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Processo nº 204/94
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A., funcionário da Direcção-Geral das Alfândegas, identificado nos autos, impugnou contenciosamente o despacho do Secretário de Estado do Orçamento, de 18 de Agosto de 1983, que confirmou a sua exclusão de concurso para provimento de vagas de primeiro verificador do pessoal aduaneiro técnico superior daquele serviço, arguindo vícios de forma e de violação de lei e, no que ora interessa, 'violação de lei de fundo, por vício no pressuposto de direito, se se suportar [aquele despacho] no artigo 85º, nº 1, do Decreto-Lei nº
252-A/82, de 27 de Junho, pois este preceito é orgânica e materialmente inconstitucional'.
Apresentado o recurso à autoridade recorrida, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 256-A/77, de 17 de Junho, esta remeteu-o ao Supremo Tribunal Administrativo (STA), após ter sido avocado o processo de acordo com o nº 4 do mesmo preceito.
Após ocorrências várias - a instância foi, nomeadamente, suspensa, por acórdão de 6 de Março de 1986 (fls. 54 e segs.) - a 1ª Secção do STA, em subsecção, por acórdão de 19 de Março de 1992 (fls. 108 e segs.) negou provimento ao recurso, afastando as invocadas inconstitucionalidades.
Com o assim decidido não se conformou o interessado que, oportunamente, recorreu para o Pleno da Secção, retomando, além do mais, as questões de inconstitucionalidade que, em sua tese, afectam aquela norma do artigo 85º, nº 1.
O Pleno da 1ª Secção do STA, por acórdão de 14 de Dezembro de 1993 (fls. 143 e segs.), manteve o acórdão recorrido, negando provimento ao recurso.
2.- Deste aresto interpôs o interessado recurso para o Tribunal Constitucional, dado se ter mantido, segundo alega, a aplicação da norma constante do citado artigo 85º, nº 1 - o que fez ao abrigo do artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Para o recorrente, a norma sofre de inconstitucionalidade orgânica - 'por ofensa aos artigos 115º, 167º, m), primeira parte, e 280º, nº 1, da Constituição, versão originária, em leitura conjugada' - e material - por ofensa aos artigos 13º, 115º, 280º, nº 1, da Constituição, versão originária, associadamente com o 'regime' do Decreto-Lei nº 171/82, de 10 de Maio'.
Recebido o recurso, alegou o recorrente e contra-alegou o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que, além do mais, suscitou a questão prévia da não admissibilidade, por não se verificarem os pressupostos exigidos pela alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
Foram os autos aos vistos da questão prévia por entender o relator não ser o recurso de conhecer, no que não logrou maioria.
Assim, operou-se mudança de relator para esse específico efeito e o Tribunal, pelo acórdão nº 327/95, considerou, maioritariamente, deverem os autos prosseguir sua normal tramitação para conhecimento do objecto do recurso.
Correram-se os vistos quanto à questão de fundo, cumprindo apreciar e decidir.
II
1.- O Decreto-Lei nº 252-A/82, de 28 de Junho, reestruturou a Direcção-Geral das Alfândegas, com particular incidência ao nível da organização de serviços, simplificação de métodos e processos de trabalho, aplicação de novas técnicas de gestão e estatuto do pessoal.
O artigo 85º, nº 1, cuja norma constitui o objecto do presente recurso de constitucionalidade, integra-se sob a epígrafe 'Efeitos de reprovação nas provas selectivas', na Secção V - 'Selecção' - do Capítulo III - 'Do pessoal' - do diploma.
Depois de o preceito imediatamente anterior ter disposto sobre admissão dos candidatos às provas de selecção e aos cursos de formação, diz-nos o nº 1 deste artigo 85º:
'Os candidatos reprovados nas provas referidas no nº 1 do artigo anterior e nos cursos previstos no nº 2 desse artigo só poderão ser admitidos a novas provas selectivas para a mesma categoria ou cargo decorrido o prazo de 1 ano sobre a data da última prova'.
Considera o recorrente enfermar esta norma de inconstitucionalidade orgânica e material.
Sem razão.
2.1.1.- A norma do artigo 85º, nº 1, é organicamente inconstitucional - diz-se - na medida em que o diploma que a encerra versa matéria do 'regime e
âmbito da função pública' que, ao abrigo da alínea m) do artigo 167º da Constituição da República (CR), na redacção originária, vigente à data da sua edição [hoje, a alínea v) do nº 1 do artigo 168º fala de 'bases do regime e
âmbito da função pública'], era da exclusiva competência da Assembleia da República.
Ora, observa-se, o mencionado texto legal foi emanado pelo Governo, no exercício da sua competência legislativa própria, ou seja, sem credencial parlamentar, sendo que o legislador se terá inspirado no artigo 18º, nº 1, do Decreto-Lei nº49 397, de 24 de Novembro de 1969 - texto que introduziu um conjunto de providências relativas à simplificação das formalidades necessárias para o recrutamento e investidura dos serviços do Estado - que o Decreto-Lei nº 171/82, de 10 de Maio, ao fixar de novo os princípios gerais informadores do recrutamento e selecção de pessoal dos quadros dos serviços e organismos da Administração Central, revogou [alínea c) do artigo 26º]. Diploma este emanado no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 60º da Lei nº 40/81, de 31 de Dezembro.
2.1.2.- Entende-se não carecer o Governo de autorização legislativa, uma vez que os objectivos prosseguidos, de 'simples readaptação dos serviços às novas exigências do seu funcionamento', não brigam com o regime da função pública, como tão pouco a norma impugnada contraria os princípios gerais estabelecidos pelo Decreto-Lei nº 171/82, de 10 de Maio, então em vigor, em matéria de recrutamento e selecção do pessoal.
A norma sindicanda estabelece as consequências de reprovação de candidatos em provas selectivas, mesmo que resultantes de faltas injustificadas, quanto à sua admissão a novas provas para a mesma categoria, excluindo-os durante um ano a partir da data da última prova.
Trata-se - como, de resto, se observou no STA - de uma regra que penaliza os que se revelarem menos capazes para preenchimento de um lugar de acesso com a sua reprovação nas respectivas provas, e que, assim, procura obter uma melhoria dos serviços pela selecção dos agentes mais qualificados. Mas, como também o Supremo sublinhou, não colide com os princípios gerais fixados pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 171/82 e que são a necessidade de concurso para o recrutamento e selecção e que este seja feito em igualdade de condições e de oportunidades para todos os candidatos, com divulgação dos métodos e provas de selecção a utilizar e dos respectivos programas e sistemas de classificação, aplicando-se métodos e critérios objectivos de avaliação e direito a recurso.
Ora, à data da publicação do Decreto-Lei nº 171/82, vigorava, ainda, a redacção inicial do artigo 168º da CR que reportava a reserva legislativa ao 'regime e âmbito da função pública'.
Entendia-se, então, integrar-se nessa competência reservada apenas o 'estatuto geral' da função pública, ou seja, aquilo que 'é comum e geral a todos os funcionários e agentes', aí se compreendendo, designadamente, 'a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e de recrutamento, de complexo de direitos e deveres funcionais que valem, em princípio, para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, favorecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado', já, por sua vez, pertencendo à competência legislativa do Governo a 'concretização' desse estatuto geral, a sua
'complementação, execução e particularização', ou seja, 'quer o desenvolvimento de tais princípios, quer a sua aplicação e adaptação aos sectores que exijam um regime particular específico ou até excepcional' (cfr., v.g., os pareceres da Comissão Constitucional nºs. 22/79 e 12/82, publicados nos Pareceres da Comissão Constitucional, volºs. 9º, pág. 48, e 19º, pág. 120, respectivamente).
Este entendimento veio a ser o perfilhado na revisão constitucional de 1982 - e, porventura, reforçado - pronunciando-se a jurisprudência deste Tribunal no sentido de caber em exclusivo à Assembleia da República 'a definição das grandes linhas que hão-de inspirar a regulamentação legal da função pública e demarcar o âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico', competindo depois ao Governo, estabelecido o quadro dos princípios básicos fundamentais dessa regulamentação, desenvolvê-los, concretizá-los e mesmo particularizá-los, em diplomas de espectro mais ou menos amplo, consoante o exigir a especificidade das situações a contemplar, princípios esses que constituirão justamente o parâmetro e o limite desse desenvolvimento (cfr., por todos, o acórdão nº 142/85, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1985, como expressão de orientação jurisprudencial posteriormente reiterado, como atesta o recente acórdão nº 36/96, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 3 de maio de
1996).
A esta luz, a norma do nº 1 do citado artigo 85º não estatui de modo a invadir a reserva da competência parlamentar, na medida em que, pressupondo a exigência de concurso - que combate a discricionariedade administrativa nos domínios do recrutamento e selecção do pessoal - inscreve-se, ainda, basicamente, em área adjectiva: o que está em causa é, por um lado, o direito a um procedimento justo de recrutamento (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra,
1993, pág. 265), e, por outro lado, a qualidade e o conteúdo profissionais, a admissão a concurso temporariamente preterida, independentemente da sua directa motivação, que pode ser vária, não bule com aqueles princípios básicos orientadores da regulamentação legal da função pública (é, de certo modo, o que se passa com a exigência de determinadas habilitações literárias, o que este Tribunal tem entendido não ser matéria de lei formal ou de decreto-lei autorizado - cfr., v.g., os acórdãos nºs. 157/92, 340/92 e 209/94, publicados no Diário da República, II Série, de 2 de Setembro e 17 de Novembro de 1992 e 13 de Julho de 1994, respectivamente).
2.2.1.- Para o recorrente, ainda a referida norma do artigo 85º, nº 1, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CR, na medida em que sujeita os funcionários aduaneiros a tratamento discriminatório e desigual relativamente aos demais funcionários dos diferentes serviços, organismos e institutos públicos a que se aplica o Decreto-Lei nº 171/82, a quem não é vedada a admissão a concursos com base em anterior reprovação.
Inexiste - sempre na óptica do recorrente - fundamento material bastante para semelhante diferenciação de tratamento, sendo certo que o princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, baseado na fórmula 'dar tratamento igual ao que é igual e tratamento desigual ao que é desigual', proíbe discriminações ou tratamentos arbitrários ou injustificados.
2.2.2.- Também neste ponto o STA se afastou da tese do recorrente, pois, em seu entender, a norma em causa visa assegurar a qualificação profissional dos funcionários dos serviços aduaneiros considerando a especificidade destes, sem embargo do respeito devido aos princípios gerais aplicáveis a todas as situações. Ao exigir que situações iguais tenham igualdade de tratamento, o princípio da igualdade reclama, também, visto de outra face, que situações diferenciadas tenham o correspondente tratamento específico.
Tanto assim, mais se pondera, que o Decreto-Lei nº
171/82, depois de, no artigo 3º, estabelecer os 'princípios gerais a observar' no recrutamento e selecção do pessoal, faz depender a admissão a concurso, no artigo 5º, de os candidatos satisfazerem não só os requisitos gerais para o provimento em funções públicas, como também os 'requisitos especiais definidos legalmente, para provimento nos lugares cujas vagas se pretendam preencher', prescrevendo o artigo 16º, como princípio geral de selecção de pessoal, que as formas, os métodos e o conteúdo das provas de selecção referentes a cada categoria se definirão com base no respectivo conteúdo funcional e nas exigências relativas a habilitações literárias e qualificações profissionais -
regime este que posteriormente e na sua essência se manteve: cfr. Decreto-Lei nº 44/84, de 3 de Fevereiro (artigos 4º, 24º, nº 1 e 30º) e Decreto-Lei nº
498/88, de 30 de Dezembro (artigos 5º, 23º e 25º).
Concorda-se com a tese expendida pelo Supremo: não só a norma sindicada se mostra em consonância com os próprios princípios gerais de selecção, como não é convocável ofensa ao princípio da igualdade, pois inexiste discriminação relativamente aos funcionários de outros serviços, mas interesse dos serviços aduaneiros na qualificação profissional mais exigente do seu pessoal.
Nesta perspectiva, não é constitucionalmente censurável a iniciativa do legislador: justificando-se materialmente uma situação de 'diferenciação' - tal como quando se exigem certas habilitações literárias para admissão a concurso - não há violação do princípio constitucional da igualdade. Como resulta da jurisprudência reiterada deste Tribunal, o princípio da igualdade obriga a que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento mas apenas a discriminação arbitrária e irrazoável. Por outras palavras, aquele princípio proibe as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante, prosseguindo uma igualdade material, que não meramente formal (cfr., por todos, entre os mais recentes, o acórdão nº 523/95, publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Novembro de 1995).
Assim, não só a norma sindicada se mostra em consonância com os próprios princípios gerais de selecção, como não é convocável ofensa ao princípio da igualdade, pois não há discriminação relativamente aos funcionários de outros serviços mas, como já se observou, interesse da Administração (serviços aduaneiros), inerente à qualificação profissional específica do seu pessoal.
De resto, não se deixará de observar que a norma questionada constitui expressão de uma prática legislativa frequente - independentemente, como é óbvio, de qualquer valoração jurídico-constitucional.
A título de exemplo, cite-se o caso do artigo 61º, nº 2, do Decreto-Lei nº
378/87, de 11 de Dezembro, diploma conhecido por 'Lei Orgânica das Secretarias Judiciais e Estatuto dos Funcionários de Justiça'. Aí se dispõe, quanto aos candidatos a ingresso nas carreiras de oficial de justiça:
'Os candidatos excluídos nos testes públicos podem ser admitidos, por uma só vez, a novo processo de ingresso no quadro nunca antes de dois anos após a publicação da lista dos candidatos aprovados.'
3.- Sucintamente, são estes os fundamentos que conduzem
à improcedência da tese do recorrente.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido quanto à questão da constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Maio de 1997 Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa