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Processo nº 27/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal de Comarca de Guimarães de 15 de Maio de 2001, de fls. 14, foi julgada procedente a acção de despejo proposta em 21 de Setembro de
2000 por M... e outros contra G... e mulher, L..., por falta de residência permanente no local arrendado. Para o que agora releva, o Tribunal desatendeu a excepção de caducidade alegada pelos réus, por estar em causa um facto continuado que perdurava (nº 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro). Inconformados, os réus recorreram para o Tribunal da Relação do Porto. Nas alegações então apresentadas, vieram sustentar a inconstitucionalidade 'da Lei
24/89 de 1 de Agosto', nos seguintes termos:
'A Lei 2030 revogou esta disposição mas logo o novo Código Civil voltou a estatuir que ‘A acção de resolução deve ser proposta dentro de ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade’. Posteriormente o assento de 3-5-1984 (Diário da República 3-7-1984) determinou que ‘seja instantâneo ou continuado o facto violador do contrato de arrendamento, é a partir do seu conhecimento inicial pelo senhorio que se conta o prazo de caducidade estabelecido no artigo 1094º do Código Civil’. De seguida o poder legislativo optou por exautorar o assento aprovando a Lei
24/89 de 1 de Março que veio dar ao artigo 1094º a redacção que hoje apresenta e que reintroduz a diferença em termos de contagem de prazo consoante se trate de factos continuados ou duradouros. Na verdade e conforme refere o Professor Pinto Furtado na sua obra supra já referenciada, ‘A Assembleia da República tem certamente toda a legitimidade para legislar como bem entender sobre as matérias da sua competência, e podia, assim, em qualquer altura modificar a Lei do arrendamento ou o Código Civil. Não tem todavia o direito de interferir na esfera de actuação dos Tribunais, aproveitando para a exercer com desvio do fim para que lhe foi constitucionalmente atribuída, exclusiva e abertamente com o sentido de inutilizar uma concreta e particularizada decisão judicial.’
'’A exautoração do assento de 1994, nos termos ostensivos em que foi levada a cabo pela Lei n.º 24/89, não constitui portanto em nossa opinião unicamente uma deselegância para com o Poder Judicial, mas uma, verdadeira e clara violação dos princípios contidos nos artigos 114° n.º1 e 208° n.º3 da Constituição. ‘ Na verdade consagra o actual artigo 11° (antigo 114°) da constituição o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, ou seja, cada função básica é atribuída a um órgão ou titular principal. Daqui resulta que a nenhum órgão de soberania podem ser reconhecidas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais e específicas e principalmente atribuídas a outro órgão. Na verdade pratica o principio da separação de poderes, dotado de um irredutível núcleo essencial será o de servir de fundamento à declaração de inconstitucionalidade de qualquer acto que ponha em causa o sistema de competências legitimação consagrada no texto constitucional. Conjugando a consagração deste princípio Const. essencial, com o preceituado no n.º 2 do artigo 205º (antigo 208º), da Lei Fundamental especialmente no que concerne à expressa prevalência das decisões dos Tribunais sobre quaisquer outras autoridades porquanto os tribunais são titulares exclusivos da função jurisdicional, concluímos que as decisões judiciais não podem ser anuladas ou superadas por uma decisão de nenhuma outra autoridade mesmo investida no poder legislativo. Em face do exposto a sentença recorrida ao fundamentar-se no disposto no artigo
65º n.º 2 interpretando-o no sentido que o prazo só se inicia a contar da cessação do facto resolutivo, aplicou norma materialmente inconstitucional, quando interpreta com aquele sentido por violação do suposto nos artigos 111º e
205º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa inconstitucionalidade que expressamente se invoca. Violou a douta decisão recorrida o disposto nos artigos 64º alínea f) e 65º n.º
1 do RAU, 1049º (sic) do Código Civil e 111º e 205º da Constituição da República Portuguesa.'
2. O Tribunal da Relação do Porto, porém, por acórdão de 29 de Novembro de 2001, de fl. 31, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. No que se refere à questão de constitucionalidade suscitada, o Tribunal da Relação do Porto julgou que 'pretende a recorrente valer o assento por a norma que o afastou ser inconstitucional. A sua argumentação vai, contudo, em sentido contrário ao que vem entendendo o Tribunal Constitucional. Por outro lado, visto que no Acórdão de 7.6.95 (DR. II Série, de 22.7.1995) declarou inconstitucional o dito Assento e por outro porque no Ac. de 2.7.97 (DR, II Série de 17.10.97), o falado n.º 2 do artº 65º do RAU escapou a qualquer declaração de inconstitucionalidade. No primeiro dos arestos afirmou-se mesmo que a ‘indenfensão que resulta da interpretação adoptada no Assento... traduz-se em violação do direito à tutela efectiva por parte do locador, sob o ponto de vista do direito de acção... acrescendo que o prazo resultante daquele entendimento se revela desproporcionado, sem razoabilidade e despojado de fundamento jurídico material, de conteúdo objectivo e constitucionalmente legítimo, como aliás veio a ser reconhecido pela Lei n.º 24/89.’ Toda a argumentação - já de si eivada de fortes dúvidas - sobre a incosntitucionalidade feita pelos recorrentes, se baseia no choque entre o novo regime e o preexistente Assento. Ora, considerando inconstitucional este, às fortes dúvidas referidas há a acrescentar a falta de base de sustentação, de ponto de partida. Com atingimento mortal de toda a argumentação neste domínio.'
3. Os réus vieram, então, recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
(admite-se, pelo contexto, que a referência inicial à al. d) deste nº 1 se deva a um lapso), nos seguintes termos:
'Na verdade, os recorrentes invocaram no seu recurso da Apelação que a sentença recorrida ao fundamentar-se no disposto no artigo 65º n.º 2 do R.A.U., interpretando-o no sentido de que o início da contagem do prazo de caducidade da acção de resolução de arrendamento só se inicia a contar da cessação do facto resolutivo, aplicou norma materialmente inconstitucional, quando interpretada com aquele sentido por violação do disposto nos artigos 111ºº e 205º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, tese que o Acórdão desta Relação não aceitou. Tudo isto porquanto o poder legislativo exautorou o assento de 3-5-1984, aprovando a Lei 24/89 de 1 de Março que veio dar ao artigo 1094º do Código Civil a redacção que hoje apresenta e que reintroduz a diferença em termos de contagem de prazo de caducidade consoante se trate de factos continuados ou duradouros. Tal exautoração significou uma interferência na esfera de actuação dos Tribunais já que o poder legislativo aproveitou a sua competência legislativa para exercer com desvio do fim para que lhe foi constitucionalmente atribuída, exclusiva e abertamente com o sentido de inutilizar uma concreta e particularizada decisão judicial, violando os princípios contidos nos artigos 114º n.º 1 e 208º n.º 3 da Constituição'. Pelo despacho de fls. 45, o Tribunal da Relação do Porto, considerando que já no acórdão recorrido 'foi referido (...) que [a] argumentação [dos recorrentes] não pode colher, porquanto o mesmo Tribunal Constitucional já entendeu, de modo categórico, que a inconstitucionalidade está antes no próprio Assento', não admitiu o recurso, por ser 'manifestamente infundado'.
4. Inconformados, os recorrentes reclamaram desta decisão, sustentando que 'de acordo com a Lei que regula a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, é competência exclusiva do Tribunal Constitucional a apreciação da inconstitucionalidade. Ora, invocaram os recorrentes perante o Tribunal da Relação a inconstitucionalidade da Lei 24/89 por exautoração do Assento de 3-5-1984. Na apreciação do recurso, pronunciou-se o Tribunal da Relação sobre tal incidente, dizendo que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o Assento referido e que o n.º 2 do artigo 65° do RAU escapou a qualquer declaração de inconstitucionalidade Salvo o devido respeito, não é pelo facto de o Assento ter sido considerado inconstitucional que a Lei que o exautorou passe de forma automática a ser inatacável, já que, a sua declaração de inconstitucionalidade não está dependente da inconstitucionalidade do Assento que esta veio exautorar . Vale isto por dizer que poderia o Assento nunca ser declarado inconstitucional, e sê-lo a Lei que o exautorou, como nada impede que pelo facto de o Assento ser considerado inconstitucional também não o seja a Lei que o exautorou, já que a razão de ser da inconstitucionalidade de um, não é a inconstitucionalidade do outro, e vice-versa. Quanto ao facto de o falado n.º 2 do artigo 65° do RAU ter escapado a qualquer declaração de inconstitucionalidade, sempre se dirá, que a consciência jurídica vai sofrendo ao longo da historia, progressivas introduções e inovações, sendo que estas encontram uma recepção ainda que tácita no texto constitucional. Significa isto, que não é pelo facto de num determinado momento uma norma escapar a uma declaração de inconstitucionalidade que permaneça, ad aeternum, intocável, já que sempre estará dependente de uma ordem constitucional aberta ao tempo. Por outro lado, verificamos que a invocada inconstitucionalidade foi apreciada duas vezes e pelo mesmo órgão jurisdicional. Este facto permite extrair duas conclusões: Uma primeira, que consiste em o Tribunal da Relação ter apreciado em termos substanciais a invocada inconstitucionalidade já que a sua não admissão não se fundamenta em qualquer preterição de qualquer questão formal. Uma segunda, que consiste no facto de um mesmo órgão se pronunciar duas vezes sobre uma mesma questão, o que manifestamente contraria o principio de maximização do direito de defesa dos Réus, por contrariar o próprio conceito do instituto de Recurso, porquanto este é um meio de impugnação das decisões judiciais destinado a provocar o reexame e novo julgamento da matéria por outro Tribunal. Isto é, aceitar que o mesmo Tribunal julgue o mérito ou a substancia de um recurso sobre uma decisão que ele próprio proferiu é, salvo o devido respeito, uma negação de justiça, e uma negação da existência do direito de recurso.' Os reclamados responderam, concordando com a decisão de não admissão do recurso. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio pronunciar-se no sentido da manifesta improcedência da reclamação, porque 'A questão de constitucionalidade suscitada (...) é manifestamente infundada, já que não traduz obviamente qualquer ilegítima intromissão do poder legislativo na esfera reservada à função jurisdicional a edição de um diploma legal consagrando solução ou regime jurídico diferente ou oposto ao que havia sido fixado pelo assento do STJ'.
5. Com efeito, a presente reclamação é manifestamente improcedente. Desde logo, e independentemente de qualquer outra consideração, seja sobre o valor dos assentos, seja sobre a solução que foi adoptada pelo assento de 3 de Maio de 1984, pela Lei nº 24/89, de 1 de Agosto, ou pelo nº 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano, não tem qualquer cabimento pretender que a emissão de um assento possa expropriar a Assembleia da República da competência legislativa que a Constituição lhe confere. Basta, pois, esta consideração para demonstrar, quer que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional é manifestamente infundado, quer que a reclamação do correspondente despacho de não admissão é, consequentemente, manifestamente improcedente (cfr. nº 2 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro). Sempre se acrescenta, todavia, em primeiro lugar, que a norma aplicada para considerar improcedente a excepção de caducidade foi a que consta do nº 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano, e não, naturalmente, a que foi introduzida pelo artigo da Lei nº 24/89 no artigo 1094º do Código Civil, aliás revogado pelo nº 1 do artigo 3º do citado Decreto-Lei nº 321-B/90; os reclamantes sempre teriam, assim, que estender a causa de inconstitucionalidade que alegam à norma efectivamente aplicada pelo Tribunal da Relação do Porto. Em segundo lugar, também se observa não ser claro o que pretendem os reclamantes com a acusação de denegação de justiça que consta da parte final da sua reclamação; a sua apreciação não tem, aliás, qualquer cabimento no âmbito deste recurso. Nestes termos, indefere-se a reclamação. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs., a suportar por ambos. Lisboa,8 de Abril de 2002 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida