrigo do autorização (o que o mesmo é dizer, a indicação concreta, específica e precisa a que deveriam obedecer as linhas do regime jurídico que se visava vir a ser levado a efeito pelo autorizado diploma), foi o problema objecto de acentuada reflexão aquando da primeira revisão constitucional.
E é assim que, surge uma proposta (posteriormente reconvertida) elaborada pelo Partido Comunista Português, na qual se sugere o aditamento de um novo nº 2 ao artigo 168º, prescrevendo que «as leis de autorização legislativa devem definir igualmente os princípios a que há-de obedecer o decreto-lei autorizado» [cfr. Diário da Assembleia da República, 2ª Série, 2º Suplemento ao nº 14, de 14 de Novembro de 181, 230 (22)], proposta que teve o apoio do Partido Socialista, tendo a Aliança Democrática reservado na altura a sua posição.
Com especial relevo nas reuniões de 19 de Novembro de 1981 e 22 de Abril de 1982 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (cfr. citados Diário e Série, Suplemento ao nº 44, de 27 de Janeiro de 1982 e 2º Suplemento ao nº 106, de 16 de Junho de 1982), foi efectuado amplo debate sobre a proposta acima referida, nele tendo intervindo os Deputados Vital Moreira, Amândio de Azevedo, Almeida Santos, Costa Andrade, Nunes de Almeida, Armando Lopes e Jorge Miranda, vindo, na reunião plenária de 15 de Julho de 1982 (cfr. mesmo Diário,
1ª Série, de 16 daqueles mês a ano), a ser debatida a proposta, apresentada pela CERC, de substituição e sistematização do artigo 168º (com, por entre o mais, a finalidade de ficar a conter um número 2 apresentando a redacção «As leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual poderá ser prorrogada»), proposta essa que foi aprovada por unanimidade.
1.2. Dos debates levados a efeito na CERC, e tendo em atenção o problema de que ora curamos, releva a indicação de alguns passos significativos desses debates.
Assim:
Disse o deputado Vital Moreira, a dado passo, na reunião de 19 de Novembro de 1981:-
'..................................................
Temos uma proposta no sentido de que as leis de autorização legislativa devem, além do que já consta, definir igualmente os princípios que f[i]zerem parte do decreto-lei [autorizado] [na transcrição constante do citado D.A.R. (2ª Série, Suplemento ao nº 44, de 27JAN82) existem evidentes lapsos]. Na verdade, não aceitaremos o regime que permite à Assembleia da República poder fazer leis de autorização legislativa sem dizer nada sobre o sentido legislativo do decreto-lei autorizado. E foi nesse sentido que propusemos esse inciso. Hoje é possível que a Assembleia da República autorize o Governo a legislar, definindo um objecto mais ou menos rigorosamente, mas sem indicar, digamos, qual o sentido da alteração legislativa que o Governo fica autorizado a fazer.
...................................................
..................................................'
Após essa intervenção, o deputado Amândio de Azevedo exprimiu um ponto de vista segundo o qual a proposta do Partido Comunista Português, muito embora com a mesma não estivesse em 'desacordo total' não deveria merecer acolhimento por razões práticas, já que, se se aceitasse que as leis de autorização legislativa deveriam conter indicação do sentido que o diploma autorizado haveria que conter, então 'o debate sobre pedido de autorização legislativa' converter-se-ia 'num debate de fundo', o que poria em causa o propósito de as autorizações legislativas tornarem mais expedito o processo legislativo, e redundaria, no fundo, num estabelecimento de 'bases gerais com vinculação jurídica', sendo certo que o controlo por banda da Assembleia da República sempre poderia 'exercer-se, porque há o instituto da ratificação'.
O deputado Almeida Santos, na sua intervenção, após referir que, muito embora se pudesse considerar que a indicação do sentido dos decretos-leis autorizados poderia ser 'interpretada correctamente na mera referência ao objecto', haveria que não deixar passar em claro a que a prática parlamentar
'não tinha ligado importância nenhuma a' isso, razão pela qual se pudesse ficar expressa na Constituição a exigência do sentido das leis de autorização legislativa, 'então sim, seria claramente enriquecedor'.
O deputado Nunes de Almeida, por seu turno, conquanto entendesse que a exigência de nas leis de autorização legislativa contar a referência a
«princípios» se pudesse afigurar excessiva, já no tocante ao «sentido» seria chocante que a respectiva exigência não ocorresse.
De novo interveio o deputado Vital Moreira que exprimiu a sua perspectiva no sentido de, sendo embora 'sensível aos argumentos que foram alinhados contra a expressão «a lei definirá os princípios»', não dever deixar de se admitir a exigência da «direcção» ou do «sentido» a que deveria obedecer o decreto-lei autorizado, ou seja, a definição da 'direcção escolhida pelo Governo para alterar a ordem jurídica, para mudar o status quo, porque é para isso que quer a autorização legislativa', havendo, pois, que afirmar qual o mínimo que a Assembleia da República deve saber e que fixe 'a direcção e o que o Governo vai fazer'.
O deputado Jorge Miranda interveio então, referindo:-
'..................................................
................................................... Há uma ideia comum sobre a qual todos estaremos de acordo. É a ideia de que, neste domínio das autorizações legislativas, tem de ser encontrado o ponto de equilíbrio entre uma grande margem de liberdade do Governo para que este instituto de autorização funcione eficazmente e uma margem de adstrição jurídica para que a Assembleia, ao autorizar, conheça o sentido e o objectivo da autorização que vai conceder.
Em grande parte, este problema poderia ser resolvido através da prática constitucional. Todavia, porque tem havido abusos, desvios e deficiências, justificar-se-á acrescentar uma qualquer menção. Aquela que sugeriu o deputado Almeida Santos - o «sentido» da autorização - pode ter-se por extremamente fluida, já vai comprometer o Governo em termos de ficar vinculado a uma determinada direcção e orientação legislativa fundamental, em termos de a Assembleia poder logo ajuizar sobre qual o objectivo pretendido pelo Governo.
...................................................
..................................................'
Na reunião de 22 de Abril de 1982, o deputado Amândio de Azevedo, ao propor que no nº 2 do artigo 168º se previsse a possibilidade de prorrogação das autorizações legislativas (ou que essa possibilidade ficasse a constar de um outro número), aceitou a redacção então proposta, a qual já continha a exigência da definição, nas leis de autorização legislativa, do respectivo «sentido».
1.3. Na reunião plenária de 15 de Julho de 1982 (citado D.A.R., 1ª Série, de 16-JUL-82), foi aprovada, por unanimidade, a proposta de substituição e sistematização do antecedente nº 1 do artigo 168º (que passou a nº 2) apresentada pela CERC (correspondente ao actual nº 2 daquele artigo), tendo, a propósito, referido o deputado Sousa Tavares que '[a] votação destes artigos
167º e 168º representam um dos momentos importantes desta revisão constitucional', bastando, para alicerçar uma tal asserção, 'a definição, em termos claros e amplos, da competência legislativa da Assembleia, da criação da reserva absoluta desta Assembleia - que não existia -, da clarificação da forma como podem ser dados ao Governo autorizações legislativas e aos preceitos a que devem obedecer para os casos de competência relativa da Assembleia para nobilitar o trabalho de revisão constitucional que foi feito'.
E acrescentou: - 'Com estes artigos entramos naquilo a que podemos chamar um «regime de controle administrativo por uma Assembleia», isto é, as principais matérias respeitantes, quer à organização do estado, quer à vida colectiva, ficam subordinadas a um controle da Assembleia da República e só por ela - em princípio pode[m] ser legisladas'.
Nessa reunião plenária, o deputado Jorge Miranda sublinhou, como um dos pontos mais importantes, 'o mais correcto regime das autorizações legislativas cujas leis deverão definir não só o objecto e a extensão, mas também o sentido da autorização'.
2. No seio da doutrina , ao se enfrentar a problemática ligada à questão de saber se no domínio da versão originária da Constituição (e, quanto a alguma dessa doutrina, tendo em conta a revisão operada em 1982) era ou não exigível que as leis de autorização legislativa comportassem a definição do sentido a que devia obedecer o decreto-lei autorizado, poder-se-ão citar Gomes Canotilho e Vital Moreira (1ª edição da Constituição da República Portuguesa Anotada, 1978, 336), para os quais a lei Fundamental, naquela versão, não exigia que a lei de autorização legislativa adiantasse 'os princípios-base do regime a ser definido pelo decreto-lei autorizado', sendo que também o não impedia, ideia que também resulta da obra Direito Constitucional (2ª edição, 1980, 357) do primeiro autor, e da qual se pode extrair, ao que tudo indica, que a definição do sentido era algo apenas recomendável.
Cardoso da Costa (in Sobre as Autorizações Legislativas da Lei do Orçamento, 1982, 23 e segs.), após realçar que se não podia, sem mais, afirmar que as situações concernentes às autorizações legislativas avulsas e as inseridas na lei orçamental não diferem substancialmente quanto à sua natureza e enquadramento em que deixam o legislador delegado, disse que se poderia 'notar, desde logo, que no tocante às autorizações legislativas em geral a Constituição apenas exige que se delimite a matéria sobre que versam (o seu objecto), bem como os aspectos da respectiva disciplina sobre que o Governo poderá legislar (a sua extensão)'.
Segundo este autor, '[t]rata-se, pois, de condições referentes ainda a uma delimitação «exterior» do âmbito da autorização (isto é, à delimitação das suas fronteiras), e que em bom rigor pouco mais implicam do que uma avaliação da «oportunidade» da legislação: a este respeito é de notar em especial que a Assembleia não tem de fixar quaisquer parâmetros ou orientações básicas materiais a que os diplomas autorizados devam obedecer'. E, em nota, divergindo do posicionamento de Gomes Canotilho no sentido de que haveria um dever (se não jurídico no plano jurídico-constitucional, pelo menos no plano jurídico-institucional) do Parlamento quanto à enunciação, nas leis de autorização legislativa, de um mínimo de directivas ou princípios, Cardoso da Costa sublinha que 'a verdade é que não cabe à doutrina fixar, no tocante ao funcionamento dos diferentes poderes do Estado e à sua co-relação, maiores exigências do que as que resultam do texto e dos princípios constitucionais, pelo que, havendo a Constituição distinguido entre «leis de autorização» e «leis de bases», e representando as primeiras um minus relativamente às segundas, será certamente ilegítimo considerar que o Parlamento abdica do seu papel e responsabilidade (provocando como que uma disfunção no equilíbrio institucional dos poderes) quando, ao conceder uma autorização legislativa, estritamente se limite ao exigido pelo teor do art. 168º'.
António Vitorino (As Autorizações Legislativas Na Constituição Portuguesa, 231 e segs.), por seu turno, escreveu:-
'..................................................
................................................... Em nosso entender a redacção originária da Constituição de 1976 não impunha a necessidade de uma especificação que contivesse tais elementos que se equiparassem à exigência que se verifica noutras Constituições como a italiana, a francesa ou a federal-alemã, de conter na lei de autorização os princípios ou critérios directivos que servirão de elementos orientadores do uso da autorização pelo Governo. na realidade o elemento objecto deve ser entendido como a mera enunciação da matéria sobre a qual a autorização vai incidir, enunciação essa que, contudo, sem prejuízo das garantias de segurança do sistema jurídico, pode ser feita por mera remissão abrangendo mais do que um assunto. A revisão de 1982, ao aditar a exigência de a lei de autorização também referenciar, como já se disse, não só a autonomi[z]a deste elemento face à interpretação conjugada dos elementos objecto e extensão, como reforça[r] o grau de exigência da determinação dos limites da autorização.
Se o objecto constitui o elemento enunciador da matéria sobre que versa a autorização e a extensão especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados, então o sentido constitui já não o limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um autêntico limite interno
à própria autorização, porque crucial para a determinação das linhas gerais substantivas dessas alterações a introduzir naquela dada matéria legislativa.
A referência ao sentido, após 1982, apesar de ter um significado próprio, não pode deixar de se considerar como tímida em relação ao sistema vigente noutros ordenamentos constitucionais.
...................................................
..................................................'
Não se exclui que houvesse quem, no domínio da versão originária da Constituição, perfilhasse o entendimento de que, ao se exigir nas leis de autorização legislativa a indicação do respectivo «objecto», aí havia de se comportar a indicação dos «princípios» rectores do autorizando diploma ou, se se quiser, o «sentido» que havia de revestir o regime jurídico a introduzir por esse diploma.
2.1. Todavia, essa postura repousava, quiçá, mais num «dever-ser» do relacionamento institucional do que, propriamente, numa exigência expressa do concreto regime jurídico-constitucional português, sendo que se deve realçar que nem sempre a doutrina e jurisprudência constitucional estrangeiras servem, sem mais, como reforços desse posicionamento. E não servem, justamente, porque, quanto a elas, é determinante, para além dos respectivos ordenamentos jurídico-constitucionais, a própria vivência ou prática parlamentar.
Vem a talhe de foice citar o que foi dito no Parecer nº 24/81 da Comissão Constitucional (in Pareceres da Comissão Constitucional, 16º vol., 251 a 254).
Efectivamente, aí se escreveu:-
'3. Exige, de facto a Constituição que a autorização para fazer decretos-leis, conferida ao Governo pela Assembleia da República sobre matérias da exclusiva competência desta (ou sejam, as do artigo 167º), defina o objecto e a extensão da mesma autorização (...).
Tal exigência traduz-se na identificação ou individualização da matéria do decreto-lei autorizado dentro das que genérica e amplamente se elencam nas várias alíneas do artigo 167º, de modo a evitar autorizações em branco ou globais.
Não se exige, porém, que a Assembleia adiante, num mínimo, os princípios ou critérios-base da regulamentação jurídica da matéria assim definida. Isso pela simples razão de que, se tal fosse de exigir, não teriam deixado os constituintes de exprimir tal ideia com maior ou menor explicitude, tanto mais que não podiam deixar de ter presente por exemplo o artigo 76º da Constituição italiana..
...................................................
É, aliás, a solução aceite pelos autores e por uma constante praxe parlamentar
(...)...............................................................'
3. De tudo o que se veio de dizer se pode extrair que, com fundamento em parte significativa da doutrina portuguesa, na jurisprudência constitucional lusa e, o que é mais relevante, na prática ou vivência parlamentar, no domínio da versão originária da Lei Fundamental, as leis de autorização legislativa não careciam de indicar o sentido a que deviam obedecer os regimes jurídicos intentados instituir pelos decretos-leis autorizados.
Alcançada esta conclusão, volvamos a atenção para a questão concreta em apreço.
3.1. Por intermédio do Decreto-Lei nº 271-A/75, de 31 de Maio, ponderando-se as dificuldades que o País então atravessava, designadamente tendo em conta o défice a que se assistia na balança de pagamentos, foi resolvido criar uma sobretaxa de importação relativa a mercadorias definitivamente importadas, sobretaxa essa que foi estabelecida em 20% e 30% consoante as espécies de mercadorias (enunciadas nas listas I e II anexas) e que, posteriormente, veio a sofrer alterações (cfr. Decretos-Leis números 300/78, de
29 de Setembro, e 110/79, de 3 de Maio).
No artº 22º da Lei nº 40/81, de 31 de Dezembro, estatuiu-se uma autorização ao Governo para '[p]rorrogar, até 31 de Dezembro de 1982, a aplicação da sobretaxa de importação criada pelo Decreto-Lei n.º 271-A/75, de 31 de Maio, com as alterações nele introduzidas e nos seus anexos, e rever o respectivo regime'.
Munido de tal autorização, editou o Governo, em 1 de Fevereiro, o Decreto-Lei nº 54/83, no qual se consigna preambularmente:-
'Entre os instrumentos adoptados para a protecção da balança de pagamentos conta-se a sobretaxa de importação criada pelo Decreto-Lei n.º 271-A/79, de 31 de Maio, cujo prazo de vigência tem sido sucessivamente prorrogado.
Na situação actual em que o País se encontra não pode deixar de reconhecer-se também o papel relevante que a sobretaxa pode desempenhar, obstando à deterioração da balança comercial portuguesa.
Assim, dada, por um lado, a exigência de reforçar as medidas de protecção da balança de pagamentos e, por outro, a necessidade de assegurar as condições para a recuperação da economia nacional, procede-se no presente diploma à elevação de um dos níveis percentuais da sobretaxa, a título transitório'.
Nesse diploma, constituído por um artigo único e editado no uso da lei de autorização acima referenciada, dispôs-se:-
A sobretaxa de importação criada pelo Decreto-Lei n.º 271-A/75, de 31 de Maio, estabelecida no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 110/79, de 3 de Maio, é fixada em
30%.
3.2. O aresto ora impugnado não descortinou no D.L. nº 54/83 e confrontadamente com o Diploma Básico, nenhum vício a se e, se concluiu pela sua desconformidade constitucional, isso resultou da circunstância de a lei parlamentar no uso da qual ele foi editado estar eivada de carência de um dos requisitos que, na óptica daquele aresto, deve ser apanágio de tal espécie de leis; ou seja, precisamente e no caso, porque tal lei indicando apenas o objecto da autorização - qual fosse o de se rever o regime da sobretaxa de importação - não indicou o «sentido» que deveria ser acatado naquela revisão.
Não se pode acompanhar uma tal perspectiva.
Na realidade, como decorre do que acima se veio de expôr, entende-se que no domínio da versão originária da Constituição a indicação do
«sentido» das leis de autorização legislativa não era um imperativo do positivo ordenamento jurídico-constitucional, mormente se se tiver em conta que, na apreciação da suficiência ou insuficiência dos requisitos a que então haveriam de obedecer tais leis - no que se reporta ao seu «objecto» -, se não pode olvidar o que era corrente na prática parlamentar quanto ao relacionamento institucional com o Governo nessa matéria.
Por outro lado, tendo em atenção o articulado no Decreto-Lei nº
271-A/79 (em face do qual se poderá dizer que o «regime» da sobretaxa por ele instituído praticamente se limita ao estabelecimento dessa imposição sobre determinadas mercadorias importadas definitivamente, independentemente da sua origem, sendo o valor tributável incidente sobre o valor aduaneiro), há que reconhecer que o Parlamento, ao dar autorização para rever tal regime - e não para o revogar, note-se - quase que só poderia comportar aquilo que foi levado a efeito pelo decreto-lei autorizado, isto é, uma alteração do quantitativo dessa sobretaxa.
4. Por fim, cumpre salientar que, de todo em todo, não é lícito - como do acórdão recorrido parece resultar - sustentar que, tendo em conta a revisão constitucional operada em 1982, uma lei de autorização legislativa, editada na vigência da redacção originária da Constituição e que não continha uma definição de um requisito que, nessa versão, não era exigível, se tornou, com aquela revisão, supervenientemente inconstitucional.
III
Termos em que se concede provimento ao recurso, em consequência se revogando, no que à questão de constitucionalidade concerne, a decisão impugnada, a fim de a mesma ser reformada em consonância com o juízo ora efectuado.
Lisboa, 14 de Maio de 1997 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca (com a declaração de voto junta) DECLARAÇÃO DE VOTO
I. Como bem regista o acórdão, reconhece-se nele haver 'quem, no domínio da versão originária da Constituição, perfilhasse o entendimento de que, ao se exigir nas leis de autorização legislativa a indicação do respectivo
«objecto», aí havia de se comportar a indicação dos «princípios» rectores do autorizando diploma ou, se se quiser, o «sentido» que havia de revestir o regime jurídico a introduzir por esse diploma', conquanto se adiante depois que, 'com fundamento em parte significativa da doutrina portuguesa, na jurisprudência constitucional lusa e, o que é mais relevante, na prática ou vivência parlamentar, no domínio da versão originária da Lei Fundamental, as leis de autorização legislativa não careciam de indicar o sentido a que deviam obedecer os regimes jurídicos intentados instituir pelos decretos-leis autorizados'.
Sem avançar para uma divergência frontal da decisão do acórdão, parece-me, contudo, que devia deixar expresso - e é o que agora faço - que a minha inclinação vai para aquele referido entendimento, a que aderiu, aliás, o acórdão recorrido, na parte em que recusou a aplicação da norma do artigo 22º, alínea d), da Lei nº 40/81, de 31 de Dezembro (e, por 'inconstitucionalidade derivada', do Decreto-Lei nº 54/83, de 1 de Fevereiro), por violação do artigo
168º, nº 1, da Constituição, na sua redacção originária (quanto à ideia expressa no acórdão recorrido de inconstitucionalidade superveniente, concordo que 'não é lícito', como se diz no acórdão, sustentar tal ideia).
Com efeito, na articulação do sistema de Governo, uma articulação triangular protagonizada por 3 órgãos (Presidente da República, Assembleia da República e Governo) 'ligados entre si por uma complexa teia de dependências e de poderes e contra-poderes recíprocos' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, pág. 213), o que a revisão constitucional de 1982 fez foi clarificar e acentuar o papel da Assembleia da República, pois o Governo nunca deixou, e também não deixa agora, de precisar da Assembleia para obter legislação num vasto conjunto de matérias distribuídas pelas várias alíneas do artigo 167º (redacção originária).
O alcance dado naquela revisão ao regime das autorizações, a um tempo aperfeiçoando-o e clarificando-o, não envolveu verdadeiramente um aditamento àquele nº 1 do artigo 168º, antes um esclarecimento do âmbito do objecto das autorizações, explicitado agora com o sentido que delas deve constar, que, no entanto, devia já considerar-se englobado no objecto.
Gomes Canotilho, embora aceitando que a 'CRP, ao contrário de outros ordenamentos, não exigia expressamente a determinação dos princípios que haviam de orientar o governo na emanação das leis delegadas', tal não impedia que a Assembleia da República 'pudesse e devesse enunciar nas leis de delegação um mínimo de directivas ou princípios' (sublinhado nosso; Direito Constitucional,
3ª ed. 1983, pág. 637).
É, aliás, a sensibilidade que se colhe da consulta dos trabalhos parlamentares, aquando da primeira revisão constitucional (revelando-se no acórdão o cuidado de dar notícia desses trabalhos), sendo de destacar a posição do deputado Almeida Santos, para quem 'a indicação do sentido dos decretos-leis autorizados poderia ser interpretada correctamente na mera referência ao objecto'. Portanto, mera explicitação clarificadora do que já constava da redacção originária do texto constitucional (nº 1 do artigo 168º) e a que se poderia chegar facilmente com uma 'interpretação correcta', talqualmente se exprimiu o deputado Almeida Santos.
II. Em todo o caso, o entendimento que, em tese, acho preferível, podendo eventualmente projectar-se nas variadas leis de autorização emitidas pela Assembleia da República no quadro da redacção originária da Constituição, tem o risco de tocar a validade de uma ou outra dessas leis e esse é um juízo de inconstitucionalidade que poderá ferir a segurança jurídica, antes se impondo que se mantenham no ordenamento jurídico como leis constitucionalmente válidas leis de autorização com mais de quinze anos depois de aprovadas, postas em vigor e utilizadas pelo Governo, ainda que em desrespeito à exigência do enunciado do seu 'sentido'.
Só por isto é que entendi não votar vencido.
Luís Nunes de Almeida