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Proc. nº. 232/94 TC - 1ª Secção Rel.: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Companhia de Seguros I...., SA, interpôs recurso para este Tribunal da decisão proferida em 4.01.94 pela 1ª Secção do 9º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa em acção sumaríssima de condenação que não aceitou a justificação da falta do mandatário da autora, por tê-la considerado extemporânea e absolveu o réu da instância, por não ser de presumir que o réu - que também havia faltado à diligência - preferisse a realização da audiência de julgamento .
Inconformada com a referida decisão, veio a referida Companhia de Seguros I...., SA, interpôr recurso para o Tribunal Constitucional nos ?termos da alínea b) do nº. 1 do artº. 280º da Constituição da República Portuguesa?, a fls. 38 dos autos.
Admitido o recurso, foi a recorrente convidada pela então Conselheira Relatora a indicar a norma que pretende ver analisada e a norma ou princípio constitucional que considerava violados.
A recorrente respondeu ao convite, indicando que o recurso havia sido interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei nº. 28/82; que a norma jurídica cuja constitucionalidade questiona é a constante do artigo 796º, nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil por violação do artigo 20º da CRP que garante o acesso ao direito e aos tribunais (cfr. fls. 46 dos autos).
Neste Tribunal veio a recorrente a apresentar alegações, formulando as seguintes conclusões:
1 - a absolvição de preceito prevista no artº. 796º n.º 2 do c.p.c. está condicionada ao facto de ser requerida pela ré e ainda ao facto de não ser justificada a falta da autora à audiência de julgamento.
2 - não há qualquer disposição legal que solucione a questão da falta simultânea de ambas as partes à audiência de julgamento. Existe uma lacuna legal que cumpre integrar.
3 - a interpretação da lei e a integração de lacunas devem ser feitas tendo em conta a unidade do sistema jurídico, e na base desse sistema está a constituição que em caso algum pode ser violada.
4 - a solução constante da sentença recorrida, que é fruto de uma interpretação extensiva da lei e da integração de uma lacuna, com recurso à doutrina (que nem sequer é unânime) viola a constituição por negar o acesso ao direito à parte recorrente e por ser violadora do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei?.
Termina as suas alegações requerendo a revogação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - O artigo 796º, nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil trata das consequências resultantes da não comparência das partes na audiência de discussão e julgamento em acção declarativa com processo sumaríssimo, respeitando o nº. 1 à falta do réu e o nº. 2 à falta do autor, mas revelando-se omisso para as situações de falta simultânea de autor e réu.
Dispõe o citado artigo 796º:
1. Se o réu, tendo contestado, não comparecer na audiência de julgamento nem se fizer representar, será condenado no pedido, a não ser que justifique a falta ou tenha provado, por documento suficiente, que a obrigação não existe. Se faltar o autor e não justificar a falta, pode o réu requerer a absolvição da instância?. A jurisprudência tem vindo a entender que a justificação da falta deve ser feita antes da audiência de julgamento ou logo que esta seja aberta, não podendo ser relegada para momento posterior (cfr., entre outros, acórdão do STJ de
24.04.1981, in BMJ, nº. 306, pág. 223 e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.03.1991, in CJ, ano XVI, tomo II, pág. 360). Idêntica solução foi defendida por Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, Coimbra, 1953, pág. 496, a propósito do artigo 800º, 1ª parte:
?A justificação tem de ser feita ou antes da audiência ou logo que essa seja aberta?. A decisão recorrida interpretou tais normas no sentido de, faltando autor e réu
à audiência de discussão e julgamento, não sendo a falta do autor justificada pelo menos até à realização da diligência, deve absolver-se o réu da instância, embora este o não requeira por não ser de presumir que o réu prefira a realização da audiência de julgamento.
É esta interpretação da norma efectuada pelo tribunal a quo que a recorrente afirma violar a garantia de acesso ao direito e aos tribunais e o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei consagrados, respectivamente, nos artigos
20º e 13º da CRP.
Sobre o preceito do Código de Processo Civil cuja inconstitucionalidade vem agora suscitada pela recorrente já o Tribunal Constitucional se pronunciou expressamente no acórdão nº. 271/95, in DR, II Série, de 21.07.95, de que se extrai, por ter directa aplicação para o presente caso, o seguinte trecho:
?(...) Como é sabido, a Constituição não enuncia expressamente, (...), quaisquer princípios ou garantias a que deva subordinar-se o processo judicial em geral, salvo o consignado nos artigos 209º e 210º. É, todavia, inquestionável que as regras do processo, em geral, não podem ser indiferentes ao texto constitucional de que decorrem implicitamente, quanto à sua conformação e organização, determinadas exigências impreteríveis, que são directo corolário da ideia de estado de direito democrático ? bem se sabe, com efeito, como um dos elementos estruturantes deste modelo de estado é a observância de um due process of law na resolução dos litígios que no seu âmbito deva ter lugar.
E neste domínio é particularmente significativo o direito
à protecção jurídica consagrado no artigo 20º da Constituição, no qual se consagra o acesso ao direito e aos tribunais que, para além de instrumentos de defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, é também elemento integrante do princípio material da igualdade e do próprio princípio democrático, pois que este não pode deixar de exigir a democratização do direito.
Para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente:
(a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo, baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas;
(d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que através do
órgão jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal.
Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual ?a proibição da ?indefesa? ?, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses? (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 82 e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser defendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cf. os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 404/87, 86/88 e 222/90, in Diário da República, 2ª série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).
À luz do sentido genérico assim atribuído ao direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada a proibição de indefesa, pode seguramente afirmar-se que as normas questionadas pela recorrente, na interpretação que lhes foi dada na decisão impugnada, não sofrem de qualquer vício de inconstitucionalidade?.
Em outros acórdãos teve o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar sobre o artigo 796º, nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil, embora na fundamentação de decisões que tiveram por objecto a norma constante do artigo
89º, nº. 3 do Código de Processo do Trabalho, cuja fonte ? é pacífico- é a norma ora em apreço, a saber: acs. nºs. 264/94, 223/95 e 1193/96, respectivamente, in DR, II Série, de 19.07.1994, 27.06.1995 e de 30.11.1996 ? inédito).
No mencionado acórdão nº. 223/95 abordou-se esgotantemente a questão da constitucionalidade do artigo 796º, nºs. 1 e 2 do CPC, jurisprudência retomada no acórdão também já indicado nº. 1193/96, que não se vê motivos para abandonar, pelo que a ela se adere expressamente.
Destaca-se apenas do acórdão nº. 223/95 o seguinte:
?Desde logo, a existência de cominações no processo civil
? recte, da cominação que se traduz em impor ao réu a sua condenação no pedido, quando ele falta à audiência de discussão e julgamento, para a qual foi devidamente notificado, sem que justifique logo essa falta, nem se faça representar por mandatário judicial ? não faz com que o julgamento (a sentença de condenação que o juiz então profere) deixe de ser independente e imparcial, nem conduz a que o conflito que opõe as partes fique por solucionar, nem tão-pouco que a decisão proferida seja desconforme com a lei.
É certo que o funcionamento da cominação que se contém na norma aqui em análise (cominação plena) conduz a que a causa seja julgada com base numa presunção: presume-se, iuris et de iure, que o réu confessou o pedido que o autor formulou na petição inicial (ficta confessio). E isso é susceptível de conduzir a que a sentença, no caso, não faça justiça, assente como é numa verdade formal, que não na verdade material, como é sempre desejável que aconteça. Ou seja: pode, então, acontecer que a sentença seja menos acertada, dando razão à máxima de Loisel: ?de brief juge, folle sentence?.
No entanto, é preciso recordar que tal só sucede, porque o réu, apesar de devidamente notificado para comparecer pessoalmente na audiência de discussão e julgamento, a ela não comparece, nem justifica a falta, nem se faz representar por mandatário judicial.
(...) Depois, não é esta a única situação em que a sentença assenta numa verdade formal: para além do caso de confissão ficta, por falta de contestação, a que já se aludiu, há ainda as acções julgadas com base em provas com força probatória legal (presunções legais, documentos, confissão, designadamente por falta de impugnação especificada pelo réu dos factos articulados pelo autor na petição). Além disso, a referida cominação não é produto de uma decisão legislativa arbitrária ou caprichosa?. O que se acaba de transcrever é válido igualmente para a falta do autor à audiência de discussão e julgamento, não tendo a respectiva falta sido justificada antes ou até ao início da diligência. Tal em nada contende com a invocação de justo impedimento, mas analisado o processo verifica-se que a recorrente nele não invocou qualquer justo impedimento. A circunstância de a falta do autor ter que ser justificada ?ou antes da audiência ou logo que ela seja aberta? não impede o funcionamento do justo impedimento, em termos de se obstar à cominação. Independentemente de os tribunais admitirem ou não, em situações como a dos autos, a alegação e prova do justo impedimento, porque in casu este não foi invocado, e a norma aplicada com um sentido que recuse tais invocação e prova, não tem este Tribunal de se pronunciar sobre se, com um tal sentido, a norma se conformaria, ou não, à Constituição. Tratando-se de um processo sumaríssimo, em que a presença das partes assume especial relevância na audiência de discussão e julgamento ? único momento em que se verificam os princípios da imediação e oralidade -, avulta igualmente a exigência de celeridade processual, sendo certo que os preceitos do CPC que regulam esta forma de processo estabelecem prazos curtos para a citação, para a contestação e marcação da audiência de discussão e julgamento, pelo que compete
às partes acautelar a comparência em tal audiência ou, estando impedidos, justificar a falta até ao início da diligência. Não se diga que a decisão recorrida ao interpretar as normas constantes do artigo 796, nºs. 1 e 2 do CPC denegou justiça, causando prejuízo irreparável ao autor, na medida em que absolveu o réu da instância. Há que salientar que, como é sabido, a absolvição da instância não inibe o autor de propor outra acção com o mesmo objecto, a fim de assegurar o seu direito. Na sua alegação, a recorrente, ainda que de forma pouco perceptível, afirma que a interpretação das normas feita pela decisão recorrida viola o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei. Para dar sentido útil a tal menção, deve entender-se que o que a recorrente pretende afirmar é que ao estabelecer-se para a falta do réu à audiência a cominação da condenação no pedido e para a falta do autor a absolvição do réu da instância se terá violado o princípio da igualdade entre as partes. Como referido no já citado acórdão nº. 223/95, o que tal princípio exige
?(...) é que as partes disponham de idênticos meios processuais para fazer valer as suas pretensões e razões em juízo (ou seja: o que ele reclama é que autor e réu sejam colocados ?em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida?), há que concluir que ele não é violado pela norma aqui sub iudicio, no aspecto ora considerado, pois são idênticos os direitos processuais de ambos.
Na verdade, autor e réu dispõem, ambos, de igual possibilidade de, nos articulados, deduzirem as suas pretensões e exporem as suas razões (de facto e de direito), de oferecem documentos e testemunhas e de requererem quaisquer outras diligências de prova (cf. artigos 86º e 87º). E, do mesmo modo, ambos são notificados para comparecerem pessoalmente na audiência de julgamento (cf. artigo 89º, nº. 1), para, aí, fazerem interrogar as testemunhas indicadas e para os seus advogados produzirem alegações orais (cf. artigo 90º, nº. 2).
As condições em que as partes litigam são, pois, perfeitamente iguais. Diferente é, tão só, a consequência da falta injustificada de um e da do outro à audiência de julgamento (...)
Não existe, pois, simetria entre a consequência da falta injustificada do réu à audiência de julgamento e a do autor, igualmente sem justificação imediata, à mesma audiência. O princípio da igualdade (recte, o princípio da igualdade de armas) apenas proíbe que as situações da vida semelhantes recebam tratamento diferenciado que se não justifique nas diferenças existentes entre elas. Ou seja, proíbe o arbítrio ou o capricho do legislador, pois que este, no exercício da sua liberdade de conformação, há-de orientar-se sempre por critérios racionais ? há-de agir racionalmente, editando normas razoáveis, pois que a lei será Direito se for uma racionalidade?.
Ora, os termos com que o julgado de 1ª instância integrou a lacuna , criando a norma segundo a qual, em caso de falta de ambas as partes à audiência de discussão e julgamento deverá o R. ser absolvido da instância não são injustas, desrazoáveis nem inadequadas aos princípios fundamentais do processo civil.
É que a solução da situação em causa passava pela opção por uma das alternativas correspondentes aos efeitos das faltas do A. (absolvição da instância) e do R. ( condenação do pedido), não parecendo plausível a escolha de uma terceira via.
Ora, a diferença das posições processuais de A. e R. justifica desde logo a prevalência da cominação correspondente à falta do A.
Na verdade, é este que, ao propor a acção, solicita a tutela jurisdicional do direito a que se arroga, competindo-lhe o impulso subsequente do processo.
Tem, deste modo, fundamento razoável, no confronto com igual conduta processual do R. (falta à audiência), que se faça relevar, como presuntiva manifestação de desinteresse pela tutela inicialmente reclamada, a ausência injustificada do A.
Por outro lado, e como se deixou já assinalado, a absolvição da instância, não impedindo a propositura de nova acção com o mesmo objecto, não afecta decisivamente o direito invocado pelo A. ? ao contrário do que aconteceria para o R. se houvesse que dar prevalência aos efeitos da sua falta
(condenação no pedido) ? razão por que se não vê também que a ?norma? fira, em termos desproporcionados ou arbitrários os interesses do mesmo A..
Não se mostram, assim, violados os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito.
3 Decisão
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 2 de Julho de 1998 Artur Mauricio Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida