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Proc. nº 909/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1. - A. N., C. M. e V. C. reclamam para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do despacho de 20 de Maio de 1998, proferido pelo Desembargador relator a fls. 7911 dos autos de recurso crime nº 848/3/95, procedentes da 7ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa e pendentes no Tribunal da Relação de Lisboa
(certidão desse despacho a fls. 11 e 12 dos presentes autos) - despacho esse que, nos termos dos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 76º, nº 2, daquele diploma legal, não lhes admitiu o recurso por eles interposto para o Tribunal Constitucional.
1.2. - Os ora reclamantes foram, com outros, pronunciados, por despacho de 11 de Julho de 1994, nos referidos autos em que são arguidos, após acusações do Ministério Público e dos assistentes constituídos, Caixa...,SA, em liquidação, e outros.
De acordo com aquele despacho, A. N. foi pronunciado:
a) pela prática, em co-autoria, de um crime de falência dolosa, previsto e punido pelo artigo 325º, nº 1, alíneas a) e b) do Código Penal;
b) em concurso real e em co-autoria material, de um crime de burla agravada, sob a forma continuada, previsto e punido pelos artigos
313º e 314º, alíneas a), b) e c), e artigo 30º, nº 2, todos do Código Penal;
c) em concurso real e em co-autoria material de um crime de falsificação, na forma continuada, previsto e punido nos artigos 228º, nºs.
1, alínea a), e 2 e artigo 30º, nº 2, do mesmo diploma legal.
E, por sua vez, C. M. e V. C. foram, cada um deles, pronunciados:
d) pela prática de um crime previsto e punido no artigo
325º, nº 3, do Código Penal;
e) em concurso real, como cúmplices, de um crime de burla agravada, sob a forma continuada, previsto e punido pelos artigos 313º e
314º, alíneas a), b) e c), e artigo 30º, nº 2, todos do mesmo texto da lei.
1.3. - O despacho de pronúncia foi impugnado, nomeadamente pela assistente Caixa...., tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 3 de Julho de 1996 (fls. 26 e ss.), julgado procedentes parcialmente os recursos, e, com base nos factos dados como indiciados, elencados na pronúncia e integrantes das acusações pública e particulares, decidido (no que aos ora reclamantes interessa):
- pronunciar o primeiro, A. N., como co-autor de um crime de associação criminosa previsto e punido pelo artigo 287º, nºs. 1 e 3, do Código Penal (versão originária) e os segundo e terceiro, como participantes naquela, por um crime previsto e punido pelo nº 2 daquele artigo 287º;
- pronunciar o primeiro, como co-autor de um crime de abuso de confiança de valor muito elevado, previsto e punido pelo artigo 306º, nºs. 1 e 2, alíneas a) e b), do Código Penal, em forma continuada;
- pronunciar o segundo e o terceiro, alterando a qualificação jurídica dimanada da pronúncia, como co-autores de um crime de burla agravada, em forma continuada, previsto e punido pelos artigos 313º e
314º, alíneas a), b) e c), e 30º, nº 2, do Código Penal;
- não pronunciar o arguido A. N. pelo crime de falência fraudulenta, previsto e punido pelo artigo 325º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal;
- não pronunciar os arguidos C. M. e V. C. da prática de um crime previsto e punido pelo artigo 325º, nº 3, do Código Penal.
1.4. - Os ora reclamantes reagiram ao acórdão que os pronunciou requerendo, nos termos do disposto no artigo 100º e §1º do Código de Processo Penal de 1929 o suprimento da irregularidade consistente na modificação e ampliação da incriminação feita na pronúncia, sem especificação dos fundamentos jurídicos legitimantes.
A Relação, por acórdão de 15 de Janeiro de 1997 (fls.
321 e ss. destes autos), completando o anterior aresto, ponderou que, podendo o assistente recorrer do despacho de pronúncia mesmo que o MºPº o não tenha feito, de acordo com o que flui do corpo do artigo 4º do Decreto-Lei nº 35 007, de 13 de Outubro de 1945 (aplicável aos autos), constitui entendimento a seguir que a restrição constante do § 4º do mesmo artigo 4º - nos termos da qual quando os assistentes formulam acusação por factos diversos dos que constituem a acusação do Ministério Público não poderão recorrer da decisão do juiz se este receber a acusação do Ministério Público - só vigora quando o assistente deduza uma acusação por factos diferentes dos que constituem objecto da acusação do MºPº, embora enquadráveis no mesmo tipo legal de crime. E que também se entende que, havendo no processo diversos arguidos e abstendo-se o MºPº de acusar quanto a alguns, pode o assistente recorrer do despacho que lhe rejeitou a acusação deduzida contra os arguidos não acusados pelo MºPº.
Assim, sem prejuízo da natureza auxiliar da intervenção do assistente relativamente ao acusador público, compreende-se - escreve-se no acórdão - que o assistente 'possa interpor recurso, se o MºPº não acusar, por forma a fazer vingar a sua acusação por factos diversos dos constantes da acusação pública, integrantes de crimes distintos dos imputados por aquele, a fim de assegurar-se uma eficaz repressão penal'.
