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Proc. nº 142/982ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Em 21 de Novembro de 1996, o magistrado do Ministério Público da comarca de Almada pediu ao Tribunal Criminal daquela comarca o imediato e urgente internamento hospitalar compulsivo de L. P., esquizofrénico com comportamentos violentos que vinha recusando o tratamento e a medicação adequados à sua condição. Juntou informação clínica a recomendar a urgente continuação do tratamento iniciado em Abril de 1995 no Hospital da Marinha e um relatório da Esquadra da P.S.P. da Costa da Caparica dando nota da apresentação, em Junho de
1996, pelos pais do referido L., de um pedido de auxílio para sujeição do filho a tratamento.
2. Por despacho de 28 de Novembro de 1996, o juiz do 2º Juízo Criminal da Comarca de Almada considerou-se incompetente por entender que a competência para determinar tal internamento cabia aos tribunais cíveis. Remetido o processo a estes, veio o juiz do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Almada a considerar-se igualmente incompetente por despacho de 20 de Dezembro de 1996. Por iniciativa do Ministério Público, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu, em 11 de Novembro de 1997, acórdão que dirimiu o conflito negativo de competências, declarando competente o 2º Juízo Cível da Comarca de Almada.
3. Baixado o processo a esse Tribunal, veio o juiz, por despacho de 5 de Dezembro de 1997, a recusar a aplicação das normas conjugadas e constantes das Bases XX, XXIII, n.ºs 2 e 3, alíneas a) e d) e XXX da Lei n.º 2118, de 3 de Abril de 1963 (Lei da Saúde Mental) que poderiam permitir o internamento hospitalar compulsivo do requerido para sujeição a tratamento, considerando-
-as inconstitucionais.
4. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Almada interpôs recurso de tal decisão para Tribunal Constitucional. Nas alegações neste Tribunal produzidas, concluía assim o Procurador-Geral Adjunto aqui em funções:
'1º - Não padecem de inconstitucionalidade as normas que conferem ao Ministério Público competência para requerer e ao juiz do tribunal comum competência para decretar ou confirmar o internamento do portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, com vista à tutela do seu direito à integridade física e à saúde e tendo exclusivamente como função a necessidade real de tratamento naquelas condições e eventual cura do portador de tal anomalia psíquica.
2º - Termos em que deverá julgar-se procedente o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.'
5. Sem vistos, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
6. Note-se, antes de mais, que no caso sub iudice não está em causa a aplicação de uma verdadeira medida de segurança. Enquanto a medida de segurança se liga à prática, pelo agente, de um facto ilícito típico e tem primacialmente uma função de defesa social ligada à prevenção especial, seja sob a forma de pura segurança, seja sob a forma de ressocialização (Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências jurídicas do crime, 1993, §§ 653 e 667 e segs.), o que no presente processo sempre esteve em causa foi uma providência, de carácter estritamente terapêutico, de defesa do requerido. Uma tal teleologia descaracterizava a intervenção em causa como medida de segurança, podendo dizer-se que a aproximava, antes, de um processo como o de internamento (transitório) previsto no n.º 4 do artigo 951º do Código de Processo Civil, ou, mesmo, em certos aspectos, de suprimento do consentimento do requerido, regulado no artigo 1426º do mesmo diploma. Ora, poderia discutir-se se a privação de liberdade em consequência de internamento compulsivo de doente mental era permitida em face do texto constitucional anterior à revisão constitucional de 1997, havendo esta discussão de passar pela determinação do âmbito de aplicação do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 27º da Constituição (segundo o qual 'ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança') e pelo reconhecimento ou negação da taxatividade das excepções a esse princípio, indicadas no n.º 3 do mesmo artigo 27º. E consoante a resposta, assim haveria que concluir pela conformidade ou desconformidade constitucional das normas em apreço, que permitem o internamento hospitalar compulsivo do requerido para sujeição a tratamento.
7. O Tribunal Constitucional não teve ainda ocasião de se pronunciar sobre a conformidade das normas em apreço com o artigo 27º da Constituição (cfr. o Acórdão n.º 60/98, em que o Tribunal Constitucional só não conheceu da questão de constitucionalidade suscitada por resultar do processo que tal apreciação se tornara inútil). Todavia, a revisão constitucional de 1997 veio tornar desnecessária a dilucidação, no caso concreto, das referidas questões do âmbito de aplicação do n.º 2 deste artigo 27º e da taxatividade das excepções elencadas no n.º 3. Na verdade, no momento em que o tribunal a quo proferiu o despacho de recusa de aplicação das normas referidas no ponto 5., supra, invocando a sua desconformidade com o disposto nos artigos 18º, n.ºs 2 e 3 e 27º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, já tinha entrado em vigor a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, nos termos do seu artigo 198º
(entrada em vigor no décimo quinto dia posterior ao da sua publicação). Ora, esta lei de revisão constitucional introduziu no referido n.º 3 do artigo
27º uma nova alínea h) (na sequência da alínea f) do artigo 27º constante do Projecto de Revisão Constitucional n.º 3/VII, apresentado pelo PS - 'o internamento de doente mental, como tal qualificado por tribunal judicial e nos termos por este definidos;'). Entre essas excepções passou assim a contar-se a seguinte:
'h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.' Esta excepção quadra perfeitamente ao internamento hospitalar compulsivo do requerido, para sujeição a tratamento, bastando para se poder concluir que as normas conjugadas e constantes das Bases XX, XXIII, n.ºs 2 e 3, alíneas a) e d) e XXX da Lei n.º 2118, de 3 de Abril de 1963 (Lei da Saúde Mental), não podem ser consideradas inconstitucionais (isto deixando, portanto, em aberto a questão
– que não parece resolvida pela nova alínea h) do n.º 3 do artigo 27º, e, sobretudo, não interessa no caso vertente – de saber se normas que prevejam o internamento compulsivo por motivos diversos da anomalia psíquica são ou não inconstitucionais). Contemplando directamente a situação em apreço nos presentes autos, evidente se torna, pois, que a decisão de recusa de aplicação destas normas foi infundada. III. Decisão
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa,2 de Dezembro de 1998 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa