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Proc. nº 677/97 Cons. Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A... e sua mulher, M..., na acção de demarcação que intentaram, na comarca de Pombal, contra AP.. e a mulher deste, ML..., foram aos autos lavrar termo de desistência da instância. A Juiz mandou, então, notificar os réus para, nos termos do artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil, dizerem se se opunham à desistência. Ao tomarem conhecimento deste despacho, os autores apressaram-se a arguir a nulidade do mesmo, tendo, para fundamentar esta arguição, alegado que a acção não tinha sido contestada, pois que os réus não tinham posto em causa o direito de propriedade de qualquer das partes, mas apenas a linha divisória apresentada por eles, autores, por isso que estes tinham o direito de 'desistir irrestritamente da acção'.
No mesmo requerimento, disseram os autores que o referido despacho 'faz interpretação e (ou) aplicação inconstitucional do referido artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil, por violação do disposto nos artigos 20º, nº 1,
205º, nº 2, e 207º, todos da Constituição da República Portuguesa e do princípio constitucional segundo o qual é direito de todo o cidadão de ver resolvido e solucionado um conflito de interesses que a decisão em causa deixou em aberto'.
A Juiz, por despacho de 11 de Março de 1997, desatendeu a arguição de nulidade; e, face à oposição manifestada pelos réus, não admitiu a pretendida desistência da instância.
2. É deste despacho (de 11 de Março de 1997) que vem o presente recurso, interposto pelos autores ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
A Juiz, que começou por não admitir o recurso, veio a admiti-lo na sequência da reclamação apresentada pelos recorrentes.
Neste tribunal, o relator elaborou exposição para não se conhecer do recurso, com fundamento em que a inconstitucionalidade do artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil apenas tinha sido suscitada no respectivo requerimento de interposição. Tendo, no entanto, verificado, face à resposta dos recorrentes, que tal fundamento era inexacto (como, de resto, decorre do que atrás se disse), mandou que os autos prosseguissem para alegações.
Apenas alegaram os recorrentes, tendo formulado conclusões. Nestas, com interesse para a decisão do recurso, disseram o seguinte:
(a). Destarte, recusando aos recorrentes o exercício do direito de desistência da instância duma acção não contestada mas concedendo aos recorridos o direito de accionarem uma faculdade legal que inexiste na sua esfera jurídica, por ausência de contestação quanto ao fundo da acção, a decisão ora posta em causa violou o princípio da igualdade de armas consagrado nos nºs 1 e 5 do art. 32º da Constituição, bem como o disposto no artigo 20º, nº 1, 1ª parte, da Constituição da República Portuguesa, e 205º, nº 2, ainda do diploma fundamental, com referência ao artigo 207º, também da CRP, o princípio da legalidade processual civil e aquele outro segundo o qual é direito de todo e qualquer cidadão ver apreciado e decidido, conformemente à lei, um conflito de interesses que a decisão em causa deixou em aberto.
(b). Por isso, a norma do artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil anterior foi interpretada e aplicada com o condicionalismo e alcance vindos de evidenciar, assim a afectando de inconstitucionalidade material.
(c). Termos em que deve tal norma ser julgada inconstitucional, quando interpretada e aplicada em termos de se admitir que os RR não contestantes duma acção de demarcação possam opor-se triunfantente à celebração de termo de desistência da acção por banda dos AA.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. O objecto do recurso. Objecto do recurso é uma certa interpretação do artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil, que, na redacção anterior às alterações de 1995 (Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro) e de 1996 (Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro), dispunha que 'a desistência da instância depende da aceitação do réu, desde que seja requerida depois do oferecimento da contestação'.
Essa interpretação, nos dizeres dos recorrentes, é aquela que conduz a 'admitir que os RR não contestantes duma acção de demarcação possam opor-se triunfantemente à celebração de termo de desistência da acção por banda dos AA'.
Tomando à letra esta afirmação dos recorrentes, ter-se-ia de concluir que o despacho recorrido não aplicou o mencionado normativo com a interpretação que acaba de indicar-se.
De facto, de um lado, os réus não se opuseram 'triunfantemente à celebração do termo de desistência da acção por banda dos autores'. Eles apenas se opuseram triunfantemente a que a desistência da instância constante do termo, que os autores fizeram lavrar nos autos, fosse julgada admissível. E, por outro lado, segundo o despacho recorrido, a acção de demarcação intentada pelos autores, na fase em que se encontrava - a saber: na fase destinada a 'decidir qual a linha divisória que deve ser definida', que se seguiu a uma primeira fase, em que os réus não contestaram a necessidade de demarcação - 'não pode deixar de ser vista como contestada'.
É que - ponderou-se nesse despacho -, nesta fase da acção, 'autores e réus vieram apresentar a linha divisória que, em cada uma das suas respectivas versões, deve ser definida, após o que ambas as partes contestaram a linha divisória apresentada pela outra parte, nos termos permitidos pelo artigo 1058º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Civil'.
Por conseguinte, se houvesse de tomar-se à letra a referida afirmação, o Tribunal haveria de concluir que, faltando um pressuposto do recurso interposto
(o pressuposto da aplicação pela decisão recorrida da norma com a interpretação que os recorrentes questionaram sub specie constitutionis), não podia ele conhecer do seu objecto.
Simplesmente, como decorre de todo o discurso que sobre a questão eles fizeram ao longo do processo, o que, verdadeiramente, os autores questionam é a constitucionalidade de uma interpretação do artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil, que conduza a considerar contestada (para o efeito de os réus deverem ser ouvidos para dizerem se aceitam a desistência da instância feita pelos autores) uma acção de demarcação na qual antes de feita a desistência, aqueles apenas contestaram a linha divisória indicada por estes, e não a necessidade mesma de demarcação. Ora, com este sentido, foi o referido artigo 296º, nº 1, aplicado pelo despacho impugnado, embora tão-só implicitamente.
É certo que se poderia ser tentado a pensar que o entendimento segundo o qual a acção de demarcação de que emergiu o recurso era uma acção em que tinha sido oferecida a contestação, tendo-o o juiz extraído da interpretação de normas de direito ordinário diferentes da do artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil - extraiu-a, designadamente, da interpretação do artigo 1058º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção anterior a 1996, que dispunha que os interessados na acção podem 'indicar os pontos por onde deve passar a linha divisória' [alínea a)] e contestar a indicação feita por outros interessados, designadamente por ser diferente da feita por si [alínea b)]; e acrescentava que, 'havendo uma única indicação não contestada, procede-se à diligência de harmonia com ela' [alínea c)], mas, se tiver sido apresentada contestação ou indicadas linhas divisórias diferentes, 'seguem-se, sem mais articulados, os termos do processo ordinário ou sumário, conforme o valor' [alínea d)] - é insindicável neste recurso, que apenas tem por objecto a mencionada interpretação do referido artigo 296º, nº 1.
Sem razão, porém.
É que o que aqui está em causa é saber se é ou não compatível com a Constituição uma interpretação do referido artigo 296º, nº 1, como a que foi feita pelo despacho recorrido, que considerou que a contestação aí referida é também aquela que, numa acção de demarcação, for dirigida a contestar a indicação feita pelos autores dos pontos por onde deve passar a linha divisória.
Há, então, que aferir da conformidade de uma tal interpretação com a Constituição.
5. A questão de constitucionalidade. Há que dizer, desde já, que a norma aqui sub iudico, interpretada como foi pela decisão recorrida, não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
5.1. Não viola o princípio da igualdade de armas, porque ouvir os réus sobre a desistência da instância, por parte dos autores, num momento em que aqueles, tendo sido chamados a juízo para se defenderem, apresentaram contestação, nada tem de irrazoável ou arbitrário, nem coloca os autores em qualquer situação de inferioridade processual. A exigência de aceitação da desistência pelos réus é, antes, necessária para que os seus direitos fiquem devidamente acautelados. De facto, se existem dúvidas quanto aos limites dos prédios confinantes, em termos de se tornar necessário o recurso à acção de demarcação ou tombamento (à actio finium regundorum) a fim de - como permite o artigo 1353º do Código Civil
- se proceder à fixação da respectiva linha divisória (ou seja, à determinação das extremas de cada prédio), então, os réus são tão interessados como os autores na obtenção de uma sentença de mérito. Sendo o interesse dos réus idêntico ao dos autores; ocupando ambos a posição de sujeitos da relação processual; e devendo esta reger-se por uma ideia de igualdade; requerida por estes a resolução do conflito de prédios [sobre o alcance desta expressão, cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (Código Civil Anotado, volume III, Coimbra, 1972, página 180)] e discordando os réus do modo como os autores pretendem ver regulamentada a questão dos confins dos mesmos, o razoável é que eles possam opor-se a que a acção termine por desistência da instância: desde logo, porque, se tal se admitisse, o conflito de prédios continuaria em aberto e todo o esforço (maxime, financeiro) que eles tiveram que fazer para se opor à pretensão dos autores teria sido inteiramente em vão. E isso, sim, que os colocava, injustificadamente, numa posição de desfavor. Ora, o princípio da igualdade de armas, a que os recorrentes fazem apelo - princípio que, para o processo civil, decorre do facto de, num Estado de Direito, o processo dever ser equitativo e leal (a due process, a fair process), em que cada uma das partes deve poder expor, em condições que a não desfavoreçam em confronto com a outra parte, as suas razões perante o tribunal [cf. acórdão nº 249/97 (Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997)], e não, como defendem os recorrentes, dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, que rege para o processo penal - apenas recusa distinções de tratamento arbitrárias, irrazoáveis, carecidas de fundamento racional, que conduzam a que uma das partes fique, injustificadamente, colocada em posição de inferioridade processual. Só nesse caso, com efeito, se destrói o equilíbrio postulado pelo dito princípio
[cf. o acórdão nº 649/96 (por publicar)].
5.2. É manifesto que a norma sub iudicio também não viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição, pois que ela não impede os autores de obterem uma decisão proferida por um juiz independente e imparcial; apenas não consente que a acção proposta termine com a prolação de uma pura decisão de forma. Requerida a solução do conflito de prédios e atingida a fase processual em que esse conflito se centrou na determinação dos confins dos mesmos, então, há que definir a linha divisória e dirimir definitivamente o conflito.
5.3. Por último, é evidente que a norma em causa também não viola qualquer outra norma ou princípio constitucional. Designadamente, não viola o artigo 202º, nº
2, da Constituição (correspondente ao anterior artigo 205º, nº 2) - que dispõe que 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos [...] e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados' -, do qual os recorrentes extraem um princípio que denominam por princípio da legalidade processual civil e que identificam com a sujeição dos tribunais à lei.
Pode, é certo, dizer-se, como fazem os recorrentes, que 'inexiste obediência à lei quando o tribunal a quo interpretou ou aplicou de um modo inconstitucional determinada norma jurídica que é pertinente para solucionar o litígio'. Simplesmente, já se viu que a norma sub iudicio - ou seja: o artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil, tal como foi interpretado (e aplicado) pela decisão recorrida - não é inconstitucional. Por isso, não pode dizer-se que 'o tribunal a quo interpretou ou aplicou' esse artigo 296º, nº 2, 'de um modo inconstitucional'. E, assim, o juiz, ao aplicar tal norma, não desobedeceu à lei
(recte, à Constituição).
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide: negar provimento ao recurso. Lisboa, 15 de Julho de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida