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Proc. Nº 610/98 Secção 1ª Rel. Consº Vítor Nunes de Almeida
Acordam no Tribunal Constitucional:
1. - Por Decisão Sumária proferida em 29 de Setembro de
1998 pelo relator do processo nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, foi decidido não tomar conhecimento do recurso interposto para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da mesma Lei, por T....
Inconformada com o decidido vem agora a recorrente reclamar para a conferência, terminando o respectivo requerimento com as conclusões que passam a transcrever-se na íntegra:
'A – A ora Reclamante, contrariamente ao afirmado pelo Exmº Juiz Conselheiro Relator colocou uma questão de constitucionalidade em termos próprios. A questão de constitucionalidade colocada pela ora Reclamante foi a seguinte:
-Aplicação inconstitucional da norma do art. 2187º do C.C., na interpretação que da mesma foi feita pelas instâncias recorridas, por contrariar as normas constitucionais constantes dos arts. 13º e 36º da C.R.P. B – A referida questão de constitucionalidade foi colocada pela Reclamante junto das diversas instâncias recorridas, designadamente, nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa, nas alegações para o STJ e no requerimento de interposição de Recurso para o Tribunal Constitucional. C – A questão de constitucionalidade colocada pela Reclamante pode e deve ser conhecida pelo Tribunal Constitucional, pois tem vindo a ser admitido pela Doutrina e Jurisprudência jusconstitucional que a fiscalização da constitucionalidade atribuida ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, se deve estender à própria decisão inconstitucional do Tribunal a quo, sendo que neste caso não é a própria norma a padecer de inconstitucionalidade mas sim a interpretação ou a aplicação que lhe foi dada pelo Tribunal a quo. D – Segundo, o Exmº Sr. Juiz Relator, uma questão de constitucionalidade em termos próprios é uma questão que coloque 'quem é chamado a decidir perante a necessidade de se pronunciar acerca da validade de uma norma do ponto de vista da sua conformidade com a constituição', ou seja para o Sr. Relator o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de normas. Tal porém não é defendido nem pela Doutrina, nem pela Jurisprudência jusconstitucional. E – Porque a questão de constitucionalidade colocada pela Reclamante pode ser apreciada pelo Tribunal Constitucional e ainda porque tal questão foi colocada perante as várias instâncias recorridas de tal modo que as mesmas tiveram oportunidade de se pronunciar sobre ela, improcede totalmente o argumento do Exmº Sr. Juiz Relator segundo o qual a Reclamante só em sede de resposta aos esclarecimentos por ele solicitados tentou formular uma verdadeira e própria questão de constitucionalidade. F – Não procedem também as críticas que o Exmº Sr. Juiz Conselheiro Relator teceu à resposta da ora reclamante aos esclarecimentos por ele solicitados
(Ponto 5 da decisão sumária). E não procedem porque não é verdade que o Tribunal Constitucional apenas possa apreciar a eventual inconstitucionalidade de uma interpretação normativa levada a cabo pelo Tribunal a quo, por várias ordens de razões:
1º - Os Tribunais, porque não são órgãos legislativos, não podem emitir normas interpretativas, no sentido de tais normas deverem ser utilizadas como regra para outras aplicações;
2º - Os Tribunais limitam-se a aplicar o direito aos casos concretos que são chamados a dirimir, ora para tanto é evidente que procedem à interpretação e à aplicação das normas jurídicas, interpretação essa que nunca poderá ser normativa, pois é uma interpretação que tem em vista um certo e determinado caso concreto e por isso não vincula os demais Tribunais;
3º - Quando o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a eventualidade de uma determinada interpretação de uma norma poder colidir com a Constituição está a pronunciar-se sobre aquela interpretação em concreto e não sobre uma interpretação normativa que o Tribunal a quo emitiu a propósito de um certo e determinado caso concreto. G – O Tribunal Constitucional pode e deve apreciar a questão de constitucionalidade colocada pela Reclamante porque no caso em apreço se verificam os requisitos de que depende o conhecimento de tal questão pelo Tribunal Constitucional. Sendo de salientar que a admissibilidade da possibilidade do Tribunal Constitucional se pronunciar sobre a interpretação e aplicação inconstitucional de uma determinada norma pelo Tribunal a quo é confirmada implicitamente pela própria Lei do Tribunal Constitucional (art.80º, nº3, da Lei nº 28/82), quando dispõe, como uma das consequências possíveis do juízo de inconstitucionalidade na fiscalização concreta, que: 'No caso de o juízo de constitucionalidade ou de legalidade sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação, no processo em causa.' H – Não obsta ao conhecimento da questão de constitucionalidade colocada pela Reclamante, contrariamente ao doutamente alegado pelo Exmº Juiz Conselheiro Relator, a circunstância do STJ ter se pronunciado acerca da questão da aplicação da lei no tempo de modo diverso do que foi perfilhado pela 1ª Instância e pelo Tribunal da Relação, designadamente no sentido de não ser aplicável ao caso dos autos a C.R.P. de 76, porque não era vigente à data da abertura da sucessão. I – Isto porque, o STJ manteve a decisão da Relação nos seus precisos termos, pelo que a decisão que deve ser objecto de sindicância pelo Tribunal Constitucional é a decisão e a fundamentação constante do acórdão da Relação. Na verdade, o STJ, em sede de agravo de 2ª Instância apenas é chamado a aferir de eventuais nulidades que afectem o acórdão recorrido e só se concluir que o acórdão é nulo e, consequentemente, proceder à sua revogação, é que se poderá pronunciar sobre o mérito da causa (nos termos do previsto nos art. 762º, art.
749º e art. 715º nº2 todos do C.P.C.). Consequentemente, e uma vez que o STJ não revogou a decisão da Relação, o que consta do acórdão do STJ a propósito da aplicação da lei no tempo não pode ser considerado em sede de recurso para Tribunal Constitucional. Tanto assim é que o STJ sentiu necessidade de reforçar a fundamentação da Relação a este respeito, acabando mesmo por implicitamente demonstrar que a vontade real do testador não tem que respeitar a Constituição porque é soberana, nos termos do previsto no art. 2187º do C.C. J – Assim sendo, a questão de constitucionalidade colocada pela Reclamante mantém-se por resolver, pois continuamos com uma decisão, a Relação de Lisboa, que interpretou e aplicou inconstitucionalmente o art. 2187º do C.C. K – Do exposto resulta claro, nomeadamente da improcedência dos dois argumentos chave apresentados pelo Exmº Juiz Conselheiro Relator, que o Tribunal Constitucional deve conhecer do Recurso interposto pela ora Reclamante.'
2. - Na identificada decisão procedeu-se à análise do pedido e concluíu-se que o mesmo não reunia os pressupostos necessários para que dele pudesse o Tribunal conhecer, nos termos que passam a transcrever-se:
'1 - T..., veio deduzir incidente de intervenção principal espontânea, no Tribunal de Família de Lisboa, na acção em que os Autores pedem que o Réu preste contas da administração que exerceu de quatro quotas da Sociedade A.., a título de administração dos bens dos bisnetos da Marquesa de V..., alegando, para o efeito, que é bisneta legítima da Marquesa de V... Apreciando a pretensão deduzida com o sentido de a referida D. T... ser admitida a intervir na acção também como Autora, o juiz do 2º Juízo do Tribunal de Família de Lisboa indeferiu o pedido. No despacho de 6 de Novembro de 1996, depois de se referir que 'Hoje em dia já não há distinção legal entre filhos ilegítimos e filhos legítimos por força do Artº 13º da CRP. Porém há que interpretar o testamento nos termos do disposto no Artº 2187º do CC.', entendeu-se que 'a testadora [no caso a Marquesa de V...] ao dispor da metade disponível da sua herança a favor dos bisnetos, filhos legítimos dos seus netos, quis claramente afastar os filhos destes nascidos fora do casamento, sabido como
é que à data existia essa distinção'. Por essa razão, a requerente da intervenção principal não estará abrangida no referido testamento e, assim sendo, não tem interesse na acção igual ao dos autores, como tal não se encontrando em nenhum dos casos previstos no artigo 351º [homólogo do artigo
320º na redacção em vigor] do Código de Processo Civil (cfr. fls.48 do processo). Deste despacho agravou a requerente para a Relação de Lisboa, que confirmou a decisão recorrida. Do acórdão da 2ª instância a requerente agravou, fundamentando o recurso em vício de omissão de pronúncia e peticionando a revogação da anterior decisão, sem sucesso porém, visto que o Supremo Tribunal de Justiça veio negar provimento ao agravo. Finalmente, deste último acórdão, proferido em 17 de Março de 1998, a referida D. T... interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, 'com fundamento na aplicação inconstitucional da norma do art. 2187º do C.C., na interpretação que da mesma foi feita pelo mui douto Acórdão proferido em conferência pelo Supremo Tribunal de Justiça por contrariar as normas constitucionais constantes dos arts. 13º e
36º nº 4 da C.R.P.'. A recorrente foi convidada pelo relator, no Tribunal Constitucional, 'a esclarecer qual a exacta interpretação do artigo 2187º do Código Civil que tem por inconstitucional...'. Na resposta, veio ao processo dizer que era a seguinte a interpretação dessa disposição, que tinha sido adoptada pelas várias instâncias: 'Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á, sempre e só, o que parecer mais ajustado com a vontade real do testador, ainda que essa vontade contrarie normas constitucionais, uma vez que estamos em sede de sucessão voluntária testamentária'. Mais adiante, na resposta, especifica que, nessa interpretação, a vontade real do testador não terá que respeitar 'o constante do art.36, nº 4, da CRP.'.
2. - Já do que sucintamente fica exposto se retirará a ideia de que no presente processo não vem colocada uma questão de constitucionalidade em termos próprios, ou seja, em termos que nas instâncias recorridas, coloquem quem é chamado a decidir perante a necessidade de se pronunciar acerca da validade de uma norma do ponto de vista da sua conformidade com a Constituição.
2.1. - Assim logo nas alegações para a Relação, a recorrente desenvolve os fundamentos do agravo e a respectiva argumentação do ponto de vista do direito aplicável. Nas conclusões da alegação, dirigidas ao despacho da 1ª instância que começou por indeferir o pedido de intervenção principal, concluíu que 'O Tribunal a quo aplicou [sublinhado agora] para interpretar a deixa testamentária da Marquesa de Vale-Flor a lei actual, embora sem sustentar teoricamente a sua posição. Considerou contudo que a aplicação do art. 2187º do C.C. deve prevalecer sobre o art. 13º da CRP, porquanto a vontade real de testador deve ser o objectivo a alcançar na interpretação do testamento'. E de seguida, nesse articulado, continuou a posicionar a questão em sede de apuramento do direito aplicável, sem avançar para a formulação de uma questão de constitucionalidade. Assim, 'A Agravante concorda que a lei aplicável à interpretação da deixa seja a actual, considera contudo que o art. 2187º do C.C. não pode ser aplicado isoladamente, abstraindo totalmente do ordenamento onde está inserido. Assim sendo, tem que se fazer uma interpretação conforme à Constituição do art. 2187º do C.C., e este deve ser aplicado no sentido de na interpretação do testamento se procurar a vontade real do testador dentro dos limites constitucionalmente admissíveis. Ou seja a agravante não considera admissível que a aplicação da lei ordinária gere uma aplicação do direito desconforme à Constituição. Permitir tal era conceder ao mero intérprete o que está vedado ao legislador ordinário.' O Tribunal da Relação conduziu a sua apreciação na linha e de acordo com os termos do que fora alegado, centrando-se sobretudo na análise e apuramento da vontade e do testador. Como nele se lê 'Ora, num tal quadro sócio-histórico
(concepções dominantes na época) e vivencial da própria testadora, parece irredutível que não beneficiaria vindouro bisneto extra-matrimonial, sabido como
é que eram mal aceites, contidas ou reprimidas as uniões ou ligações extra-matrimoniais porque fontes de discórdia familiar, e daí que não instituísse herdeiro um bisneto então dito ilegítimo'. Já noutra vertente, de aplicação do direito à situação de facto, o acórdão mais referiu que 'Não tendo os bisnetos o direito de suceder directamente na herança do bisavô, e querendo esta de imediato beneficiar bisnetos não tem que todos contemplar, e para revelar quem são os escolhidos pode servir-se de qualquer factor que seja clara e inequivocamente definidor.' Terminando, refere: 'Entender que aí a testadora está a praticar antijuridicamente é querer misturar o que não tem que ser, e por outro lado é não reconhecer o direito de delimitação da livre expressão de uma vontade testamentária. Daí que nenhum chamamento possa ter quanto está no art.
13º da Constituição da nova e vigente República, que assim permanece ao largo da questão.'
2.2. - O perfil da argumentação e da decisão não se altera na apreciação do agravo interposto para o Supremo desta decisão. É de estrita interpretação e aplicação do direito que se discorre, sem que chegue a tomar corpo o questionamento de uma norma ao menos em um seu entendimento normativo, susceptível este de transposição para situações de alguma forma semelhantes. A recorrente atacou a decisão, arguindo-a de nula nos termos do artigo 668º, nº
1, alínea d) do Código de Processo Civil. Em primeiro lugar, e no que agora releva, em sede de aplicação da lei no tempo, e, depois, sucessivamente em sede de determinação do momento 'em concreto em que se pode determinar quem sejam os bisnetos contemplados pela deixa da Marquesa', e em sede 'Da interpretação conforme à Constituição', aí sustentando a aplicabilidade do nº 4 do artigo 36º da Constituição. E concluindo,
'2º - O Tribunal da Relação apenas se pronunciou cabalmente sobre uma das questões, a saber: Da vontade real da Marquesa.
3º - A questão da aplicação da lei no tempo, não foi especificamente apreciada pelo douto Tribunal da Relação. Na realidade, o douto Tribunal limitou-se a dizer que é de aplicar ao caso subjudice o art. 2187º do actual Código Civil.
4º - O douto Tribunal da Relação, ao não explicitar as razões pelas quais entende que é de aplicar o art. 2187º do actual C.C., deixou por resolver as dúvidas acerca da aplicação da lei no tempo, designadamente: A actual C.R.P. é aplicável ao caso subjudice?
5º - A questão do momento em concreto em que se pode determinar quem sejam os bisnetos contemplados pela deixa da Marquesa é prévia à própria questão da aplicação da lei no tempo, a qual não foi também especificamente apreciada pelo Tribunal da Relação.
6º - Nem sequer o facto do Tribunal da Relação decidir que é de aplicar o art.
2187º, do actual Cód. Civil, permite alcançar uma solução para a questão referida em 5º, pois mantém-se por resolver a seguinte dúvida: As condições de que depende a atribuição do direito de suceder, preencheram-se entre 1996 (data de entrada em vigor do actual código civil) e 1976 (data da entrada em vigência C.R.P. de 1976), ou pelo contrário preencheram-se após 1976?
7º - Ora não tendo o douto Tribunal determinado o momento em concreto em que se pode apurar quem sejam os bisnetos legítimos contemplados pela deixa da Marquesa, ficamos sem saber se se impõe ou não uma interpretação da deixa da Marquesa conforme à Constituição.
8º - E ainda, que se admitisse que o douto Tribunal da Relação aceita que as condições previstas na deixa se preencheram após 1976, ainda assim se teria que concluir que o acórdão recorrido não apreciou a questão da interpretação conforme à Constituição, nomeadamente o douto Tribunal não apreciou a possibilidade do art. 36º, nº 4 da C.R.P., poder implicar uma redução na vontade real da testadora.
9º - o acórdão recorrido limitou-se a apreciar e a pronunciar-se sobre a vontade real da testadora, esquecendo que a interpretação ou fixação do sentido de uma cláusula testamentária não é só, por força da lei, pura e simplesmente reconstituição da vontade real do testador.' No Supremo Tribunal de Justiça, ao negar-se provimento ao agravo, julgando-se improcedentes as conclusões da recorrente, foram cuidadosa e extensamente apreciadas estas questões, concluindo-se a final 'não se delimitar a violação das normas legais que aquela veiculava'. Quanto à aplicação da lei no tempo, conclui-se que 'ao caso em apreço é aplicável à interpretação da deixa testamentária a lei vigente na data da abertura da herança, isto é, a vigente à data da morte de testadora', que ocorrera em 12 de Fevereiro de 1952. Quanto à questão do momento de determinação de quem sejam os bisnetos contemplados, o acórdão rejeitou a tese de que o direito de suceder só se concretizaria quando se pudessem determinar quem fossem os bisnetos e até à maioridade deles. A esse propósito, ponderou que a referida tese 'só encontraria razão no fim de se «tentar» diferir a «solução» para a actual legislação da C.R.P. e em cujo enquadramento a própria Recorrente pudesse vir a aproveitar'. Continuando e corroborando o que apurara na análise antecedente sobre a aplicação da lei no tempo: 'Já vimos, porém, e veremos ainda que a dita Constituição não é aplicável aos autos'. Finalmente quanto à interpretação conforme ao artigo 36º, nº 4, da Constituição, vale a pena transcrever o que consta da decisão recorrida: '...tratando-se no fundo de uma questão de lei no tempo, ficou ponderado que na interpretação, nesse prisma, e do artigo 12º, nº 2, do C.C., a lei reguladora da disciplina do 'estatuto sucessório', em sucessão voluntária, como a presente, é a vigente ao tempo da abertura daquela, ou seja, aquando do óbito da testadora. Por outro, e por igual modo, aquele artigo 12º não foi revogado pela Constituição. Assim fica arredada a virtualidade da apreciação desta, e na medida em que apenas vigente em
25.04.76, e portanto, posteriormente à abertura da sucessão, em 12.02.52, a data da morte da Marquesa'.
3. - Do que precede se retira sem dificuldade e sem que sobrem dúvidas que a recorrente apenas colocou a discussão da sua pretensão em termos de interpretação e aplicação do artigo 2187º, sem nunca dele ter extraído e identificado, como conviria à perceptibilidade de uma questão de constitucionalidade, um conteúdo normativo susceptível de ser confrontado com a Constituição a qual, aliás, e como se viu, foi considerada como não aplicável no caso. Transparece isso mesmo do próprio requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional e diga-se em abono da verdade que nem sequer quando convidada a explicitar esse sentido ou conteúdo normativo da interpretação da norma do artigo 2187º do Código Civil o fez em termos de poderem ser admitidos como pertinentes à introdução de um recurso nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
4. - Com efeito, chamando agora à colação todos os elementos já expostos, é fácil verificar que verdadeiramente a formulação de uma questão de constitucionalidade acaba por só ser tentada na resposta ao convite para esclarecer a exacta interpretação da norma que tem por inconstitucional, nem sequer, portanto, no próprio requerimento de interposição. Ora é jurisprudência constante, uniforme e seguida sem discrepâncias pelo Tribunal Constitucional, que a interposição do recurso para este Tribunal não é momento idóneo para suscitar uma questão de constitucionalidade, a qual deverá sempre ser anteriormente colocada perante o tribunal recorrido em termos e como questão que este deverá apreciar.
5. - Mas acresce dizer, como diz a recorrente, que 'na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á sempre e só o que parecer mais ajustado a vontade contrarie normas constitucionais, uma vez que estamos em sede de sucessão voluntária testamentária' não pode ser admitido com 'interpretação normativa' que possa ser utilizada como regra para outras aplicações. Trata-se aí apenas de fazer coincidir o conteúdo da decisão, a formulação decisória, com uma formulação normativa, por outras palavras, trata-se de converter a decisão em norma, na medida em que a respectiva hipótese não extravasa dos elementos que configuraram a concreta situação decidida e que foram subsumidos na estatuição – a prevalência da vontade real do testador. Ora logo se vê que também por esta via, não se poderá conhecer do recurso.
6. - Finalmente, e como também se relevou oportunamente, tratando-se essencialmente de uma questão de aplicação da lei no tempo, as instâncias concluíram pela não aplicabilidade ao caso concreto das normas da Constituição vigente. Sobre essa questão, e tendo em conta que nunca foi posta em causa a conformidade com a Constituição dos critérios estatuídos pelo artigo 12º do Código Civil, não tem o Tribunal Constitucional que se pronunciar, na medida em que escapa aos seus poderes de cognição a apreciação dos caminhos seguidos pelos tribunais recorridos na determinação do direito aplicável. Ora também por esta via se concluirá pela não verificação dos requisitos necessários para se poder conhecer de um recurso de constitucionalidade, que pressupõe de forma inarredável que as normas constitucionais convocadas para a apreciação da constitucionalidade do direito ordinário sejam as normas da Constituição em vigor. DECISÃO Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do presente recurso.'
3. - Em conformidade com o que oportunamente foi referido, na decisão reclamada entendeu-se, prima facie, que a recorrente se limitara a converter a decisão recorrida em norma cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada.
Seja ou não assim, o certo é que chamado a reapreciar a decisão sumária, cuja conclusão considera de manter, o Tribunal Constitucional entende que as objecções que pudessem formular-se a respeito dos fundamentos do não conhecimento do recurso são de dissipar com base em outra ordem de razões contidas na mesma decisão. Não haverá portanto necessidade de aprofundar a questão da distinção entre a interpretação normativa do artigo 2187º do Código Civil e uma sua mera aplicação.
Há, porém, que salientar um outro grupo de questões suscitadas na reclamação. Entende a reclamante (alínea I da reclamação) que 'a decisão que deve ser objecto de sindicância pelo Tribunal Constitucional é a decisão e a fundamentação constante do acórdão da Relação', isto porque o STJ não revogou a decisão da Relação; em consequência, 'o que consta do acórdão do STJ a propósito da aplicação da lei no tempo não pode ser considerado em sede de recurso para o Tribunal Constitucional'.
É claramente improcedente o raciocínio. Na verdade, o recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que se pronunciou expressamente no sentido da não aplicabilidade das normas da actual Constituição. No respectivo requerimento é bem clara a intenção da recorrente quando refere que recorre 'com fundamento na aplicação inconstitucional da norma do art. 2187º do C.C., na interpretação que da mesma foi feita pelo mui douto Acórdão proferido em conferência pelo Supremo Tribunal de Justiça por contrariar as normas constantes dos arts. 13º e 36º, nº
4 da C.R.P.' e na resposta ao convite que lhe foi dirigido pelo relator no Tribunal Constitucional refere 'a decisão do STJ, ou melhor a decisão do Tribunal da Relação que foi confirmada pelo STJ'. Não faz sentido, e não pode aceitar-se, que pretenda eliminar dos autos esta decisão, o que equivaleria, além do mais, a deixar o presente recurso sem objecto.
Objecto directo do presente recurso é assim, sem dúvida, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça e é nela que radica o fundamento que se considera como decisivo para que do mesmo se não possa conhecer. Com efeito, tal como ficou exarado na decisão sumária, o STJ concluiu que 'ao caso em apreço é aplicável à interpretação da deixa testamentária a lei vigente na data da abertura da herança, isto é, a vigente à data da morte da testadora', que ocorrera em 12 de Fevereiro de 1952. Por essa razão, entendeu que
'...tratando-se no fundo de uma questão de lei no tempo, ficou ponderado que na interpretação, nesse prisma, e do artigo 12º, nº 2, do C.C., a lei reguladora da disciplina «do estatuto sucessório», em sucessão voluntária, como a presente, é a vigente ao tempo da abertura daquela, ou seja, aquando do óbito da testadora. Por outro lado, e por igual modo, aquele artigo 12º não foi revogado pela Constituição. Assim fica arredada a virtualidade da apreciação desta, e na medida em que apenas vigente em 25.04.76, e portanto posteriormente à abertura da sucessão, em 12.02.52, a data da morte da Marquesa».
A decisão recorrida, como se vê, apreciou a validade da deixa testamentária à luz do direito em vigor no momento da abertura da sucessão. Para o efeito, fez aplicação dos critérios legais de sucessão das leis no tempo consagrados no Código Civil (nomeadamente no artigo 12º). Ora bem, a recorrente colocou a questão da conformidade do artigo 1287 do Código Civil com o artigo 36º, nº 4, da Constituição em vigor. No entanto, a norma legal em causa não foi aplicada como estando inserida em um contexto normativo a que presidisse a presente Constituição; o Tribunal recorrido aplicou-a pressupondo o sentido que lhe caberia no ordenamento anterior, encimado pela Constituição de 1933. O Tribunal Constitucional tem que respeitar os critérios utilizados pelo Tribunal a quo na determinação do direito aplicado, e nesses critérios se incluem necessariamente os respeitantes à aplicação da lei no tempo. Só não terá que ser assim se esses critérios forem eles próprios objecto de uma questão de constitucionalidade, formulada em termos idóneos, no sentido de sobre a questão o Tribunal ter de se pronunciar. Não é o que sucede no presente caso, em que em ponto nenhum veio a ser posta em dúvida a conformidade do artigo 12º com a presente Constituição. Assim sendo, e porque o recurso de constitucionalidade pressupõe de forma inarredável que as normas constitucionais convocadas para a apreciação da constitucionalidade do direito ordinário considerado aplicável sejam as normas da Constituição em vigor, e não sendo estas aplicáveis no caso presente, tem de se concluir que não estão reunidos os requisitos necessários para que o Tribunal possa conhecer a questão que lhe é colocada.
4. - Nestes termos, decide o Tribunal Constitucional indeferir a presente reclamação, não se tomando conhecimento do recurso. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC's. Lisboa, 9 de Fevereiro de 1999 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida