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Proc. nº 17/02
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório
1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora foi confirmado o acórdão do Tribunal da Comarca de Olhão que, entre outros, condenara, nos termos que se transcrevem, os ora recorrentes: A..., pela prática em co-autoria material: de um crime de associação criminosa, pp no art. 299º nº 3 do C.Penal, na pena de
5 anos e 6 meses de prisão; de vinte e oito crimes de furto qualificado (art. 202º, als. A), d), e) e f),
203º, nº 1 e 204º, nº 1, als. A) e f) do CP) sendo um deles na forma tentada, três crimes de furto de uso de veículo (art. 208º do CP), um crime de resistência e coacção sobre funcionário, pp no art. 347º do CP, um crime de dano qualificado, pp nos arts. 202º, al. B) e 213º al. A) do CP e um crime de detenção de armas e munições proibidas sob a forma consumada pp no art. 275º, nºs 2 e 3 do CP; em cúmulo jurídico na pena global de 25 anos de prisão, com excepção da que lhe foi aplicada pela prática de um crime de associação criminosa; Ao abrigo do disposto no art. 1º nº 1 da Lei nº 29/99 de 12 de Maio, sob a condição resolutiva do art. 4º do mesmo diploma, foram-lhe declarados perdoados três anos, um mês e quinze dias de prisão e, procedendo-se ao cúmulo jurídico da pena remanescente (21 anos, 11 meses e 15 dias de prisão) com a pena que lhe foi aplicada pela prática de um crime de associação criminosa, foi este arguido condenado na pena global final de 24 anos de prisão; F..., pela prática em co-autoria material de um crime de associação criminosa, pp no art. 299º nº 2 do C.Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; pela prática em co-autoria material de um crime de receptação, previsto e punido no art. 231º, nº 1 do CP, na pena de 12 meses de prisão; pela prática de um crime de receptação, previsto e punido no art. 231º, nº 1 do CP, na pena de 9 meses de prisão. Procedendo-se ao cúmulo jurídico das penas, à excepção da que lhe foi aplicada pela prática do crime de associação criminosa, foi a mesma condenada na pena global de 15 meses de prisão, tendo-lhe sido declarada perdoado 1 ano desta pena, ao abrigo do disposto no art. 1º, nº 1 da Lei nº 29/99, sob a condição resolutiva do art. 4º da mesma Lei. Efectuado o cúmulo jurídico da pena remanescente (3 meses) com a pena que lhe foi determinada com a prática do crime de associação criminosa (1 ano e 6 meses de prisão), foi esta arguida condenada na pena global final de 1 ano e 7 meses de prsão. Filipe José Gonçalves, pela prática em co-autoria material de um crime de associação criminosa, pp no art. 299º nº 2 do C.Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; pela prática em co-autoria material de quatro crimes de furto qualificado (art.
202º, als. d), e) e f), 203º, nº 1 e 204º, nº 1, e 2 als. als. a), e) e g) do CP). Em cúmulo jurídico, com excepção da pena que lhe foi aplicada pela prática do crime de associação criminosa, foi o mesmo condenado na pena global de 9 anos de prisão, tendo-lhe sido declarado perdoados 1 ano e 6 meses desta pena, ao abrigo do disposto no art. 1º, nº 1 da Lei nº 29/99, sob a condição resolutiva do art.
4º da mesma Lei. Efectuado o cúmulo jurídico da pena remanescente (7 anos e 6 meses de prisão) com a pena que lhe foi determinada com a prática do crime de associação criminosa (1 ano e 6 meses de prisão), foi o arguido condenado na pena global final de 8 anos e 3 meses de prisão.
2. Inconformados com esta decisão do Tribunal da Relação de Évora dela recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça os arguidos supra referidos, ora igualmente recorrentes, tendo, a concluir as suas alegações, dito, com interesse para o presente recurso de constitucionalidade, o seguinte: O arguido A ...:
'1º - face à convicção do Tribunal Colectivo, a prova essencial foi a declaração do co-arguido J...;
2º - A credibilidade dessa declaração foi mantida pelo Acórdão do Tribunal da Relação.
3º - Essa declaração desdobra-se em varias declarações feitas a agentes policiais, ao juiz de instrução do primeiro interrogatório judicial e em audiência de discussão e julgamento;
4º - A doutrina mais aceitável (Prof. Teresa Beleza) é no sentido de as declarações do co-arguido terem uma credibilidade diminuída, insuficiente para dar segurança probatória a uma condenação em julgamento.
5º - Só se sujeita a contra-prova e corroborada por outra pessoa, será suficiente para a convicção do tribunal.
6º - No caso concreto, a prova da declaração do co-arguido J... é insuficiente para a condenação do arguido, ora recorrente.
7º - A sua valoração, como elemento essencial da prova, constitui interpretação materialmente inconstitucional do art. 345º, nº 1, do CPP, por infringir o art.
32º, nºs 1 e 6 da CRP.
(...)
16º - Além disso, com o actual sistema de recursos consagrado no art. 433º e
410º, nº 2 do CPP, os poderes de cognição do STJ limitam-se à matéria de direito.
17º - O Tribunal da Relação só muito limitadamente – art. 430º, nº 1 CPP – pode reapreciar a matéria de facto.
18º - Está vedado ao STJ e ao Tribunal da Relação a reapreciação crítica da matéria de facto.
19º - Não há assim recurso da matéria de facto.
20º - Tais normas, consagradas naqueles dois preceitos art.s 433º e 410º, nº 2 e
430º, nº 1 – infringem o duplo grau de jurisdição consagrado no art. 32º, nº 1 da CRP.
21º - Estando feridas de inconstitucionalidade material
(...)'.
Os arguidos F... e G...:
'(...)
22º - Ao condenar os arguidos G.... e F...., ora recorrente, que não têm antecedentes criminais, em pena de prisão efectiva, além de não ter o douto tribunal, tanto na 1ª instância como na Veneranda relação de Évora, considerado o disposto nos artigos 32º da CRP e 70º, 71º e 50º do Código Penal, não considerou que os crimes doutamente imputados não são puníveis na forma negligentes e, em Portugal, funciona o princípio constitucional da presunção da inocência.
(...)
30º - Porque o princípio da livre apreciação da prova, e a consideração dos elementos probatórios, como a escolha da medida da pena, devem obedecer às disposições legais que se indicam de seguida, decidindo como fez o douto Colectivo a quo que confirmou o douto acórdão que condenou os recorrentes nos termos do douto acórdão de fls., foram violados os artigos 125º, 129º, 344º,
328-6 do CPP, 32º da CRP, 30º, 70º, 71º, 50º do CP.
(...)'.
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Outubro de 2001 (fls.
6507 a 6646), decidiu julgar improcedentes os recurso interpostos pelos ora recorrentes e confirmar, em relação a eles, a decisão do Tribunal da Relação de
Évora.
4. É desta decisão que vêm interpostos, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, os presentes recursos de constitucionalidade. Por parte do arguido A ... através de um requerimento que tem o seguinte teor:
'(...) Em conformidade com o disposto no artigo 75º-A do mesmo diploma [a Lei nº 28/92] pretende-se ver declarada a interpretação materialmente inconstitucional do preceituado no art. 345º, nº 1 do CPP, por infringir o preceituado no art. 32º, nº 1 e 5 da CRP. Nos mesmo termos pretende-se ver declarada a inconstitucionalidade dos artigos
433º, 410º, nº 2 e 430º, nº 1 do CPP, na medida em que dispõem que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, violando-se assim o princípio do duplo grau de jurisdição. A aplicação dos artigos 433º, 410º, nº 2 e 430º, nº 1 do CPP, colide com a norma prevista no art. 32º, nº 1 da CRP'.
Por parte dos arguidos F... e G..., através de um requerimento que concluem da seguinte forma:
'1º - Apesar de alegadas, douto acórdão ora em recurso violou o disposto nos artigos 345º, nº 1 do CPP e 32º, nº 1 e 6 da CRP, ao valorar como elemento essencial da prova as declarações do arguido J..., que não prestou juramento, e podia depôr como muito bem entendesse.
2º Ao não reapreciar a matéria de facto, e de acordo com o disposto nos artigos
433º, 410º, nº 2 e 430º, nº 1 do CPP, o douto acórdão ora em recurso violou o art. 32º, nº 2 da CRP, e o princípio da presunção de inocência de que gozam os arguidos em processo penal'.
5. Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído da seguinte forma: O arguido A ...:
'1º - Existe efectivamente nos presentes autos interpretação materialmente inconstitucional do art. 345º, nº 1 do CPP, por infracção do preceituado no art.
32º, nºs 1 e 5 da CRP. Porquanto,
2º - Foram consideradas e valoradas para efeitos de condenação, as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelo co-arguido J.... Sendo certo que,
3º - No actual sistema processual português vigora o princípio da livre apreciação da prova informado pela regra geral da admissibilidade de qualquer meio de prova, nos termos do art. 125º do CPP.
4º - a par deste princípio e no âmbito da mesma matéria vigora igualmente o princípio da investigação judicial, segundo o qual o julgador não está limitado a levar apenas em consideração as provas que lhe são apresentadas por outros sujeitos processuais, podendo ele mesmo proceder a investigação autónoma, em conformidade com o disposto no art. 32º, nº 2 da CRP.
5º - Apesar de se considerar que o depoimento de co-arguido em face das proibição de prova não consubstancia prova proibida, ou seja, é prova susceptível de apreciação pelo julgador.
6º - Também não pode deixar de ficar bem claro que tal prova é de reduzida credibilidade. Assim,
7º - Na esteira dos comentários doutrinais expendidos pela Ilustre Professora Teresa Beleza, esse tipo de prova poderá ter relevância suficiente para um indício de prova, mas certamente insuficiente para a necessária segurança probatória a uma condenação em julgamento. Deste modo,
8º - Dada a sua fragilidade, trata-se de uma prova que merece reservas e cuidados muito especiais na sua admissão e valor. Aliás,
9º - a impossibilidade do arguido depor sob juramento legal aliado ao seu direito ao silêncio corroboram a afirmação dessa diminuída credibilidade.
10º - A exigência legal de coerência de todas as confissões (art. 344º do CPP) revela que o julgador não deve ter demasiada confiança em situações de co-arguidos desavindos.
11º - Mesmo no âmbito do direito comparado, maxime, a doutrina italiana e alemã, impõem bastantes reservas face à valoração probatória de depoimento de co-arguido. Conclui-se pois,
12º - Que assentando a convicção do Tribunal e por isso da condenação na prova obtida através das declarações do co-arguido J..., sem suficiente corroboração por outros meios de prova válidos, existe no caso em apreço interpretação materialmente inconstitucional do aludido art. 345º, nº 1 do CPP, por infringir a regra inscrita no art. 32º, nº 1 e 5 da CRP. Acrescentando-se que,
13º - Com o actual sistema de recurso só em sede de reapreciação da prova poderia o recorrente ver reexaminados e reavaliados tais factos. Ora,
14º - O artigo 433º do CPP prescreve que sem prejuízo do disposto no art. 410º, nºs 2 e 3, o recurso para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito. Sendo que,
15º - Hoje está claramente afirmado o princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, por aplicação da regra geral garantística consagrada no art. 32º, nº
1 da CRP.
16º - O princípio constitucional do duplo grau de jurisdição implica que os factos e o direito sejam submetidos a nova apreciação por um tribunal de categoria superior.
17º - verifica-se, assim, com a redacção restritiva do art. 430º, nº 1 do CPP a inconstitucionalidade material desta norma por infracção da regra do art. 32º, nº 1 da CRP, por falta de reexame da matéria de facto.
18º - A doutrina reconhece que o direito a um duplo grau de jurisdição implica a existência de duas instâncias quanto à «matéria de facto» e de uma instância de revisão quanto a «questões de direito».
19º - O sistema de recurso perfilhado pelo CPP impede quanto aos limites cognitivos que o Tribunal da Relação reexamine a matéria de facto, ão permitindo deste modo a aplicação do duplo grau de jurisdição. Ora,
20º - A versão do art. 32º, nº 1 da CRP com a revisão de 1997, com a preposição
«incluindo o recurso» torn mais clara a abrangência garantística desta regra ao recurso e, designadamente, ao recurso da matéria de facto. Todavia,
21º - O art. 430º, nº 1 do CPP, conjugado com o art. 410º, nºs 2 e 3 do mesmo diploma, na medida em que limita os poderes de cognição do Tribunal da Relação, não garante o direito ao recurso em matéria de facto. Esta limitação infringe o art. 32º, nº 1 da CRP, pelo que o mencionado art. 430º, nº 1 está ferido de inconstitucionalidade material'.
Os arguidos F... e G..., por sua vez, limitaram-se a juntar aos autos o documento de fls. 6686 onde referem, unicamente, o seguinte: 'G... e F.. dão por integralmente reproduzidas as suas motivações e respectivas conclusões'.
6. Notificado para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, disse o Ministério Público - depois de sustentar que o recurso dos arguidos G... e F... deveria ser julgado deserto por falta de alegações - a concluir:
'1º - Não se mostra suscitada, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa quanto ao estatuído no art. 345º, nº
1, do Código de Processo Penal, já que o arguido não especificou qual a interpretação normativa de tal preceito que considera inconstitucional – sendo certo que a que intempestivamente delineou (apenas nas conclusões da as alegação) não foi a aplicada pelo acórdão recorrido.
2º - É manifestamente infundada a questão suscitada quanto às normas que regem sobre o âmbito do recurso interposto para o STJ – tidas como violadoras do princípio do duplo grau de jurisdição quanto à decisão sobre a matéria de facto
– num caso em que tal duplo grau de jurisdição já foi plenamente exercitado nos autos pela Relação, na sequência de impugnação deduzida pelos arguidos..
3º - Termos em que não deverá conhecer-se da primeira questão suscitada, julgando-se manifestamente improcedente a segunda'.
7. Por parte dos recorridos particulares não foi apresentada qualquer resposta.
8. Por despacho do Relator de fls. 6750 foram os recorrentes notificados para responderem às questões prévias suscitadas pelo Ministério Público.
9. Por parte do recorrente A ... foi apresentada a seguinte resposta:
'A inverificação dos pressupostos do recurso quanto à norma do art. 345º, nº 1 do CPP. Sustenta o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto que não se mostra suscitada em termos procedimentalmente adequados qualquer questão de inconstitucionalidade normativa quanto ao estatuído no art. 345º, nº 1 do CPP, já que o arguido não especificou qual a interpretação normativa de tal preceito que considera inconstitucional – sendo certo que a que intempestivamente delineou (apenas nas conclusões da sua alegação) não fo aplicada no acórdão recorrido. No entanto, não lhe assiste fundamento para tal invocação. Na verdade, o recorrente quer na delimitação do âmbito do recurso interposto quer nas alegações expendidas, claramente refere que pretende ver declarada a interpretação materialmente inconstitucional do preceituado no art. 345º, nº 1, do CPP, por infringir o preceituado no art. 32º, nº 1 e 5 da CRP. Porquanto, ao assentar a convicção do Tribunal e, por isso, da condenação na prova, nas declarações do co-arguido J...., trata-se de uma prova de per si insuficiente, na medida em que não existiu no caso em apreço a necessária e efectiva corroboração por outras provas válidas. Deste modo, preenchendo os requisitos de interposição de recurso exigidos pelos art.s 70º, nº 1 al. b) e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional e cumprindo o
ónus de explicitar a constitucionalidade da interpretação normativa que pretendia ver apreciada. Facto que, aliás, permitiu e conduziu à apreciação da mesma nas doutas alegações proferidas pelo Ministério Público, não obstante a invocação da não explicitação pelo recorrente. Termos em que não se verifica qualquer impedimento de apreciação do presente recurso devendo o mesmo seguir os seus termos até final'.
10. Por parte dos arguidos F... e G... não foi apresentada qualquer resposta.
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação
11. Os recursos interpostos por F... e G.... Já no Tribunal Constitucional foram os agora recorrente notificados para apresentarem as suas alegações, tendo-se limitado, em reposta àquela notificação, a juntar aos autos o documento de fls. 6686, onde referem, unicamente, o seguinte: 'G... e F... dão por integralmente reproduzidas as suas motivações e respectivas conclusões'. Ora, tal resposta é, manifestamente, insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus de apresentar alegações perante o Tribunal Constitucional. Não só porque os recorrentes nem sequer esclarecem a que motivações e conclusões se pretendem referir, mas, fundamentalmente, porque mesmo que pudesse aceitar-se que os recorrentes pretendiam remeter para as alegações e respectivas conclusões apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça, a verdade é que - como resulta evidente da transcrição supra feita das mesma na parte em que se invoca a violação de preceitos constitucionais - aquela peça processual não tem um conteúdo que possa considerar-se minimamente suficiente para que, por simples remissão para si, se possa considerar cumprido o ónus de alegar e formular conclusões perante o Tribunal Constitucional. Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, devem os recursos interpostos por estes recorrentes ser julgados desertos por falta de alegações
(cfr. art. 690º, nº 3 do CPC, aqui aplicável por força do art. 69º as LTC).
12. O recurso interposto por A ....
12.1 Questão prévia. Possibilidade de conhecer do objecto do recurso, na parte em que se pretende ver apreciada a constitucionalidade de uma determinada interpretação normativa do artigo 345º do Código de Processo Penal. O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que: a) o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica e que; b) não obstante, a decisão recorrida a tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso. No que se refere ao pressuposto de admissibilidade do recurso referido em 'a)' tem o Tribunal Constitucional afirmado, repetidamente, que nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um ou de vários preceitos. Porém, nesses casos, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo dos preceitos que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) 'tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de
1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental'. Entende o Ministério Público que tal ónus não foi suficientemente cumprido pelo recorrente, não tendo este explicitado, antes de proferida a decisão recorrida, a exacta interpretação normativa do artigo 345º, nº 1, do Código de Processo Penal, que considera inconstitucional. Vejamos. Para decidir esta questão importa ver em que termos é que a questão de constitucionalidade reportada ao artigo 345º, nº 1 do CPP, foi colocada pelo recorrente nas alegações de recurso que apresentou perante o Supremo Tribunal de Justiça. A concluir aquela peça processual disse o ora recorrente, designadamente, o seguinte:
'1º - Face à convicção do Tribunal Colectivo, a prova essencial foi a declaração do co-arguido J...;
2º - A credibilidade dessa declaração foi mantida pelo Acórdão do Tribunal da Relação.
3º - Essa declaração desdobra-se em varias declarações feitas a agentes policiais, ao juiz de instrução do primeiro interrogatório judicial e em audiência de discussão e julgamento;
4º - A doutrina mais aceitável (Prof. Teresa Beleza) é no sentido de as declarações do co-arguido terem uma credibilidade diminuída, insuficiente para dar segurança probatória a uma condenação em julgamento.
5º - Só se sujeita a contra-prova e corroborada por outra pessoa, será suficiente para a convicção do tribunal.
6º - No caso concreto, a prova da declaração do co-arguido J.... é insuficiente para a condenação do arguido, ora recorrente.
7º - A sua valoração, como elemento essencial da prova, constitui interpretação materialmente inconstitucional do art. 345º, nº 1, do CPP, por infringir o art.
32º, nºs 1 e 6 da CRP.
(...)'.
Da transcrição que antecede resulta que, ao contrário do que sustenta o Ministério Público, aqui recorrido, o recorrente identificou ali (designadamente nas conclusões 4ª a 7ª) em termos que podem considerar-se minimamente suficientes, a interpretação normativa do artigo 345º, nº 1 do CPP, que considera inconstitucional; a saber: a que não considerasse a credibilidade diminuída como meio de prova das declarações de um co-arguido e que permitisse valorar essas declarações como elemento essencial de prova, não corroborado por outros meios de prova. Isto dito, falta, contudo - e esta será a segunda parte da questão prévia suscitada pelo Ministério Público - apurar se a decisão recorrida efectivamente aplicou essa interpretação normativa, como ratio decidendi, no julgamento do caso. Vejamos o que, sobre esta matéria, se disse na decisão recorrida: A fls. 6546 e 6547 pode ler-se:
'Como é conhecido, a questão da valoração das declarações do co-arguido como meio de prova tem sido abordada pela doutrina e pela jurisprudência, cumprindo-nos enunciar e justificar, ainda que sinteticamente, o entendimento que seguimos relativamente a essa questão, para depois se tomar posição sobre os problemas concretos do caso que a tal respeito foram colocados pelo recorrente. Entendemos que não há obstáculo legal à valoração dessas declarações, em harmonia com os critérios que devem presidir à livre apreciação da prova nos termos do art. 127º do CPP, desde que garantido o necessário contraditório e que essa valoração tenha em conta os riscos de menor credibilidade que comportam essas declarações, pelas implicações resultantes da situação de imputação de responsabilidade criminal também ao declarante, circunstância a exigir prudência e o maior cuidado na procura de toda a «corroboração» possível (...) (sublinhado nosso).
Mais à frente, a fls. 6550 e 6551, acrescenta-se:
'Aceite a admissibilidade das declarações do co-arguido como meio de prova – ainda que a exigir especial cuidado na garantia do respectivo contraditório e na procura da maior corroboração possível por outros meios de prova, tudo com expressão suficiente na fundamentação da decisão de facto – apreciemos se os autos revelam essas cautelas determinadas pela posição especial do co-arguido, a envolver riscos de menor credibilidade. Entendemos que sim Tal como o douto acórdão do Tribunal da Relação considerou e acentuou, o douto acórdão da 1ª instância procedeu a uma pormenorizada fundamentação da decisão sobre os factos que considerou provados e não provados, quer através de notas de rodapé relativamente a cada um deles, quer pela cuidada análise crítica mais genérica das provas produzidas, análise essa explicativa do processo lógico-racional que conduziu à convicção do Tribunal Colectivo. Dessa fundamentação resulta que, embora as declarações do co-arguido J.... tenham sido um elemento fundamental na prova de muitos factos provados, o Tribunal teve a permanente preocupação de as confrontar com outros elementos de prova e as regras da experiência, com vista à sua corroboração.
(...). Sendo de assinalar factos não considerados provados por falta de suficiente corroboração concretizadora dessas declarações (cfr., v.g., notas 82 e 59). Assim, o douto acórdão do Tribunal da Relação, ora recorrido, ao decidir pela validade das declarações do co-arguido J... como meio de prova, não interpretou qualquer das normas aplicáveis, designadamente o disposto no invocado art. 345º, nº 1, do CPP, por forma violadora de qualquer norma ou princípio constitucional, nomeadamente os constantes do art. 32º, nºs 1 e 6'. Sublinhados nossos).
Do que antecede resulta claramente que a decisão recorrida não aplicou, como ratio decidendi, a interpretação normativa do artigo 345º, nº 1, do CPP, cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada pelo recorrente nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e que supra já identificamos. Tem, assim, inteira razão o Ministério Público quando refere, a dado passo da sua alegação, que perante a linha argumentativa utilizada na decisão recorrida, 'é evidente que não foi feita pelo acórdão recorrido a interpretação, pretensamente inconstitucional, que o recorrente refere na sua alegação perante o Tribunal Constitucional, já que o critério normativo acolhido em tal acórdão não implicou, nem o reconhecimento de que as declarações do co-arguido não devem merecer especiais cautelas na sua livre valoração pelo colectivo, nem que – no caso dos autos – não tenha ocorrido «suficiente corroboração por outros meios de prova válidos»'. E, não tendo a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, a interpretação normativa do artigo 345º, nº 1 do CPP, cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente, não pode, nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso.
12.2. Apreciação da questão de constitucionalidade reportada às normas dos artigos 410º, nº 2, 430º, nº 1 e 433º do Código de Processo Penal. Sobre esta questão deve começar por esclarecer-se que o recurso se deve ter por reportado apenas à norma extraída dos artigos 410º, nº 2 e 433º do Código de Processo Penal, uma vez que sendo estes os preceitos que delimitam os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no que se refere à possibilidade de reapreciação da matéria de facto, foram estes - e não o artigo 430º, nº 1, que delimita os poderes das Relações - os preceitos efectivamente aplicados pela decisão recorrida. Ora, delimitada a questão nestes termos, como deve sê-lo, ela não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem reiteradamente afirmado, nomeadamente a partir do acórdão nº 573/98 (publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Novembro de 1998), tirado em plenário, ao abrigo do nº 1 do artigo 79º-D da Lei nº 28/82 (embora com voto de vencido do ora Relator), que as mesmas não são inconstitucionais.
É, pois, a jurisprudência assim firmada, entretanto já reiterada em numerosos acórdãos, para cuja fundamentação se remete, que agora mais uma vez há que reiterar. III. Decisão Por tudo o exposto, decide-se: a. julgar deserto, por falta de alegações, o recurso interposto pelos arguidos F... e G...; b. não conhecer do objecto do recurso interposto pelo recorrente A..., na parte em que pretendia ver apreciada a constitucionalidade do artigo 345º, nº 1 do Código de Processo Penal; c. não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410º, nº 2 e 433º do Código de Processo Penal. Lisboa, 3 de Abril de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida