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Proc. nº 483/97 ACÓRDÃO Nº 70/99
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M... intentou, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, acção declarativa de condenação sob a forma sumária, contra V... e MC..., pedindo a denúncia do contrato de arrendamento celebrado entre autora e réus e a correspondente desocupação do imóvel arrendado. Para tanto, invocou necessidade urgente do andar arrendado, nos termos do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano.
O Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, por sentença de 20 de Dezembro de 1996, absolveu os réus do pedido, recusando a aplicação da norma contida no artigo 107º, nº 1, alínea b), em virtude de a julgar organicamente inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição.
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade da sentença de 20 de Dezembro de 1996, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº
1, alínea a), da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 107º, nº1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano.
M... apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: Sendo discutível de iure constituendo a solução adoptada cremos não poderem restar dúvidas que a alínea c) do nº 2 da Lei nº 42/80 atribui ao Governo poderes para proceder à alteração em causa. Cremos mesmo, por considerarmos não ser socialmente útil, a existência de tal restrição ao exercício do direito de denúncia que não enfermaria a alteração em causa de qualquer inconstitucionalidade formal ou material se pura e simplesmente tivesse sido eliminada.
Por seu turno, o Ministério Público alegou, tirando as seguintes conclusões:
1º - A definição do 'tempo de arrendatário', susceptível de obstar ao exercício do direito de denúncia pelo senhorio da relação locatícia, diz respeiro ao regime do arrendamento urbano, situando-se, consequentemente, no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
2º - Não pode interpretar-se o sentido da norma constante do artigo 2º, alínea c) da lei de autorização legislativa (Lei nº 42/90, de 10 de Agosto) como facultando ao legislador credenciado a possibilidade de regular, em termos inovatórios, a matéria de denúncia do arrendamento para habitação do senhorio, nomeadamente alargando substancialmente o 'tempo de arrendatário' exigido como obstáculo ao exercício de tal direito.
3º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
Por último, os recorridos contra-alegaram, tendo concluído do seguinte modo:
1ª - O contrato de arrendamento para habitação foi celebrado em 1 de Maio de
1971, pelo que à data da propositura da acção (23 de Abril de 1996), já haviam decorrido mais de vinte anos de permanência dos Réus no arrendado.
2ª - A Assembleia da República autorizou o Governo a legislar sobre o regime geral do arrendamento urbano (Lei nº42/90, de 10/8).
3ª - A lei de autorização legislativa estabeleceu directrizes, nomeadamente a
'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário' e não autorizou o legislador, em termos inovatórios, a legislar sobre matéria de denúncia do arrendamento para habitação do senhorio.
4ª - A inovação ínsita na alínea b) do nº 1 do art. 107º do RAU extravasa os quadros da lei de autorização legislativa, padecendo assim do vício de inconstitucionalidade orgânica, por ofensa ao estatuído pelo art. 168º nº 1 alínea h) da CRP [actual art. 165º nº 1 alínea h) após a quarta revisão constitucional].
5ª - Deverá, pois, ser confirmado o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. A norma impugnada tem a seguinte redacção: Artigo 107º Limitações
1. O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do nº 1 do artigo 69º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias:
(...) a. Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade.
(...)
Tal preceito procedeu ao alargamento do prazo que limita o exercício do direito de denúncia do arrendamento do senhorio para sua própria habitação de vinte para trinta anos.
O Tribunal Cível de Lisboa considerou que tal norma é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição, uma vez que a lei de autorização legislativa não legitimava a alteração operada.
5. Nos termos do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição, o regime geral de arrendamento urbano integra a reserva relativa de competência da Assembleia da República.
O Tribunal Constitucional tem entendido que esse regime compreende
'as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção' (cf. Acórdãos nºs 352/92 – inédito - e
311/93 – D.R., II Série, de 22 de Julho de 1993).
A definição dos pressupostos condicionantes do exercício pelo senhorio, do direito de denúncia do arrendamento para habitação do andar locado respeita a aspectos significativos e substantivos do regime legal do contrato, pelo que se encontra compreendida no âmbito da reserva de competência legislativa relativa da Assembleia da República.
Nessa medida, a alteração do prazo de arrendamento (de vinte para trinta anos) susceptível de impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio teria necessariamente de estar legitimado pela lei de autorização legislativa (Lei nº42/90, de 10 de Agosto).
6. A única norma da lei de autorização legislativa relevante para a decisão da questão de constitucionalidade em apreciação no presente recurso é a contida na alínea c) do artigo 2º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto. Tal preceito estabelece como directriz do decreto-lei autorizado a 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 311/93, considerou que 'a autorização comporta o entendimento de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto, se revelaram socialmente imprestáveis, designadamente porque se subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes, sem que para tanto houvesse fundamento'.
Ora, o regime anteriormente vigente (prazo de vinte anos para impedir a denúncia do arrendamento pelo senhorio) não subvertia princípios basilares do ordenamento jurídico, nem representava uma solução normativa arbitrária. Com efeito, tal solução, consagrada desde 1979, representava uma opção legislativa fundada na ideia de que uma permanência inquestionavelmente duradoura (vinte anos) no local arrendado deveria ser bastante para obstar à denúncia da relação locatícia, fazendo prevalecer o interesse do inquilino sobre o interesse do senhorio.
Tal solução, discutível em sede de opções de política legislativa, não se configurava como 'anómala', 'socialmente imprestável' ou promotora de um claro desequilíbrio ou de uma injusta composição dos interesses em causa, pelo que a sua alteração não estava abrangida pela autorização legislativa contida no artigo 2º, alínea c), da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto.
Nessa medida, o Governo não se encontrava habilitado para proceder à alteração do prazo previsto no artigo 107º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano.
7. Conclui-se, pois, que a norma contida no artigo 107º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, na medida em que consagra uma solução não abrangida pelo artigo 2º, alínea c), da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto (lei de autorização legislativa), é organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar organicamente inconstitucional a norma contida no artigo 107º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, confirmando consequentemente o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida. Lisboa, 3 de Fevereiro de 1999- Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto).
Voto de vencido
Não acompanhei a maioria por ter entendido que, ao editar a norma que agora é julgada inconstitucional, o Governo não excedeu os termos do que lhe era consentido pela lei de autorização legislativa, designadamente na alínea c) do artigo 2º da Lei nº42/90, de 10 de Agosto.
No Acórdão nº 311/93, a respeito daquela alínea entendeu o Tribunal que o Governo ficou 'credenciado para eliminar as regras que, visando, embora, a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis ...' (o itálico consta do original – cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 24º, pág. 222). E entendeu que, ao manter a regra de condicionar fortemente e, nalguns casos mesmo, impedir a denúncia do contrato pelo senhorio, o legislador governamental não era merecedor de censura (v. ibidem pág. 223). Está implícito nesta apreciação que o Tribunal tinha presentes as inovações introduzidas no regime até então vigente, nomeadamente a elevação de 20 para 30 anos do tempo de duração do arrendamento cujo contrato poderia ser objecto de denúncia.
Não está em causa a interpretação do referido Acórdão. O que releva é ter-se admitido então que a inovação continuava a preservar uma regra socialmente útil que tutelava a posição do arrendatário, e que essa regra não foi eliminada.
Continuo a aderir a esse entendimento. O legislador, ao ponderar os interesses conflituantes em jogo – o do arrendatário desde logo, mas também o do senhorio cuja utilidade social, em face dos requisitos do artigo
69º, não pode ser afastado liminarmente – consignou um período mais longo de manutenção do contrato. Com isto não mais fez do que retirar algum peso à tutela do direito do arrendatário, deixando de pé os aspectos substantivos e essenciais que justificam essa tutela. Não eliminando a regra, adoptou o seu conteúdo ao sentido socialmente útil na dimensão que considerara passar a ser mais adequada, o que lhe era certamente consentido por caber nos poderes de eliminação que lhe tinham sido concedidos.
Com efeito, para que a denúncia seja admissível, não basta que o arrendamento subsista há menos de 30 anos. Nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU, a denúncia não poderá ocorrer se o arrendatário tiver 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontrar na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofrer de incapacidade total para o trabalho.
Tutela da posição do arrendatário, em termos
'socialmente úteis', mais forte do que esta é difícil de exigir, tanto mais que a desocupação de locais arrendados para habitação pode ser deferida quando ocorram 'razões sociais imperiosas' (artigo 102º, para o qual também o Acórdão nº 311/93 chamou a atenção neste contexto – ibidem pág. 223).
Em síntese, mantendo os pressupostos materiais e substantivos da denúncia bem como os pressupostos materiais e substantivos da posição contrária do arrendatário, a solução legal é equilibrada. Mais do que isso, permite uma decisão mais próxima da justiça material do caso, pois a simples permanência no tempo de um contrato por si só nada diz quanto a valores socialmente úteis carecidos de adequada tutela – salvo porventura o princípio da confiança, que tem sem dúvida menos peso na ponderação a que terá procedido o legislador do que o direito à habitação. Assim sendo, a norma constante do artigo 107º, alínea b) do RAU, cabe dentro dos parâmetros da autorização legislativa
Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto). Declaração de voto Votei vencido pelas razões que se seguem:
1. A meu ver, o Governo dispunha de autorização legislativa bastante para, no artigo 107º, n.º 1, alínea b) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), alargar de
20 para 30 anos o tempo de permanência do arrendatário, como tal, no local arrendado, para efeitos de obstar ao exercício pelo senhorio do direito de denúncia para habitação própria. Essa autorização resulta, a meu ver, não só da própria alínea c), do artigo 2º da Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, tal como foi entendida pelo Tribunal Constitucional quando procedeu à fiscalização abstracta da constitucionalidade desse diploma legal, como da alínea b) do mesmo artigo, correctamente interpretada (isto é, com o único sentido que lhe confere utilidade, e que, como tal, é de preferir pelo intérprete).
2. Entendo, na verdade, que o artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU (norma que, aliás, não foi considerada organicamente inconstitucional por este Tribunal no Acórdão n.º 259/98, publicado no Diário da República, II série, de 7 de Novembro de 1998), respeita a directriz constante da alínea c) do citado artigo 2º, de
'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário', com o sentido que para ela foi já precisado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 311/93 (publicado no Diário da República, n.º 170, de 22 de Julho de 1993) - isto é, o 'de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material.' Ficou nessa ocasião claro, portanto, que não se divisa nessa alínea c) uma prescrição de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime anterior do arrendamento urbano que fossem favoráveis ao arrendatários. Um tal entendimento, restritivo e divergente do seguido anteriormente pelo Tribunal (e antes defendido apenas em declarações de voto de vencido), não deve, a meu ver, ser adoptado, por desconsiderar a limitação dessa alínea c) às regras 'socialmente úteis' e conduzir a uma inevitável contradição do legislador, por exemplo, entre as alíneas b) e c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 (uma vez que a directriz de facilitação do funcionamento da cessação do contrato, ainda que através da mera simplificação das suas regras substantivas, teria de se considerar violadora da referido imperativo legal de manutenção das concretas regras favoráveis ao arrendatário). A meu ver, o Tribunal Constitucional deverá apenas averiguar se a preservação das regras do arrendamento urbano, efectuada pelo legislador do RAU, se filiou, segundo a ponderação desse legislador, num juízo relativo à 'utilidade social' de tais regras. Já não creio que o Tribunal deva substituir-se ao legislador, para, a propósito do controlo da constitucionalidade orgânica do RAU, refazer
(ou desfazer) aquela consideração de prestabilidade ou 'utilidade social' – deste modo, porventura, também paulatinamente 'desfazendo' as alterações que o legislador entendeu conveniente introduzir nas regras do regime do arrendamento urbano.
3. Não penso, pois, que da alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 qualquer obstáculo ao artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU. Entendo, antes que a emanação de tal norma estava credenciada por lei de autorização legislativa nos termos, quer da alínea c), quer da alínea b) do artigo 2º da Lei n.º 42/90
(assim, também, as declarações de voto que juntei aos Acórdãos n.º 426/98 e
427/98 - o primeiro publicado no Diário da República, II série, de 9 de Dezembro de 1998). Segundo esta alínea b), o legislador ficou habilitado a efectuar a
'simplificação dos regimes relativos à formação, às vicissitudes e à cessação do respectivo contrato, de modo a facilitar o funcionamento desse instituto'. Ora, esta disposição não pode, em meu entender, ter um alcance meramente processual, devendo dizer respeito a aspectos verdadeiramente substantivos do regime da cessação do contrato de arrendamento. É que apenas para estes existe necessidade de autorização legislativa (como se salientou no n.º 2 do referido Acórdão n.º
311/93), sendo o entendimento referido o único que confere utilidade ao preceito. Isto, sendo certo que, no presente caso, o alargamento do prazo de permanência no locado como arrendatário, de 20 para 30 anos, nem sequer representou uma verdadeira eliminação de um obstáculo ao funcionamento da cessação do contrato, mas, apenas, uma sua limitação, susceptível de ser reconduzida à autorização para 'facilitar o funcionamento' do instituto da cessação do contrato. Com estes fundamentos, não teria julgado a norma em apreço inconstitucional. José Manuel Cardoso da Costa (vencido, aderindo, ao essencial, às declarações de voto dos Exmºs. Conselheiros Vítor Nunes de Almeida e Paulo Mota Pinto).