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Processo nº 782/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente V..., Ldª, e recorrida I..., S.A., exarou o Relator, nos termos do artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro (e antes da entrada em vigor da Lei nº
13-A/98, de 26 de Fevereiro), a seguinte EXPOSIÇÃO:
'1. V... Ldª, com os sinais identificadores dos autos, veio interpor dois recursos para este Tribunal Constitucional: um - o primeiro recurso - do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Março de 1996, que lhe 'indeferiu o pedido de esclarecimento do Acórdão de fls. 114 quanto a custas e de reclamação da conta'; e outro - o segundo recurso - dos 'DESPACHOS E ACÓRDÃO' do mesmo Supremo Tribunal, respectivamente, de 21 de Maio de 1996, 15 de Setembro de 1996 e 27 de Maio de 1997, 'na parte em que, aplicando o disposto nos artigos 687º, nº 4 e 668º, nº 1, b), do C.P.C. interpretaram e aplicaram tais normas no sentido de que dispensam o juiz do tribunal a quo de, no despacho de admissão do recurso, fundamentar a decisão que fixe o efeito do mesmo'. Segundo a recorrente, e relativamente a este segundo recurso de constitucionalidade, tal interpretação, contrária ao entendimento por si manifestado no requerimento de interposição do primeiro recurso de constitucionalidade de que devia ser atribuído a este o efeito suspensivo, viola os princípios do 'Estado de Direito, da Fundamentação das Decisões Judiciais e do Acesso ao Direito e à Justiça (direito a uma decisão jurídica), dos artigos
2º, 20º e 208º da Constituição'. Ainda, segundo a recorrente, nos termos do artigo 78º, nº 4, da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, devia ser atribuído ao recurso de constitucionalidade o efeito suspensivo, por não se verificar qualquer das situações previstas nos artigos nºs 1 a 3 daquele artigo, com subida nos próprios autos.
2. Vejamos o que estes nos revelam. Por acórdão de 26 de Setembro de 1995, do Supremo Tribunal de Justiça, foi a recorrente, então agravada, condenada no pagamento de custas, por ter ficado vencida no recurso então apreciado. Não se conformando com tal decisão, por entender que não deu causa à acção, pois não foi parte vencida, nem do processo tirou proveito (artigo 446º do Código de Processo Civil), não vendo, pois, como poderia ser condenada a pagar custas de um processo no qual não teve qualquer intervenção, requereu o esclarecimento do acórdão quanto a custas e, para a hipótese de tal esclarecimento não ser dado, sem prescindir, reclamou simultaneamente da 'conta de custas'. Nesta peça processual, a recorrente termina o seu pedido de aclaração, afirmando que '[A]figura-se existir aqui uma inconstitucionalidade, uma vez que as custas devem ser pagas pela parte vencida e só pode entender-se como tal a parte vencida a final; tal condenação em custas não tem qualquer fundamento legal'. Indeferido na sua totalidade o requerimento, por acórdão de 26 de Março de 1996, e inconformada com tal decisão, dela veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional - é o primeiro recurso atrás referido -, alegando que as normas em causa como já havia alegado no requerimento de aclaração e reclamação da
'conta de custas', mormente as dos artigos 669º, al. b) e 153º do Código de Processo Civil, 'enquanto interpretadas no sentido de que, passados 5 dias da respectiva notificação, não é reapreciável e é irreparável a parte do Acórdão do S.T.J. que, por erro, condenou em custas, causando, assim, prejuízo a uma das partes', são inconstitucionais, por violação dos 'princípios do Estado de Direito e o da Responsabilidade das Entidades Públicas (artigos 2º e 22º da Constituição)'. O recurso foi interposto, segundo a recorrente, 'nos termos e ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º e nos artigos 75º e 75º-A da Lei nº
28/82', sendo seu entendimento dever o recurso subir 'nos próprios autos e com efeito suspensivo'. Tal recurso foi admitido, 'para subir, imediatamente nos próprios autos', mas com efeito devolutivo (despacho do Relator, de 21 de Maio de 1997). Notificada desta decisão, a referida Sociedade requereu 'a rectificação do efeito que foi fixado em devolutivo para suspensivo', invocando para tal o disposto no nº 3 do artigo 78º da Lei nº 28/82. Mais uma vez o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu este requerimento, mantendo o efeito devolutivo que já havia sido atribuído (despacho do Relator de 15 de Setembro de 1996). Lê-se nesse despacho:
'Segundo prescreve o nº 4 do artº 687º do Código de Processo Civil, 'A decisão que admite o recurso, fixa a sua espécie ou determina o seu efeito que lhe compete não vincula o Tribunal superior e as partes só a podem impugnar nas suas alegações'. Também mais uma vez, não se conformando com tal decisão, arguiu a dita Sociedade a sua nulidade, por entender ter sido violado o disposto no artigo 208º, nº 1 do Constituição, e argumentando com o facto de ser sua convicção ter a fixação desse efeito resultado de um mero lapso, atendendo a que no requerimento de interposição do recurso havia solicitado que o efeito do mesmo fosse o suspensivo. Desta reclamação não conheceu o Supremo Tribunal de Justiça que, em síntese, entendeu que a decisão que admitiu o recurso e determinou o seu efeito não vincula o tribunal superior, podendo as partes apenas impugná-la nas suas alegações (despacho do Relator de 18 de Março de 1997). Ainda dessa decisão requereu a já mencionada Sociedade que sobre a matéria dos despachos de 15 de Setembro de 1996 (que manteve o efeito atribuído ao recurso) e de 18 de Março de 1997 (que não conheceu da reclamação por arguição da nulidade referida) recaísse acórdão, nos termos dos artigos 726º e 700º, nº 3, do Código de Processo Civil (reclamação para a conferência). O acórdão proferido sobre tal requerimento, em 27 de Maio de 1997, pronunciou-se pela confirmação do já anteriormente decidido. Não se conformando com este acórdão e despachos referidos, na parte já citada, deles foi então interposto novo recurso para este Tribunal Constitucional, sem, no entanto, ter indicado, agora, o artigo e a alínea da Lei nº 28/82 ao abrigo dos quais fora interposto (é este o segundo recurso).
3. São pressupostos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, entre outros, que a questão de constitucionalidade seja suscitada 'durante o processo'. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, suscitar a questão
'durante o processo' é fazê-lo antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. Significa isto que o tribunal recorrido tem de saber que tem uma questão de constitucionalidade para resolver, de forma a que, não se desnaturando o próprio sentido do recurso de constitucionalidade, que é a reavaliação de anterior decisão, o Tribunal Constitucional a possa rever. Por isso, aquela expressão deve ser entendida não num sentido formal, isto é, devendo a questão ser suscitada até à extinção da instância, mas num sentido funcional, tal que essa invocação haja de ser feita até um momento em que o tribunal a quo possa conhecer da questão. Por outro lado, na conceptualização que tem feito daquela expressão, não deixou o Tribunal de afirmar que a questão de constitucionalidade há-de ser suscitada por forma directa e inequívoca, de modo a que o tribunal do processo não possa ignorar que tal questão tem de ser resolvida e ainda que o vício deve ser sempre imputado a uma norma e não uma decisão. Isto pressupõe que, quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade, a coloque de forma clara e perceptível e a reporte à apreciação de 'normas' e não de um mero acto administrativo, judicial ou político. Ora, como se constata dos autos e no que respeita ao recurso motivado pelo pagamento de custas (o primeiro de que se vem falando), a recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade de forma directa e inequívoca. Ao afirmar '[A]figura-se existir aqui uma inconstitucionalidade, uma vez que as custas devem ser pagas pela parte vencida e só pode entender-se como tal a parte vencida a final; tal condenação em custas não tem qualquer fundamento legal', não imputou claramente e de forma idónea o vício de inconstitucionalidade a qualquer norma. A forma de dizer traduz, aliás, dúvidas à recorrente, chegando mesmo a não se perceber se a questão de constitucionalidade é imputável a uma ou mais normas ou
à própria decisão, mais parecendo que o que ela suscita é a inconstitucionalidade da própria decisão e não a das normas de que o acórdão se socorreu para decidir como decidiu. Aliás, nem o próprio Supremo Tribunal de Justiça veio a pronunciar-se sobre tal questão, talvez mesmo por ignorar se a recorrente tinha em mente efectivamente arguir esse vício. De resto, o facto de o Supremo Tribunal de Justiça não se ter pronunciado sobre qualquer questão de (in)constitucionalidade quando se debruçou sobre o requerimento onde a recorrente manifestou eventuais dúvidas sobre a mesma, sempre poderia conduzir a uma reclamação por eventual omissão de pronúncia, caso a recorrente a tivesse efectivamente arguido. Contudo, não foi isto que aconteceu e com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu esse requerimento (esclarecimento quanto a custas e reclamação da 'conta das custas') esgotou-se o poder jurisdicional daquele Tribunal para do eventual vício conhecer. Só após o proferimento dessa decisão, e no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional, imputou a recorrente tal vício ás normas conjugadas dos artigos 669º, 153º, 685º do Código de Processo Civil, 138º e 143º do Código das Custas Judiciais, 'mormente as dos artigos 669º, al. b) e
153º' daquele diploma, alegando que já no artigo 14º da reclamação havia suscitado a sua inconstitucionalidade. Mas, como se viu, a forma utilizada nesse artigo 14º ('[A]figura-se...') não é a forma adequada de suscitar a questão de constitucionalidade e, ao fazê-lo só no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, tal questão não foi suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, não foi suscitada 'durante o processo', com o significado que esta expressão tem e já foi referido (cfr. sobre todos estes requisitos, entre outros, os acórdãos nºs 155/ /95, 584/96, 595/96, publicados, respectivamente, nos Diários da República, II Série, de 20 de Junho de 1995, 29 de Outubro de
1996 e 22 de Julho de 1996). Posto isto, há que concluir, pois, pela não admissibilidade desse recurso de constitucionalidade (o primeiro recurso), por falta do pressuposto processual da suscitação 'durante o processo' da questão de inconstitucionalidade.
4. Chegados aqui, não teria interesse debruçarmo-nos sobre o aludido segundo recurso, uma vez que, não sendo admitido o primeiro e dizendo a questão nele colocada respeito ao efeito atribuído àquele primeiro no respectivo despacho de admissão, não haveria qualquer interesse em averiguar se o efeito que lhe foi atribuído foi o correcto ou não. Tanto bastaria para também não tomar o conhecimento daquele segundo recurso, por falta de interesse juridicamente relevante. No entanto, sempre se recordará que o recurso foi admitido com efeito devolutivo, quando a recorrente entendeu dever ser ele recebido com efeito suspensivo. Por isso mesmo, requereu a rectificação do efeito que lhe fora fixado, tendo, porém, tal requerimento sido indeferido. Ora, também neste caso, e noutra perspectiva, o recurso não pode ser admitido. E não o pode ser, também porque a questão de constitucionalidade não foi suscitada
'durante o processo', ou seja, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido sobre aquela matéria. Com efeito, só em casos excepcionais ou anómalos em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação de todo imprevista e inesperada, é que ainda é possível suscitar a questão de constitucionalidade após a prolação da decisão. Porém, a utilização dessa norma há-de ser de todo 'insólita' e 'imprevisível', sobre a qual seria desrazoável e inadequado exigir ao interessado um prévio juízo de prognose relativo à sua aplicação. Fora deste condicionalismo, ainda ao interessado é imposta a obrigatoriedade de suscitar a questão antes de proferida a decisão final sobre a mesma (para além da jurisprudência já referida, v. acórdão nº 596/96, no Diário da República, II Série, de 6 de Julho de 1996 e a jurisprudência que neste é indicada). Cabe, por isso, aos interessados o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, de modo a adoptarem as necessárias precauções para, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos, ou, por outras palavras, quem tem esse ónus deve adoptar uma estratégia processual adequada à criação da possibilidade de recorrer para o Tribunal Constitucional.
É evidente que, no caso dos autos, a recorrente, ao admitir que tinha sido confrontada com uma dessas situações insólitas e inesperadas, devia ter logo suscitado a questão no primeiro momento adequado para o efeito e esse momento fora a do requerimento em que pede a rectificação do efeito que foi atribuído ao recurso. Na verdade, neste momento, já ela tinha sido confrontada com o despacho que atribuíra ao recurso o efeito devolutivo. Sem haver lugar aqui a averiguar qual o efeito que devia ser-lhe atribuído, não se pode dizer que a recorrente fosse confrontada com uma situação de todo imprevista e insólita. Afirmar que a fixação do efeito devolutivo fora entendida como um mero lapso, pode significar não se prever que o lapso é de quem assim o entende. Efectivamente, ainda que fosse imprevisível da primeira vez, e de todo inesperada, a atribuição daquele efeito, não seria desrazoável, nem inadequado, exigir à interessada um prévio juízo de prognose relativo à sua confirmação. E, por isso, o momento adequado de suscitar a questão, a admitir que o efeito atribuído constitui um facto de todo insólito e inesperado, teria sido aquele em que requereu a rectificação do efeito. Após este momento, a suscitação da questão já seria efectuada intempestivamente. Por isso, também esta questão de inconstitucionalidade não foi suscitada
'durante o processo' e, consequentemente, não se pode tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade em causa. Tal conclusão levaria também à sua não admissibilidade, ainda que, por mera hipótese, o primeiro recurso devesse ser admitido.
5 Ouçam-se as partes, por cinco dias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo
2º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro'. B. Apenas respondeu àquela EXPOSIÇÃO a recorrente V..., Lda dela discordando, e nos termos que, por comodidade, passam a transcrever-se:
'2. A Recorrente aquando da reclamação da conta de custas apresentada referiu-se expressamente à questão da constitucionalidade e ilegalidade da aplicação, ao caso concreto da norma do CPC, que condena em custas a 'parte vencida'.
3. Esta questão foi suscitada no Supremo Tribunal de Justiça que foi quem proferiu a referida decisão baseando-se no facto de as referidas normas do C.P.C., mormente as dos artigos 669º, alínea b) e 153º, enquanto interpretadas no sentido de que, passados 5 dias da respectiva notificação, não é reapreciável e é irreparável a parte do Acórdão do S.T.J. que, por erro, condenou em custas, causando, assim, prejuízo a uma das partes.
4. Estas normas, assim aplicadas, violaram os princípios do Estado de Direito e o da Responsabilidade das Entidades Públicas (artigos 2º e 22º da Constituição).
5. Repete-se, foi nestes termos que a questão da constitucionalidade foi suscitada, ou seja, 'durante o processo', preenchendo, em nosso entender, os requisitos para apreciação pelo Tribunal Constitucional: o tribunal a quo estaria, ainda, em condições de conhecer da questão, pois que ainda não estava esgotado o poder jurisdicional (cfr. Acs. TC nº 123/89, de 25/ /01/89, in BMJ
383, 211; nº 109/90, de 18/04/90 in BMJ 396, 109; nº 210/90, de 19/06/90, in BMJ
398, 162, entre outros).
6. A Recorrente sublinha, ainda, o artigo 20º, nº 2 da Constituição que garante o acesso à via judiciária, o qual consiste no direito de recurso a um tribunal e dele obter uma decisão jurídica sobre toda e qualquer matéria juridicamente relevante.
7. Tal direito apenas existe quando se assegura aos sujeitos contra quem são dirigidas as pretensões a possibilidade de conhecimento do respectivo pedido.
8. Recorde-se que no presente caso a Recorrente viu-se a braços com uma conta de custas à qual não deu causa - nem sequer teve qualquer intervenção no processo - e, a manter-se a decisão a quo a mesma verá ser-lhe negada, por completo, a garantia de acesso à via judiciária' C. Cumprido o nº 1 do artigo 79º-B, da citada Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º da Lei nº 13-A/98 (nº 2 do artigo 6º da mesma Lei), cabe agora decidir. Remetendo para o essencial dos fundamentos da transcrita EXPOSIÇÃO, nomeadamente no que toca ao segundo recurso, por falta de interesse juridicamente relevante no seu conhecimento, e não conseguindo a recorrente abalá-los na sua resposta, há que apenas extrair a conclusão de que não se pode tomar conhecimento dos recursos de constitucionalidade em apreciação. D. Termos em que, DECIDINDO, não se toma conhecimento dos recursos de constitucionalidade e condena-se a recorrente nos autos, com a taxa de justiça fixada em 8 unidades de conta. Lisboa, 3 de Março de 1999- Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Bravo Serra Messias Bento Luís Nunes de Almeida