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Proc. nº 233/96
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. T...-COMPANHIA DE SEGUROS,SA intentou, no Tribunal Cível da Comarca do Porto, acção de condenação com processo ordinário contra EMPRESA T....,SA e J. A., DESPACHANTE OFICIAL, LDA, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de
5.379.162$00, devida pelo desalfandegamento de mercadorias destinadas à primeira Ré, desalfandegamento esse que estava a cargo da Segunda Ré, no exercício da sua actividade de despachante, e ao abrigo da qual esta celebrara com a Autora um contrato de seguro-caução global para o mesmo desalfandegamento. A Ré Empresa T... defendeu-se por excepção e por impugnação, nesta via tendo suscitado a questão da inconstitucionalidade do artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, ao abrigo do qual fora celebrado o referido contrato de seguro-caução, na interpretação dada pela Autora – isto é, no sentido de esta gozar do direito de regresso contra a Ré Empresa T.... –, já que assim se violaria a sua «capacidade civil».
2. Decorrida a audiência de julgamento, a Empresa T...., nas respectivas alegações de direito escritas, invocou, além do mais, a incompetência do tribunal, por, no seu entender, a matéria em causa estar atribuída aos tribunais fiscais. Segundo esta Ré, estar-se-ia perante uma relação creditória com base numa dívida de imposto, e tratar-se-ia de uma sub-rogação fiscal, pelo que o tribunal cível estaria a «violar o disposto nos artºs 211º, 213º e 214º da CRP». Suscitou ainda a questão da desconformidade do Decreto-Lei nº 289/88 com o Regulamento CEE nº 1031/88, pelo que, sendo este um acto supranacional, prevalecendo sobre o direito interno, deveria o juiz nacional desaplicar o direito interno, ou seja, o citado Decreto-Lei, ou, em caso de dúvida, fazer operar o reenvio prejudicial.
3. Por sentença de 12 de Maio de 1994, o tribunal cível declarou procedente a acção quanto à Ré J.A.,Lda, e improcedente quanto à Ré Empresa T.... Dessa decisão recorreu a Autora para o Tribunal da Relação do Porto. Com esse recurso, subiu também agravo anteriormente interposto do despacho saneador pela mesma Empresa T.... Nas suas alegações de agravo, assim como nas de apelada, esta Ré suscitou a questão da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 289/88 «pois, sem qualquer autorização da A.R. dispõe sobre o sistema fiscal... nem refere qualquer lei de autorização, nem refere qualquer lei de base... e contraria direito supranacional;» e, ainda, porquanto «a matéria decretada por tal Dec. Lei não se inclui nas funções legislativas do governo previstas na alínea a) do nº 1 do art. 201º C.R., mas sim nas exclusivas competências da A. R.». Por acórdão de 30 de Janeiro de 1995, a Relação julgou a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida. Quanto à questão da incompetência do tribunal levantada pela Empresa T...., entendeu-se nesse aresto que, não tendo a Ré arguido tal excepção antes de ser proferido o despacho saneador, no qual o tribunal foi declarado competente, designadamente em razão da matéria, e não sendo abrangida essa questão no recurso interposto do mesmo despacho, estava, assim, e por força do disposto no artigo 102º, nº 2, do Código de Processo Civil, vedado o conhecimento de tal questão em sede de recurso. Quanto à suscitada questão de inconstitucionalidade, considerou-se que a mesma não se verificava, porquanto o Decreto-Lei nº 289/88 não criou qualquer imposto, apenas disciplinando um aspecto particular do sistema de cobrança dos impostos nele aludidos, e tal matéria «naquilo que não afecte as garantias dos contribuintes, está fora da reserva parlamentar da lei fiscal». O aresto concluiu ainda não se verificar qualquer desconformidade entre o Decreto-Lei nº 289/88 e o Regulamento nº 1031/88, não havendo lugar também ao reenvio prejudicial previsto no artigo 177º do Tratado de Roma. Por fim, no tocante ao agravo interposto pela Ré Empresa T...., o mesmo foi julgado improcedente.
4. Inconformada, aquela Ré interpôs recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas suas alegações, continuou a arguir as questões de inconstitucionalidade suscitadas, concluindo nos seguintes termos:
[...] se verifique incompetência absoluta do tribunal comum para julgar a invocada sub rogação fiscal pelo que deveria a Ré Ter sido absolvida da instância, [...] I. Violação do artigo 211º da C.R.
[...]
5. Ao tribunal cível, sob pena de se violar a Constituição da República, falece competência para julgar sobre 'direito de regresso de natureza tributária', i.
é., sobre a sub rogação fiscal sub judice, o que é do conhecimento oficioso e deverá ser declarado.
[...] II. Violação do art. 168º da C.R. Inexistência de sub-rogação fiscal
[...]
28. Assim, o Dec. Lei nº 289/88 é inconstitucional pelo que as suas disposições são inaplicáveis, o que deverá ser declarado pois viola os arts. 26º nº 1, 58º nº 1, 81º alínea e) 2ª parte, 106º, 168º nº 1 e alínea i) 2ª parte, e 201º da C.R.
[...] III. Regulamento (CEE) nº 1031/88 Direito supranacional Ofensa da C.R.
[...]
48. O Dec. Lei nº 289/88 contraria o regulamento nº 1031/88 (direito supranacional) pelo que não pode ser aplicado, sob pena de ser violado, além do mais, o art. 8º nº 1 da Constituição da República.
[...]
60. O douto acórdão em apreciação violou, além do mais, os arts. 211º e 214º C.R., artº 1º C.P.T. e o art. 101º e 494º nº 1 alínea f) do C.P.C., 106º, 201º nº 1, alínea b) 2ª parte, 168º, nº 1, alínea i) da C.R. e 19º, 111º do Cód. Proc. Trib., e artº 8º nº 1 da C.R. e art. 2 nº 1 alínea b) do Regulamento nº
1031/88. Por acórdão de 8 de Fevereiro de 1996, o STJ negou a revista. Nesse aresto pode ler-se: Ora, a propósito, o que a Relação decidiu é que a questão da incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais comuns se encontra precludida já que o que a recorrente sustenta é ser a acção da competência de um tribunal especial e ser certo que a acção foi intentada perante tribunal de comarca, não tendo esta questão sido arguida (nem suscitada oficiosamente) até ao momento de ser proferido o despacho saneador, nos termos do disposto no artº 102º nº 2 do Cód. do Procº Civil. A recorrente não impugna esta circunstância da preclusão. E, na verdade, mostram-se certos aqueles fundamentos do douto Acórdão sob recurso e correcta a aplicação do invocado preceito.
[...] O que está em causa é o preceituado no artº 2º do Dec. lei nº 289/88, de 24 de Agosto, onde se determina a sub-rogação da entidade garante em todos os direitos das Alfândegas contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições. Isto é assim por ter sido esta disposição legal a que justificou a condenação da recorrente. Ora, o Dec. Lei nº 289/88, em especial o seu artº 2º nº 2, não criou qualquer novo imposto, não determina a sua incidência, nem a taxa, nem benefícios fiscais, nem garantias dos contribuintes (artº 106º, nº 2, da Constituição da República). Por consequência, a matéria do Dec. Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, nomeadamente do seu artº 2º, nº 2, não cabe dentro da reserva relativa da Assembleia da República a que se refere o artº 168º, nº 1, i), da Constituição da República. Trata-se de matéria relativa à cobrança de um imposto a qual não cabe nem no artº 106º nº 2, nem no artº 168º, nº 1, i), da Constituição da República. Por isso, trata--se de matéria que pode ser objecto de Decreto-Lei, como o foi, ao abrigo do disposto no artº 201º, nº 1 a), da Constituição da República.
É desta decisão que vem interposto pela recorrente Empresa T....,SA, o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, para apreciação das normas «que integram o Dec. Lei nº
289/88, por violação do artº 168º, nº 1, b), c), d) e i), bem como a competência que o tribunal se arrogou, violando o artº 211º, nº 1, al. b) da CRP». E, já neste Tribunal, a recorrente, nas suas alegações, sustentou que o Decreto-Lei nº 289/88 viola o artigo 211º da Constituição, porquanto «ao Tribunal cível, [...] falece competência para julgar sobre 'direito de regresso de natureza tributária'; o artigo 106º da Constituição, porque «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos cuja cobrança se não faça nas formas prescritas na lei»; o artigo 201º da Lei Fundamental, porque «o Dec. Lei nº 289/88: a) foi feito pelo Governo nos termos da alínea a) do art. 201º C.R., i. é., sem qualquer autorização da A. R.; [...]»; também o seu artigo 168º , porque «é da exclusiva competência da A. R. o sistema fiscal assim ficando o cidadão protegido contra abusivas exacções fiscais que atingiriam ilegitimamente a sua propriedade e embaraceriam a sua propriedade», e o Decreto-Lei nº 289/88
«decreta que a entidade garante que pagou os impostos e/ou taxas goza do direito de regresso e goza de 'todos os direitos da alfândega relativos às quantias pagas, acompanhados de todos os seus privilégios' (nº 2 do art. 2º), i. é.,
'conserva as garantias, previlégios e processo de cobrança e vencerá juros pela taxa fixada na lei civil, se o subrogado o requerer'»; por fim, viola o artigo
8º, nº 1, da Constituição, porquanto o Decreto-Lei nº 289/88 «contraria o regulamento nº 1.031/88 (direito supranacional) pelo que não pode ser aplicado». Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. Quanto à primeira questão suscitada pela recorrente, ou seja, a competência do tribunal cível, o que no acórdão recorrido se entendeu foi que a recorrente, não tendo suscitado aquela questão até à prolação do despacho saneador, nos termos do artigo 102º, nº 2, do Código de Processo Civil, deixou passar o momento oportuno para tanto, estando tal questão precludida em sede de recurso. Não aplicou, pois, aquele aresto qualquer norma atributiva de competência, mas tão-só a norma do artigo 102º, nº 2, do Código de Processo Civil; todavia, esta norma, na interpretação dada, não é impugnada pela recorrente, já que não suscita, em relação a ela, qualquer questão de inconstitucionalidade. Aliás, a recorrente não identifica qual a norma que reputa de violadora do preceito constitucional referido, antes assacando a pretensa violação à própria decisão, não se verificando assim o pressuposto essencial deste tipo de recurso, pois que o mesmo, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, e no artigo 281º, nº1, alínea a), da Constituição, só poderia ter por objecto a apreciação da constitucionalidade de norma ou normas jurídicas concretamente aplicadas na decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade a recorrente houvesse suscitado durante o processo. Não se pode, pois, conhecer do recurso, nessa parte.
6. No tocante à questão da eventual inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 289/88, a recorrente enuncia como normas violadas as alíneas b), c), d) e i), do nº 1 do artigo 168º (que correspondem, na actual versão do texto constitucional, resultante da LC nº 1/97, de 20 de Setembro, ao artigo 165º, alíneas b), c), d) e i)), com a seguinte redacção:
1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
[...] b) Direitos, liberdades e garantias; c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal; d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo;
[...] i) Criação de impostos e sistema fiscal; Estas disposições hão-de ser necessariamente lidas em conjunto com o artigo 106º
(correspondente ao actual artigo 103º), o qual, sob a epígrafe Sistema fiscal, determina, no seu nº 2, o seguinte: Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.
7. Ora, nas suas alegações, a recorrente entende que o Decreto-Lei nº 289/88, além do mais: a) criou um novo sujeito passivo fiscal: o banco ou a seguradora emitentes da fiança bancária ou do seguro caução, b) à total revelia e com total desconhecimento e eventualmente contra vontade daquele que importa mercadorias (o importador) impôs-lhe uma relação contratual com a entidade garante, entidade garante que exclusivamente contratou, in casu, com a sociedade do despachante oficial e jamais com o importador c) cria sanções fiscais
[...]
(...) O Dec. Lei nº 289/88: a) foi feito pelo Governo nos termos da alínea a) do art. 201º C.R., i. é., sem qualquer autorização da A.R.; todavia, b) Inova àcerca e versa sobre o sistema fiscal criando abusivas exacções, violando o direito do contribuinte à segurança jurídica c) cria, define a forma e os termos da caução global e restringe tal caução a prestar por um banco ou por uma seguradora, contrariamente aos artigos 255º e
282º do Cod. Proc. Tributário; d) define que os direitos e demais imposições compreendem quaisquer impostos ou taxas; e) define a responsabilidade solidária do despachante e do importador, i. é., cria sujeitos passivos fiscais e solidários, pelo pagamento dos impostos; f) define a entidade garante como sujeito passivo, i. é., cria um novo sujeito passivo do imposto e rege sobre o 'instituto da substituição fiscal total'; E conclui, assim, que a matéria versada pelo Decreto-Lei nº 289/88 «não se inclui nas funções legislativas do Governo previstas na alínea a) do nº 1 do art. 201 C.R. [actual 198º] mas sim nas exclusivas competências da A.R.».
8. Só que, como resulta da decisão recorrida, esta não aplicou todas as normas do Decreto-Lei nº 289/88, mas apenas a norma constante do artigo 2º, nº 2, desse diploma legal. E, até porque estamos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal apenas pode conhecer as questões de constitucionalidade de norma ou normas que tenham sido concretamente aplicadas na decisão recorrida, não podendo, pois, in casu, fiscalizar a constitucionalidade do diploma na sua globalidade. A norma em causa dispõe: O despachante oficial ou a entidade garante gozam do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições, ficando sub-rogados em todos os direitos das alfândegas relativos às quantias pagas, acompanhados de todos os seus privilégios, nomeadamente do direito de retenção sobre as mercadorias e documentos objecto das declarações apresentadas. Claramente, esta norma não se reporta a matérias, nomeadamente, de direitos, liberdades e garantias, ou dos foros disciplinar ou penal, não estando em causa nem dispondo sobre as mesmas. Resta, pois, como eventual disposição constitucional violada, e que importa apreciar, a alínea i) do artigo 168º (actual artigo 165º).
9. O Decreto-Lei nº 289/88 visou rever o processo de desalfandegamento, criando uma caução global para esse efeito, como forma de simplificar o sistema de prestação de garantia e pagamento dos direitos e demais imposições alfandegárias
(cf. artigo 1º). Sendo tal caução prestada por meio de fiança bancária ou de seguro-caução (artigo 3º), determinou-se ainda, no nº 2 do seu artigo 2º, o direito de regresso do despachante oficial ou da entidade garante «contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições». Os restantes artigos do diploma em causa (num total de quinze) regulamentam a forma e montante da caução, respectivos reforços ou reduções, formas e prazos de pagamento dos direitos e demais imposições, situações de incumprimento e ainda adaptações a observar no caso de os despachantes serem sociedades ou outras entidades habilitadas a despachar. O que está em causa nos presentes autos - revertendo ao artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 289/88 -, é uma questão de relações creditícias entre a entidade garante (prestadora da caução) e os restantes sujeitos, concretamente o despachante oficial e o sujeito receptor das mercadorias a desalfandegar - e que será o sujeito passivo da relação de imposto («direitos aduaneiros e outras imposições de efeito equivalente, bem como quaisquer outros impostos ou taxas cuja cobrança esteja a cargo das alfândegas», nos termos do nº 2 do artigo 1º), cujo pagamento aquela caução pretende garantir; e, mais concretamente ainda, o direito de regresso dessa entidade garante contra os restantes sujeitos, tal como determinado por aquele artigo 2º, nº 2. Manifestamente, e ao contrário do que pretende a recorrente, não estamos aqui perante uma questão fiscal, a não ser de forma acessória. A norma em causa não cria qualquer imposto, limitando-se o Decreto-Lei em causa, de resto, a regulamentar uma forma de garantia do pagamento de impostos pré-existentes (os direitos aduaneiros referidos), visando ainda facilitar e desanuviar a libertação das mercadorias alfandegadas.
10. A norma impugnada também não cria novos sujeitos fiscais, nem abrange na caução quaisquer impostos ou taxas. A considerar-se uma questão fiscal, a mesma apenas terá que ver com a cobrança dos impostos em causa - uma vez que aquela caução se destina a garantir o respectivo pagamento, sendo executada no caso de falta de cumprimento pelo sujeito passivo -, nada determinando, muito menos inovando, no tocante ao regime, incidência, taxa, forma ou prazo de pagamento do imposto. Ora, quanto a essa questão - cobrança dos impostos -, já este Tribunal teve ocasião de afirmar que a mesma não é objecto de reserva de lei. Como se pode ler no Acórdão nº 205/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., págs. 209 e segs.): Constitui, assim, matéria da exclusiva competência da Assembleia da República não só a criação de cada imposto mas também a determinação dos respectivos elementos essenciais enunciados no nº 2 do artigo 106º. Pelo contrário, já não cabe na reserva relativa de competência da Assembleia da República, pelo que se enquadra no domínio da competência legislativa concorrencial daquele órgão de soberania e do Governo, tudo o que, em matéria fiscal, excede a determinação daqueles elementos essenciais (v. g., as regras relativas à liquidação e cobrança). Cabe referir, mais recentemente, o Acórdão nº 268/97 (Diário da República, 2ª série, de 22 de Maio de 1997), no qual, após se reconhecer que «apenas uma lei parlamentar (ou um decreto-lei parlamentarmente autorizado) pode «criar impostos», determinar-lhes a incidência e a taxa, e estabelecer os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes», se afirma que tal «lei (formal) já não tem, porém, que versar sobre o lançamento, a liquidação e a cobrança dos impostos: tais matérias podem, com efeito, ser reguladas por decreto-lei
(reserva de lei material) [cfr., entre outros, os citados Acórdãos nºs 205/87 e
461/87]». Não se verifica, assim, a pretendida inconstitucionalidade orgânica da norma constante do nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 289/88.
11. Por fim, resta apreciar a questão da inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 289/88. Considera a recorrente que tal norma, «à total revelia e com total desconhecimento e eventualmente contra vontade daquele que importa mercadorias
(o importador) impôs-lhe uma relação contratual com a entidade garante, entidade garante que exclusivamente contratou, in casu, com a sociedade de despachante oficial e jamais com o importador», o que seria, no seu entender, uma violação da sua capacidade civil, e, como tal, constituiria ofensa dos artigos 26º, nº 1,
58º, nº 1 e 81º, alínea e), segunda parte, da Constituição. Entende, assim: O Decreto Lei 289/88 impede a Ré de pagar directamente à alfândega os seus impostos, Obriga o importador a pagar os seus impostos através do despachante ou da sociedade de despachantes cobradores ou mandatários da alfândega, E Obriga a que o importador lhe torne a pagar os mesmos impostos só porque o despachante ou a sociedade de despachantes seus (do fisco) cobradores ou mandatários não lhe fizeram entrega do que receberam dos importadores!!! A recorrente insurge-se contra o facto de lhe ser, no seu entender, «imposta» uma relação contratual na qual não interveio, desde logo porque, segundo diz, está impedida de pagar directamente à alfândega os seus impostos, tendo que o fazer através de despachante; e sendo apenas esta a entidade que contratou com a entidade garante a caução prevista no Decreto-Lei nº 289/88, entidades essas em relação às quais a recorrente é terceira, tal imposição ofende e viola a sua capacidade civil. Por outro lado, insurge-se ainda com o facto de, por via dessa «imposição», ser obrigada a pagar duas vezes a mesma quantia, que já entregara ao seu mandatário
– o despachante –, e que este não entregou à Alfândega; mas, aqui, o que a recorrente questiona é um princípio de justiça, no domínio das relações entre o mandante e o seu mandatário.
12. Ressalta claro, quanto à primeira questão, e desde logo, que o problema da capacidade civil suscitada pela recorrente não é a da norma do nº 2 do artigo 2º
- mas sim, a da eventual norma que obrigaria a recorrente a actuar através de despachante, ou seja, na expressão da recorrente, que a impediria de pagar directamente os seus impostos à alfândega. Tal imposição ou impedimento não resulta da norma invocada, nem a recorrente indica qual a norma de onde decorre tal ilação. Aliás, o artigo 13º do Decreto-Lei nº 289/88 refere-se expressamente à hipótese de o despacho ser efectuado pelas «restantes entidades habilitadas a despachar, referidas no artigo 426º da Reforma Aduaneira», a elas estendendo o regime da caução previsto pelo diploma, nos seus artigo 1º a 11º. E dispõe o artigo 426º daquela Reforma Aduaneira (Decreto-Lei nº 46311, de 27 de Abril de 1965): A solicitação de qualquer modalidade de despacho de mercadorias, bem como a promoção de quaisquer documentos que lhe digam respeito, compete exclusivamente:
1º Aos donos ou consignatários das mercadorias, em relação a estas, quer se apresentem pessoalmente, quer se façam representar por seus bastantes procuradores, independentemente de estes actuarem ocasionalmente ou a título profissional;
2º Aos empregados dos donos ou consignatários das mercadorias, para este efeito denominados «despachantes privativos», em relação aos despachos em que podem intervir as entidades de que são empregados;
3º Aos agentes aduaneiros das empresas de caminhos de ferro e de navegação aérea que mantenham carreiras regulares com o País, em relação a mercadorias pertencentes às mesmas empresas e nos casos mencionados no artigo seguinte;
4º Aos despachantes oficiais, em relação a todos os despachos, salvo o disposto no § único do artigo 430º. Não tem, assim, a recorrente razão, pois, desde logo, não só não está impedida de pagar directamente os seus impostos à alfândega, como tal faculdade – de efectuar o despacho ou desalfandegamento das suas mercadorias – lhe é expressamente cometida por lei.
13. Prosseguindo na análise das questões suscitadas pela recorrente, impõe-se, antes de mais, para a respectiva compreensão, uma descrição do regime jurídico dos despachantes oficiais, bem como do funcionamento do sistema relativo ao despacho aduaneiro, e, nomeadamente, da caução instituída pelo Decreto-Lei nº
289/88. O já transcrito artigo 426º da Reforma Aduaneira distingue várias situações: as dos próprios donos ou consignatários (designadamente, os agentes transitários) das mercadorias, ou respectivos procuradores, que poderão proceder ao seu desalfandegamento, mas só relativamente a essas mercadorias de que são os destinatários; a dos respectivos comissários (empregados), designados por despachantes privativos, aos quais se aplica idêntica restrição; e ainda a dos denominados agentes aduaneiros das empresas de caminho de ferro e navegação aérea que mantenham carreiras regulares com o País, estes apenas em relação a mercadorias pertencentes às empresas referidas no nº 3º do artigo, e nos casos mencionados no artigo 427º; finalmente, a dos despachantes oficiais. A situação dos despachantes oficiais, que são aqueles que exercem profissionalmente a actividade do despacho aduaneiro, podendo actuar como tal, sem procuração e sem vínculo laboral às empresas donas das mercadorias, encontra-se prevista no nº 4º do mesmo artigo. Trata-se de uma classe profissional particularmente habilitada a exercer aquela actividade (note-se que, aliás, o exercício da actividade consistente em fazer declarações aduaneiras em nome e por conta de outrem por forma habitual e profissional se encontrava exclusivamente reservada aos despachantes oficiais, e só em 1992, através do Decreto-Lei nº 89/92, de 21 de Maio, se alargou o exercício de tal actividade a qualquer pessoa, em cumprimento do Regulamento (CEE) nº 3632/85, de
12 de Dezembro). E é assim que a qualidade de despachante é rodeada de determinadas condições e requisitos quer de acesso quer de exercício da actividade respectiva (como a prestação de exame de provas públicas – artigo
450º da reforma –, obtenção de alvará e prestação de caução – artigos 453º e
454º –, inscrição na respectiva Câmara, por exemplo, para além de regras técnicas e deontológicas específicas, constantes dos artigos 455º e seguintes da Reforma e do Estatuto da Câmara dos Despachantes Oficiais – estatuto hoje anexo ao Decreto-Lei nº 173/98, de 26 de Junho, que revogou o aprovado pelo Decreto-Lei nº 450/80, de 7 de Outubro). Por fim, dispõe o artigo 461º da Reforma que a «profissão de despachante oficial regular-se-á, em tudo o que não estiver previsto nesta reforma, pelas disposições da lei geral sobre mandato e prestação de serviços no exercício das profissões liberais». Concluindo, os despachantes oficiais são entidades legalmente habilitadas a intervir perante as alfândegas, no despacho aduaneiro, em nome próprio e por conta de outrem, sem necessidade de procuração, ou seja, exercendo o mandato sem representação. Os despachantes oficiais exercem essa actividade de forma profissional, com a faculdade de exercerem mandato sem representação. Quanto a este aspecto, escreve Antunes Varela, em Anotação ao Acórdão de 11 de Março de 1992, do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (publicado em Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125º, págs. 55-56): Quanto aos despachantes oficiais, permite pelo contrário o nº 4º do artigo 426º a sua intervenção «em relação a todos os despachos» como quem diz independentemente da exibição de procuração (geral ou especial) com poderes de representação (do dono ou consignatário da mercadoria perante a Alfândega).
[...] Afirma-se, além disso, nos Estatutos da Câmara dos Despachantes Oficiais (art.
38º), que «o despachante oficial é um técnico especializado em matéria aduaneira, procedendo às formalidades necessárias ao desembaraço, por conta de outrem, de mercadorias e meios de transporte». E também esta referência, ampla e indiscriminada, ao desembaraço alfandegário, por conta de outrem, e não em representação de outrem, de mercadorias e meios de transporte, proveniente de quem conhece na prática da vida a diferença essencial entre o agir com procuração e o actuar sem ela, não pode naturalmente deixar de reportar-se, quer ao mandato com poderes de representação, quer ao mandato sem esses poderes.
14. A mesma referência a esta actuação por conta de outrem se encontra no nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 289/88: No âmbito da utilização do sistema de caução global para desalfandegamento o despachante oficial age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis. Como se constata, esta norma estabelece a responsabilidade solidária da entidade despachante e do seu mandante (a entidade dona das mercadorias), no âmbito do mandato sem representação, perante as alfândegas, pelo pagamento dos direitos aduaneiros e demais imposições.
É assim que o nº 2, norma em causa e já transcrita, determina, por sua vez, em consequência lógica do disposto naquele nº 1, a sub-rogação do «despachante ou da entidade garante» nos direitos da alfândega. Esta sub-rogação verifica-se tanto no caso do despachante pagar aqueles direitos para a sua mandante, caso em que será ele a sub-rogar-se nos direitos da alfândega, como no de a entidade garante assumir o pagamento em falta, por via da caução que prestou, como sucedeu, aliás, no caso dos autos. Ora, o que resulta do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 289/88 é a extensão de responsabilidade pelos impostos também ao despachante. É que, sempre, em primeira linha, seria a dona das mercadorias responsável pelos impostos devidos pelo desalfandegamento das respectivas mercadorias. Assim, por via do estabelecimento daquela responsabilidade solidária, procura o legislador alargar as garantias do pagamento daqueles impostos, permitindo simultaneamente uma maior celeridade e simplificação do processo de desalfandegamento (cfr. o preâmbulo do diploma). E é nessa responsabilidade solidária que radica a sub-rogação prevista pelo nº 2 do mesmo artigo 2º, consistindo na faculdade de a entidade garante (por via da caução prevista pelo artigo 1º do mesmo diploma) ou o próprio despachante, consoante os casos, «aceder» à posição da Alfândega como credora, e bem assim no direito de regresso relativamente às quantias pagas. No que se vê a transposição, afinal, das regras do direito civil atinentes à responsabilidade solidária. Regras por via das quais, por outro lado, sempre se verificará o direito de regresso da entidade pagante, tal como, da mesma forma, sempre caberá
à recorrente a possibilidade de recurso, nomeadamente, ao exercício do direito de regresso ( e mesmo a eventual procedimento criminal) contra o despachante que, tendo recebido dela as quantias destinadas ao pagamento, o não tenha efectuado. Ou seja, o despachante faltoso sempre incorrerá em responsabilidade civil ( e, eventualmente, também criminal) perante a sua mandante, dona das mercadorias. Não procedem, assim, as considerações da recorrente quanto à «injustiça» de ter de pagar duas vezes, e alegadas violações por tal via do seu direito ao bom nome e ao trabalho. É que sempre é ela, como dona das mercadorias, a responsável perante a Alfândega, não se extinguindo a sua responsabilidade perante esta pelo facto de ter pago as quantias em causa ao despachante; e, por outro, terá sempre direito à restituição das quantias entregues, por actuação das regras civis do mandato (cfr. artigos 1157º, 1161º, e), e 1164º do Código Civil) e da responsabilidade solidária (cfr. artigos 512º, 519º e 524º).
15. Assim, de acordo com as regras da solidariedade passiva – que é atribuída pelo nº 1 do artigo 2º –, e citando Antunes Varela (Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., pág.807), «o devedor solidário que houver satisfeito o direito do credor, [...] goza do direito de regresso contra cada um dos condevedores pela quota respectiva», sendo tal direito «assim, um verdadeiro direito de compensação concedido ex vi legis ao condevedor que satisfaz o direito do credor». Ora, o nº 2 do artigo 2º reconhece, desde logo, esse direito de regresso, exactamente em consequência da regra da solidariedade passiva atribuída pelo nº 1 ao despachante e à dona das mercadorias. Quanto ao mecanismo também previsto da sub-rogação, já a sua natureza é diversa da do direito de regresso, como também o faz notar Antunes Varela (ob. cit., págs. 813-814, e vol. II, 6º ed., págs. 332 e segs.), tratando-se de «uma modificação subjectiva da obrigação», uma «transferência de créditos... cujo fulcro reside no cumprimento» por um terceiro. E, quanto a esta figura, prevê o artigo 592º do Código Civil que «o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento», aqui se descrevendo a sub-rogação legal, à qual se reverte aquela prevista afinal pelo nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 289/88. Estando o despachante garantido pela caução prestada nos termos previstos no Decreto-Lei nº 289/88, e sendo esta executada para o pagamento das obrigações devidas à Alfândega, decorre assim daquelas regras gerais a atribuição daquela sub-rogação à entidade garante do despachante. Por sua vez, a sub-rogação do próprio despachante naqueles direitos da Alfândega, também prevista na mesma norma, nem sequer levanta qualquer questão. Em conclusão, o artigo 2º, nº 2, do apontado Decreto-Lei mais não faz do que retomar ou transpor as regras civis que regulamentam as matérias da sub-rogação e do direito de regresso. E fá-lo tendo em conta ainda o especial estatuto dos despachantes e requisitos de exercício dessa actividade profissional a eles inerente, já enunciados (nos quais se inscrevem a prestação de caução, nomeadamente). Por outro lado, esta norma, como resulta do exposto, limita-se assim a estabelecer as consequências da regra da solidariedade passiva atribuída pelo seu nº 1, regra essa que, efectivamente, constitui um desvio ao regime geral do mandato sem representação, estabelecido nos artigos 1180º a 1184º do Código Civil. Só que, como vimos, a norma constante deste nº 1 do mesmo artigo 2º não foi impugnada pela recorrente, nem aplicada pela decisão recorrida. Improcedem, assim, as questões suscitadas pela recorrente, como este Tribunal já decidiu no Acórdão nº 504/98 (ainda inédito).
16. Por fim, quanto à hipotética desconformidade do Decreto-Lei nº 289/88 com o Regulamento nº 1031/88 CEE, consubstanciada, segundo a recorrente, na violação pelo citado Decreto-Lei da alínea b) do nº 1 do artigo 2º daquele Regulamento, afirmou-se no acórdão recorrido que a mesma não se verificava porquanto:
[...] a Relação, dentro da sua competência que este Tribunal não pode sindicar, firmou, mediante justa ilação, que a primeira ré contratou com João Almeida na qualidade deste de sócio gerente da segunda ré, a sociedade «J. A. -Despachante Oficial,Lda». Temos, pois, que está acertado que a primeira ré mandatou a segunda (mandato sem representação) para fazer a declaração aduaneira. Assim, não cabe a aplicação da al. b) do citado artº 2º do Regulamento em apreço. O que resulta, até, do corpo do dito artº 2º do Regulamento invocado e da sua alínea a), face ao facto que a Relação acertou, é a responsabilização da recorrente. Nem se mostra que o Dec. Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, na parte que está em causa, isto é, em relação à recorrente, contraria o aludido Regulamento, nem se mostra violado o disposto no artº 8º nº 1 da Constituição da República. Pois bem, como esta secção vem de forma uniforme entendendo (cfr., entre outros, os Acórdãos nº 277/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., págs. 859, nº 405/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., págs. 609, e nº
354/97, Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1997), e se pode ler no Acórdão nº 405/93:
[...] as questões de constitucionalidade que ao Tribunal «cumpre conhecer ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, são apenas aquelas em que a norma arguida de inconstitucional viola, directa ou imediatamente, uma norma ou princípio constitucional, e não também os casos de inconsti-tucionalidade indirecta (ou seja, aqueles casos em que a violação da lei fundamental ocorre porque, em primeira linha, existe uma violação de um preceito de lei infraconstitucional)».
Pois bem: no caso vertente, a eventual violação do artigo 8º da Constituição da República (do seu nº 1, como pretende a recorrente, ou do seu nº 3) só poderia decorrer, de forma indirecta, da violação do regulamento comunitário pela norma impugnada. Não se pode, pois, tomar conhecimento do recurso nesta parte.
III - DECISÃO
17. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 7 de Outubro de 1998 Luis Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa
(com a declaração de que, no tocante ao último ponto tratado no Acórdão – no seu nº 16 -, o votei com a mais alargada fundamentação que expendi em 'o Tribunal Constitucional Português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias', publicado na colectânea Ab uno ad omes – Nos 75 anos da Coimbra Editora, pp.
1370 s.).