E a finalizar, nesta parte:
'E, deste modo, não acusando o MºPº pelos supracitados crimes de abuso de confiança e de associação criminosa é admissível recurso por parte do assistente que não viu concretizada a sua pretensão acusatória na pronúncia, em vista a corrigir-se esta, ampliando-se os seus termos.'
1.5. - No que ora releva, em 31 de Março de 1997, os três reclamantes interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, circunscrito à matéria de direito - invocando os artigos 645º, 649º, 658º, nº 2,
661º e 666º in fine do Código de Processo Penal (CPP) de 1929, 29º da Lei nº
24/92, de 20 de Agosto, ex vi dos artigos 1º do CPP em causa e 754º, alínea b), e 758º do Código de Processo Civil (requerimento de fls. 205) - e para o Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 206), para o caso de o primeiro não ser admitido.
Com este último, pretendem ver apreciada a questão da constitucionalidade das normas do artigo 4º, corpo e §§ 3º e 4º, do Decreto-Lei nº 35 007, de 13 de Outubro de 1945, 'com a interpretação com que foram aplicadas na decisão recorrida' (e que é a do acórdão de 3 de Julho de 1996, complementado pelo de 15 de Janeiro de 1997), que entendem violar o disposto no artigo 32º da Constituição da República (CR).
A questão não fora, até então, equacionada, defendendo os recorrentes a sua tempestividade in casu, em termos que se analisarão adiante, mais compassadamente.
O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não foi, no entanto, admitido e, objecto de reclamação para o respectivo Presidente não foi esta atendida, pelo que desta recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, a que se negou provimento por acórdão deste Tribunal, nº 54/98, de 3 de Fevereiro de 1998 (fls.
329 e segs.).
2.1. - Pronunciando-se - na sequência da não admissão do recurso para o STJ - quanto ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional, o Desembargador relator, por despacho de 20 de Maio último, não o admitiu, como já se registou.
Para o efeito, considerou-se que - afastada a possibilidade de alteração da pronúncia - a questão de inconstitucionalidade posta em causa não foi atempadamente suscitada, visto não ter sido previamente colocada, não se podendo falar de decisão 'surpresa', uma vez que os recorrentes e ora reclamantes 'tomaram conhecimento do recurso da pronúncia, era-lhes lícito contra-alegar (artigo 649º do CPP de 1929 e 743º, nº 2, do CPC), prevendo ou devendo prever o acolhimento da tese propugnada pelo recorrente, até porque nada tem de inusitada aos tribunais' - e, na verdade, entenderam não responder às alegações, 'como era seu direito', consoante sublinham -, assim não se verificando uma interpretação 'anómala ou imprevisível ou insólita, com os quais o operador do direito não podia razoavelmente contar', a legitimar a dispensa do
ónus de invocação para efeitos de admitir o recurso.
2.2. - É deste entendimento que reclamam os interessados, salientando que só no acórdão que recaíu sobre o pedido de esclarecimento - ou seja, o de 15 de Janeiro de 1997 - é que a norma sindicanda foi 'apontada como tendo sido aplicada'.
Assim - escreveu-se - 'os recorrentes ignoraram completamente, até ser proferido o último acórdão, qual a norma que fora aplicada e à sombra da qual foram pronunciados por factos que não figuravam na acusação pública', razão pela qual, adiantam, não só não tiveram oportunidade de suscitar a pertinente questão de constitucionalidade como nem era razoável e conjecturável prever um alargamento incriminatório mediante a utilização de factos não vertidos na acusação pública.
Ou seja, a norma questionada foi aplicada em inesperada interpretação, de forma 'tão anómala, inovadora e particular, para não dizer insólita, que não era exigível aos ora reclamantes contar como possível a sua adopção, explicitada apenas no último dos acórdãos'.
A assistente Caixa..... veio aos autos pronunciar-se no sentido do indeferimento de uma reclamação que, em seu entender, apenas tem fins dilatórios.
Ouvido, nos termos do nº 2 do artigo 77º da Lei nº
28/82, o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da 'manifesta improcedência' da reclamação.
E escreveu, a este propósito:
'[...] os ora reclamantes não suscitaram - podendo perfeitamente fazê-lo - a questão de constitucionalidade normativa a que reportaram o recurso de fiscalização concreta interposto, antes de proferida a decisão que pretendiam impugnar. Na verdade, tendo sido notificados do recurso interposto pela assistente, em que formulava acusação por factos parcialmente diversos dos que integravam o objecto da acusação do MºPº, era naturalmente previsível a possibilidade de o Tribunal da Relação vir a julgar procedente tal recurso - cumprindo naturalmente aos arguidos, na contra-alegação, que tiveram plena oportunidade de apresentar, suscitar a questão de constitucionalidade que só vieram colocar no requerimento de aclaração do acórdão proferido pela Relação. Ou seja: a circunstância de os arguidos, ora reclamantes, terem 'entendido não responder, como era seu direito', às alegações do assistente traduz inequívoco incumprimento do ónus de suscitarem, 'durante o processo', a questão de inconstitucionalidade normativa que só intempestivamente vieram colocar'.
Correram-se os restantes vistos, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
II
1. - A reclamação será de deferir se o recurso interposto pelos seus autores, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, dever ser admitido.
Ora, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, de indispensável verificação, consiste na suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, tomada esta locução no sentido generalizada e uniformemente adoptado pela jurisprudência constitucional, segundo o qual aquela suscitação há-de ser feita em momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão, antes, por conseguinte, de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que respeita. E porque este se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua, entende-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou de reclamação de uma sua nulidade não constituem já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade (cfr., por todos, o acórdão nº 352/94, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Setembro de 1994).
Sendo certo, no entanto, que se exceptua desse entendimento a interpretação normativa que, pela sua índole anómala e insólita, justifique a inexigilidade de a prever, de modo a suscitar-se a questão no adequado parâmetro temporal, discute-se, no caso concreto, se não ocorrerá uma dessas situações imprevisíveis, tornando tempestivo uma suscitação só equacionada após o primeiro acórdão da Relação, ao requerer-se o suprimento de alegada irregularidade desse aresto, por falta de especificação dos fundamentos do direito que justificaram modificação e ampliação da incriminação deduzida contra os ora reclamantes, designadamente não se mencionando a norma processual e a sua interpretação que permitiram essa 'incriminação nova' (cfr. fls. 341 e
342 destes autos).
Com efeito, em resposta ao requerido, só no segundo acórdão da Relação se faz expressa menção da normação que o anterior conteria implicitamente, consoante já se registou (ponto I-1.4).
2. - A questão é, na verdade, pertinentemente equacionável.
A Caixa....,SA, em liquidação, constituída assistente nos autos, deduziu acusação autonomamente em relação à do Ministério Público, a qual só em parte foi recebida, ao que reagiu mediante recurso para a Relação que concedeu provimento parcial ao recurso, daí resultando, efectivamente, o alargamento do âmbito da pronúncia.
Não obstante, a matéria de constitucionalidade - articulada com o artigo 32º da Lei Fundamental e as garantias de defesa no processo criminal - só foi levantada perante o 'esclarecimento' prestado pelo segundo acórdão da Relação, ou seja, demasiadamente tarde (extemporaneamente), a não se verificar justificada surpresa.
Deviam os reclamantes ter previsto que, na relação, poderia vingar uma interpretação do § 4º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 35 007, no sentido da admissão do recurso do assistente do despacho que não os pronunciou por factos diversos dos constantes da acusação pública, integrantes de crimes públicos diferentes dos imputados pelo Ministério Público?
De acordo com esse preceito 'quando os assistentes formulem acusação por factos diversos dos que constituem objecto da acusação do Ministério Público, não poderão recorrer da decisão do juiz se este receber a acusação do Ministério Público'.
A interpretação deste texto - que se prende com o estatuto processual do assistente - proporcionou entendimentos vários - 'larga querela na doutrina' como refere Germano Marques da Silva - confrontando-se a posição que defendia só poder o assistente acusar se o Ministério Público também acusasse e aqueloutra que considerava poder o assistente deduzir acusação mesmo que o Ministério Público se abstivesse de acusar (cfr., autor citado, Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, pág. 218 e Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1993, pág. 250; A.Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967
– 1968), Coimbra, 1968, págs. 136 e segs.).
Reflectindo essa diversidade opinativa, a jurisprudência desenvolveu-se em sentidos por vezes antagónicos (cfr., inter alia, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/10/60, 8/11/61, 7/10/64, 10/11/71 e
28/10/87, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nº 100, págs. 518 e ss., 111, págs. 348 e ss., 140, págs. 349 e ss., 211, págs. 238 e ss., e 370, págs. 238 e ss.), até à Lei nº 43/86, de 26 de Setembro e a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, 'sendo agora inequívoco [como observa Maia Gonçalves] que os assistentes não podem deduzir acusação por crime público sem que o MºPº o faça pelos mesmos factos', assim se pondo cobro, no dizer deste autor, a 'uma questão que foi muito controvertida no regime do Decreto-Lei nº 35
007' (cfr., Código de Processo Penal Anotado, 7ª ed., Coimbra, 1996, pág. 451).
3. - Decorre das considerações expendidas que, perante a dualidade interpretativa na matéria, e, por outro lado, face à acusação particular deduzida pela assistente, não se pode considerar imprevisível ou insólita uma interpretação pelo órgão aplicador do direito que entronca num dos critérios adoptados jurisprudencialmente (e controvertidamente).
Ou seja, aos ora reclamantes competia o ónus de considerar a hipótese de uma interpretação como a que veio a ser adoptada, suscitando a sua eventual inconstitucionalidade. Para esse efeito, tiveram a oportunidade processual de a eleger na contra-alegação ao recurso do assistente, o que, no entanto, não fizeram, pois nem sequer apresentaram essa peça processual, sem prejuízo de estarem nesse direito, como referem.
Mas, sendo assim, a suscitação da questão de inconstitucionalidade foi tardia, nada havendo a objectar no despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, de 20 de Maio de 1998.
III
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelos reclamantes com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 20 de Novembro de 1998 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida