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Procº nº 314/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Nos autos de acção com processo especial para decretamento da falência que M..., S.A., fez instaurar pelo Tribunal de comarca de Braga contra S..., Ldª, o Juiz do 2º Juízo daquele Tribunal, por sentença proferida em 21 de Fevereiro de 1995, veio a denegar a falência.
Apelada tal decisão, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 12 de Fevereiro de 1996, veio a declarar a falência da requerida, o que motivou que a mesma viesse a interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Subidos os autos àquele Alto Tribunal, o Conselheiro Relator exarou, em 26 de Novembro de 1996, despacho propugnando por se não dever tomar conhecimento do recurso, e isso pela circunstância de ser de retirar do disposto nos artigos 129º e 228º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, que a decisão que decrete a falência não é impugnável por intermédio de recurso, antes o sendo por meio de embargos.
Notificada de tal despacho, pronunciou-se a Santos da Cunha, Ldª no sentido de dever o recurso de revista ser admitido, aduzindo, inter alia, que o Decreto-Lei nº 132/93 e, nomeadamente, os seus artigos 129º e
228º, eram organicamente inconstitucionais já que, tendo o processo de falência
'características especiais que o colocam na categoria de «questão sobre o estado das pessoas»', a respectiva edição incluir-se-ia na reserva legislativa exclusiva da Assembleia da República, sendo que a Lei nº 16/92, de 6 de Agosto, apenas cobriu 'aspectos fiscais, penais e a inibição para o exercício do comércio, não existindo qualquer autorização legislativa conferida pela Assembleia da República para o Governo poder legislar sobre questões relativas ao estado e capacidade das pessoas, quer no que diz respeito às questões substantivas ou materiais, quer ainda relativamente às questões adjectivas ou processuais'.
2. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 10 de Abril de 1997, não tomou conhecimento do recurso, tendo, na parte que ora releva, discreteado assim:-
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Em um primeiro segmento, a requerida, ora recorrente, sustenta que o que não admite impugnação por meio de recurso é a sentença (da primeira instância) que declare a falência. A lei é omissa quanto à hipótese de a sentença denegar a falência e ser a relação que, em apelação, a decrete. Neste caso, não havendo norma privativa para ela, no Dec-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, cabe a aplicação do regime geral dos recursos, nos termos do Cód. de Procº Civil.
Não é assim.
O artº 228 º, nº 1, do Código aprovado pelo Dec-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, deve ser interpretado em termos não puramente literais, antes em termos teleológicos: o recurso cabe da decisão, como se refere no artº 676º, nº
1, do Cód. de Procº Civil, independentemente de ter sido proferida por este ou aquele tribunal.
Assim, na economia do Código em apreço, a impugnação da decisão que decrete a falência faz-se por meio de embargos, independentemente de a falência ter sido decretada por este ou aquele tribunal, da primeira ou de outra instância, só da decisão sobre os embargos cabendo recurso - artºs 129º e 228º do citado Código.
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Dando de barato que a falência possa contender com o estado e capacidade das pessoas, o certo é que, na hipótese de que nos ocupamos, a da não admissibilidade da impugnação por meio de recurso da decisão que decrete a falência sem primeiro se lançar mão de embargos, diz respeito a uma questão puramente processual que não afronta, ela própria, o estado e capacidade das pessoas, que não acarreta qualquer diminuição das garantias de defesa do estado e capacidade das pessoas; isto, repete-se, tendo sempre presente que se não subtraiu a apreciação e decisão das questões substantivas que porventura respeitem ao estado e capacidade das pessoas à jurisdição dos tribunais superiores, por via de recurso, a interpôr da decisão que julgue os embargos.
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É deste acórdão que, pela Santos da Cunha, Ldª, vem interposto o vertente recurso com vista à apreciação da (in)constitucionalidade orgânica das normas constantes dos artigos 129º e 228º do D.L. nº 132/93.
3. Concluiu a recorrente a sua alegação do seguinte modo:-
'1ª. Os artigos 129º e 228º do Código aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
132/93, de 23 de Abril padecem de inconstitucionalidade;
2ª. O processo de falência tem características especiais, que o colocam na categoria de 'questão sobre o estado das pessoas', uma vez que da declaração de falência resultam para o falido consequências pessoais, denominadas de 'efeitos sobre a pessoa do falido';
3ª. Entre os efeitos pessoais da falência, destacam-se os seguintes: a) fixação de residência do falido (artigo 128, nº 1); b) Dever de apresentação pessoal em juízo artigo 149º); e c) Atribuição eventual de alimentos (artigo 150º, nº 1, todos do Código de Falências, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril).
4ª. Abrangendo o processo de falência legislação sobre questão relativa ao estado e capacidade de pessoas, questão essa que é da competência exclusiva da Assembleia da República, nos termos do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea a) da Lei Fundamental, haveria necessidade da existência de uma lei de autorização legislativa que facultasse ao Governo a possibilidade de legislar sobre esta matéria.
5ª. Tal autorização legislativa não foi dada. A Lei de autorização nº 16/92, de
6 de Agosto apenas cobre os aspectos fiscais, os penais, e a inibição para o exercício do comércio por parte do falido, não existindo qualquer autorização para o Governo poder legislar sobre questões relativas ao estado e capacidade das pessoas, quer no que diz respeito a questões materiais ou quer no que diz respeito a questões processuais.
6ª. O actual Código de Falências veio suprimir o recurso da decisão que decrete a falência de uma empresa, passando a aceitar a sua impugnação apenas através de embargos deduzidos nos termos dos artigos 129º e seguintes daquele diploma legal.
7ª. No âmbito da legislação revogada, a sentença que declarasse a falência de uma empresa poderia ser alvo de recurso de apelação (artigo 1182º do Código de Processo Civil) e alvo de oposição através de embargos (artigo 1183 e seguintes do Código de Processo Civil. Tais meios de impugnação poderiam até ser cumulados
(artigo 1183º, nº 3, do Código de Processo Civil).
8ª. Com o Código aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, a sentença declaratória da falência deixa de estar simultaneamente sujeita à dedução de embargos e à interposição de recurso. Por outro lado, pode acontecer que o recurso a interpor da decisão proferida sobre os embargos no Tribunal de 1ª Instância tenha apenas recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ficando limitada tal decisão a um grau de recurso.
9ª. Tais alterações legislativas podem afectar significativamente o estado e capacidade das pessoas, pois o falido deixa de poder contar com dois meios de impugnação da decisão declaratória da falência, passando a poder utilizar apenas um desses meios. Por outro lado, da decisão a proferir no Tribunal de 1ª Instância sobre os embargos, no caso de não ter sido apresentada qualquer prova ou desta ter sido rejeitada, perder-se-á ainda um grau de recurso, ficando a causa subtraída à jurisdição do Tribunal da Relação.
10ª. A questão não é puramente processual, ao contrário do que foi defendido pelo Douto Acórdão do S.T.J. de que se recorre. As alterações legislativas que foram introduzidas pelo Código de Falências encerram questão de natureza substancial.
11ª. Acresce que as decisões declaratórias de falência afectam ou podem afectar o estado e capacidade das pessoas, uma vez que parte dos seus efeitos dirigem-se directamente à pessoa do falido.
12ª. A inexistência de lei de autorização legislativa por parte da Assembleia da República a conferir poderes ao Governo para legislar no âmbito do estado e capacidade pessoas (artigo 168º, nº 1, alínea a) e artigo 164º, alínea e) da C.R.P.), acarreta a inconstitucionalidade formal do acto normativo em causa e, em consequência, das disposições legais supra referidas, ou seja, do artigo 129º e do artigo 228º do Código aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 132/93, de
23 de Abril'.
Por seu turno, a recorrida conclui a sua alegação do seguinte modo:-
'1) Os invocados efeitos 'pessoais' da declaração de falência - a fixação de residência, o dever de apresentação pessoal em juízo e a atribuição de alimentos
- não são mais do que meros reflexos das restrições impostas ao falido por razões essencialmente patrimoniais.
2) Tais restrições não põem em causa a índole essencialmente patrimonial do instituto da falência, representando meros reflexos pessoais de restrições patrimoniais.
3) Os efeitos 'pessoais' apontados pela Recorrente já estavam previstos no regime jurídico das falências instituído pelo Código de Processo Civil, o qual, nos seus arts. 1192º a 1195º estipulava, em moldes muito mais gravosos para o falido, a produção desses mesmos efeitos.
4) Para além dos invocados pela Recorrente, a declaração de falência tem ainda outro efeitos que se referem à actividade comercial do falido, tal como a perda do poder de administração e disposição da massa falida e a inibição do exercício do comércio.
5) A doutrina portuguesa tem discutido com algum interesse a questão de se saber qual a natureza das limitações ou restrições impostas ao falido como decorrência da declaração de falência, não as reconduzindo às situações de incapacidade, seja pelo valor negativo dos actos praticados pelo falido (válidos embora ineficazes enquanto que a incapacidade determina a anulabilidade), seja pelas entidades em cujo interesse o instituto da incapacidade é definido (as incapacidades são instituídas pela lei em benefício do próprio incapaz, enquanto que as limitações impostas pela falência têm subjacente a protecção de interesse público, maxime dos credores do falido e do comércio em geral).
6) A noção de estado deve reconduzir-se às várias posições típicas que têm repercussão sobre a capacidade das pessoas.
7) Nenhum dos efeitos (pessoais ou patrimoniais) decorrentes da declaração da falência se reconduz ao conceito da limitação da capacidade do falido, designadamente à noção de capacidade de exercício.
8) As matérias definidas na alínea a) do nº 1 do artº. 168º da CRP abrangem as relativas à capacidade civil, interdições, inabilitações e a maior parte do direito da família.
9) Assim, efeitos 'pessoais' referidos pela Recorrente não cabem, nem podem caber, no conceito de estado e capacidade das pessoas, porquanto não apresentam qualquer reflexo relativamente à sua capacidade.
10) Se assim não fosse, o conceito de 'estado e capacidade das pessoas', pela sua vastidão, seria apto a cobrir um infindável conjunto de situações, aplicando-se a todos os direitos atribuídos ou retirados da esfera jurídica de um determinado indivíduo ou entidade.
11) Logo, todos os diplomas emanados do Governo fundados em leis de autorização que não se referissem expressamente ao artigo 168º, nº 1, alínea a) da Constituição seriam inconstitucionais.
12) A lei de autorização legislativa nº 16/92 confere expressamente ao Governo autorização para que este determine a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, a dos seus administradores, para o exercício do comércio.
13) A par da perda de administração e disposição da massa falida, este é sem margem para dúvidas o mais destacado efeito da declaração de falência.
14) Os efeitos 'pessoais' invocados pela Recorrente são efeitos secundários e acessórios destas restrições acima referidas.
15) Se o Governo foi legitimamente habilitado a legislar em sede de inibição para o exercício do comércio, por maioria de razão está igualmente autorizado a legislar relativamente a aspectos que se podem considerar acessórios dessa mesma inibição, porquanto quem pode o mais, pode o menos.
16) Para além de tudo o mais, os efeitos 'pessoais' invocados pela Recorrente não constituem, sequer, uma inovação legislativa.
17) Ainda que se entenda que os efeitos 'pessoais' decorrentes da declaração de falência consubstanciam, efectivamente, uma questão relativa ao estado e capacidade das pessoas é preciso não esquecer que não é a
(in)constitucionalidade dos artigos relativos aos efeitos pessoais da declaração de falência que está em causa e em apreço no âmbito do presente recurso.
18) Nos termos do artigo 71º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional 'os recursos de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional são restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada'.
19) Assim, mesmo a merecer vencimento a tese defendida pela Recorrente nos presentes autos de recurso, apenas poderia ser declarada a inconstitucionalidade dos arts. 128º, nº 1, 149º e 150º, nº 1, do Código das Falências, sem que tal fosse susceptível de afectar a constitucionalidade e validade normativa dos demais preceitos insertos no aludido Código, maxime dos seus artigos 129º e
228º.
20) O disposto nos mencionados artigos 129º e 228º do Código da Falências não importam, de forma alguma, a diminuição dos meios de defesa do falido.
21) A supressão da via de recurso imediato da decisão que declara a falência é devida a óbvios e justificados motivos de economia e simplificação processual, sendo pretensão do legislador conferir ao Tribunal que declara a falência a 'possibilidade de repensar a decisão', podendo por esta via evitar-se a prática de determinados actos processuais que, mais tarde, se verificariam inúteis.
22) Numa primeira fase, a decisão da falência é atacável por via de embargos, os quais podem ser deduzidos com fundamento tanto em circunstâncias de facto como em razões de Direito, desde que, umas ou outras, afectem a regularidade ou a real fundamentação da decisão de falência.
23) Os embargos colocam, em certos casos, o juiz que os decide numa posição identica à que assume no recurso de Agravo.
24) Da decisão que julgar os embargos caberá recurso, no próprio sentido da palavra.
25) Assim sendo, a defesa da regularidade ou real fundamentação da sentença que decrete a falência não sofreu qualquer diminuição relativamente ao sistema processual pretérito.
26) A solução processual instaurada pelo Código das Falências não trata, pois, de negar ao falido a possibilidade de recorrer, mas apenas de estabelecer um determinado caminho para a impugnarão dessa decisão.
27) Trata-se, pois, de uma questão estritamente processual e, como tal, absolutamente inconfundível com o estado e a capacidade das pessoas, como aliás foi reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido neste processo, datado de 10 de Abril de 1997.
28) E o mesmo se diga relativamente à opção legislativa reflectida no nº 3 do art. 228º do Código das Falências, que só tem aplicação nos casos em que esteja apenas em causa matéria de Direito.
29) Nestas situações, a simplificação acarretada pela aludida norma é determinada por uma óbvia razão de celeridade e economia processual: a de se evitar a pendência do recurso para o Tribunal da Relação quando a parte derrotada pela decisão desta instância judicial certamente dela vai recorrer para o Supremo.
30) As inovações introduzidos pelo Decreto-Lei 132/93 de 23 de Abril no processo de falência são de todo insusceptíveis de pôr em causa ou limitar os direitos de defesa do falido, mas apenas pretendem que, de uma forma mais expedita e célere, se decida sobre a invocada (e, por vezes, já declarada) falência de uma entidade, para bem do falido, dos seus trabalhadores, credores e, ainda, para o comércio em geral.
31) A lei não pode permitir nem compactuar com situações em que uma entidade, embora efectivamente falida, actue no mercado, contrate com terceiros e assuma obrigações'.
Cumpre decidir.
II
1. Rezam assim os artigos questionados pela recorrente
:- Artigo 129º. Oposição de embargos à sentença
1- Podem opor embargos à sentença, quando haja razões de facto ou de direito que afectem a sua regularidade ou real fundamentação:
a) O devedor, desatendido na sua apresentação à falência, ou que, não se tendo apresentado para tal efeito, tenha sido declarado em situação de falência;
b) Qualquer credor que como tal se legitime;
c) O Ministério Público, nos casos em que os interesses a seu cargo o justifiquem:
d) O cônjuge, os ascendentes ou descendentes e os afins em 1º grau da linha recta da pessoa considerada falida, no caso de a falência se fundar na fuga do devedor relacionada com a sua falta de liquidez;
e) O cônjuge, herdeiro, legatário ou representante do devedor, quando a falência haja sido declarada depois da morte do falido ou quando o falecimento tenha ocorrido antes de findo o prazo para a oposição por embargos.
2 - Os embargos devem ser deduzidos dentro dos sete dias subsequentes
à publicação da sentença declaratória da falência no Diário da República.
3 - A dedução dos embargos suspende a liquidação do activo, sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 145º, bem como os termos do processo subsequente à sentença de verificação e graduação de créditos.
Artigo 228º. Recursos da decisão sobre os embargos
1- Da decisão sobre os embargos opostos à sentença declaratória da falência cabe recurso, que sobe imediatamente e em separado, com efeito meramente devolutivo; se a decisão sobre os embargos houver mantido a declaração de falência, a interposição do recurso suspende, todavia, a liquidação do activo, sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 145º, e suspende também os termos subsequentes à sentença de verificação e graduação de créditos.
2 - O recurso do despacho de indeferimento liminar sobre imediatamente, nos próprios autos dos embargos, que para esse efeito são desapensados.
3 - Sempre que não tenha sido oferecida prova ou que esta tenha sido rejeitada sem impugnação do recorrente, estando o valor da causa fora da alçada da Relação, o recurso das decisões proferidas sobre embargos pelo tribunal de 1ª instância sobe directamente ao Supremo Tribunal de Justiça.
Por outro lado, não se descortina no articulado do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril (rectificado na I Série-A do Diário da República de 31 de Julho de 1993) qualquer norma de onde se extraia que a decisão que decrete a falência pode ser impugnada por intermédio de uma qualquer das formas de recurso ordinário.
Aliás, no preâmbulo daquele diploma, refere-se expressamente:
'..................................................
...................................................
São também bastante significativas as alterações introduzidas na matéria dos recursos das decisões judiciais proferidas ao longo da acção.
Por um lado, a sentença declaratória da falência, por uma questão de justificada simplificação, deixa de estar simultaneamente sujeita, como sucede no direito vigente (artigo 1183º, nº 3, do Código de Processo Civil), à dedução de embargo e à interposição de recurso.
Passa a estar apenas sujeita à dedução de embargos, com fundamento tanto em circunstâncias de facto, como em razões de direito, regime que tem a vantagem de, além do mais, propiciar ao tribunal a possibilidade de repensar a decisão.
Da decisão dos embargos cabe recurso, seja qual for o seu sentido.
...................................................
...................................................
Da sentença que denegue a declaração de falência continua a caber recurso de apelação, mas a lei passa a determinar com toda a clareza a sua subida imediata nos próprios autos e o seu efeito meramente devolutivo.
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2. No caso sub iudicio, e como deflui da transcrição acima efectuada, o acórdão impugnado estribou-se nos artigos 129º e 228º do já citado Código.
Claro que, no que toca ao artº 228º, fê-lo para rebater a argumentação deduzida pela recorrente relativamente ao que se continha no despacho do Conselheiro Relator, argumentação essa segundo a qual o dito artº
129º, ao se reportar à oposição da decisão por meio de embargos, tinha em vista tão somente a sentença que decrete a falência prolatada em 1ª instância, e não um acórdão da relação que esse decretamento efectuasse no âmbito de uma apelação de sentença proferida em 1ª instância que decidisse no sentido de não declarar a falência.
O não conhecimento do recurso, esse sim, baseou-se no facto de o mencionado Código, como se extraía do seu artº 129º, não prever que a decisão que declare a falência pudesse ser censurada senão por intermédio de embargos.
Vale isto por dizer que o aresto ora impugnado, quanto à decisão nele ínsita - que foi a de não tomar conhecimento do recurso -, na realidade das coisas, suportou-se juridicamente na norma que se extrai da conjugação dos artigos 129º, nº 1, alínea a), e 228º, números 1 e 3, ambos do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, na medida em que dela resulta que naqueles processos a oposição à decisão que decrete a falência só pode ser feita por meio de embargos, ainda que tal decisão tenha sido proferida pelo tribunal de 2ª instância.
Será, pois, esta norma complexa a que constituirá objecto do vertente recurso.
3. Conquanto o não tivesse expressamente qualificado, retira-se da alegação que produziu que a recorrente, quanto à norma que agora se deixou delineada, pugna pela existência de um vício de inconstitucionalidade orgânica, no ponto em que, devendo o processo de falência ser colocado 'na categoria de 'questão sobre o estado e capacidade das pessoas', as matérias nele tratadas seriam da competência exclusiva da Assembleia da República, pelo que, inexistindo credencial parlamentar - como no caso não existiria -, não poderia o Governo editar diploma que sobre elas versasse, designadamente no que tange à supressão da impugnação da sentença que decrete a falência por meio de recurso ordinário.
Não se olvida que a impugnante, a dado passo, esgrime também com a circunstância de, não tendo nos embargos sido oferecido prova, ou de esta ter sido rejeitada, o recurso deles dever subir directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, como o que se teria suprimido um grau de jurisdição.
Todavia, esse esgrimir só será relevante - e assim será tratado neste acórdão - se, alcançada a conclusão de que o vício de inconstitucionalidade orgânica se não verifica (ou, o que é o mesmo, que de tal enfermidade não padece a norma que prescreve que a sentença que decreta a falência somente pode ser impugnada por meio de embargos), o sistema instituído pela norma em análise, estando em causa as hipóteses previstas no nº 3 do artº
228º, incorre em desconformidade material com a Lei Fundamental.
Tratar-se-á, por isso, em primeiro lugar, da alegada inconstitucionalidade orgânica.
4. Situando-se, como se situa, perante um recurso visando a fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, torna- -se evidente que não pode o Tribunal desligar-se do caso concreto que tem de apreciar.
Sendo assim, não se pode passar em claro que a norma de que se cura foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça num caso em que estava em questão o decretamento da falência de uma pessoa colectiva. E daí que, referentemente a tal norma, se tenha de ter em conta uma sua dimensão, qual seja a de saber se incorre a mesma no vício que ora analisamos quando aplicada a pessoas colectivas.
De facto, não é sustentável afirmar-se que a estatuição da alínea a) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, no tocante ao «estado das pessoas» é algo de aplicável às pessoas colectivas, vista a própria natureza das coisas, sendo seguro também que a própria locução «estado» ali empregue não poderá ser interpretada num sentido mais comum que abarque uma determinada situação como, verbi gratia, o «estado de falência» (cfr., sobre o conteúdo conceptual de «estado», Oliveira Ascenção, Teoria Geral do Direito Civil, I, 71 e segs.).
A questão que se porá, reside, desta arte, em saber se naquilo que concerne à «capacidade das pessoas» estão incluídas as matérias respeitantes à «capacidade civil» das pessoas colectivas - desde que se não trate de associações públicas -.
Comentando a alínea a) do nº 1 do artigo 168º da Constituição na redacção anterior à emergente da Lei Constitucional nº 1/97, de
20 de Setembro, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 672) anotam que ela 'abrange as matérias da capacidade civil, interdições e inabilitações e a maior parte do direito de família', o que parece apontar para que tal alínea tem em vista tão só as pessoas singulares.
Este Tribunal defende uma interpretação tal como aquela que, de certo jeito, é possível inferir do transcrito comentário.
Ora, numa tal postura, não se divisaria a necessidade de, para tratar legislativamente de matérias respeitantes ao decretamento da falência das pessoas colectivas, ser esse tratamento levado a efeito por diploma emanado pela Assembleia da República ou por diploma governamental precedido de autorização parlamentar.
E, se da declaração de falência porventura decorressem, para pessoas singulares, determinados efeitos com incidência na sua capacidade, nem por isso o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, quanto a esse particular, poderia ser visto como padecendo de vício de desconformidade orgânica com a Constituição, tendo em conta o que se dispõe no artº 4º da Lei 16/92, de 6 de Agosto, segundo o qual ficava o Governo autorizado
'a determinar a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial, associação privada de actividade económica ou empresa pública'.
Aliás, o efeito do decretamento da falência citados pela impugnante e decorrente da alínea a) do nº 1 do artº 128º, não é, seguramente, aplicável às pessoas colectivas e, de outro lado, a possibilidade de estipulação de alimentos a que alude o artº 150º não é, de modo óbvio, algo que afecte ou vá contra com o estado e capacidade do falido, uma vez que essa possibilidade, antes pelo contrário, representa um «benefício» e ele concedido. Por último, ainda quanto a este ponto, o dever de apresentação (no caso releva o respeitante aos administradores da pessoa colectiva declarada falida) pessoal no tribunal para prestar os necessários esclarecimentos, sempre que isso seja determinado pelo juiz ou pelo liquidatário, a que se reporta o artº 149º, também não é inserível em matéria que contenda ou afecte o estado e capacidade desses administradores. Por essas razões, a argumentação deduzida pela recorrente neste particular revela-se inapropriada para justificar o vício de inconstitucionalidade que assaca à norma que ora se aprecia (cfr., sobre o ponto, Oliveira Ascenção Efeitos da Falência sobre a pessoa e negócios do falido in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55, Dezembro de 1995, 641 a 688, e Luis Carvalho Fernandes, Efeitos substantivos da declaração de falência, estudo publicado na Revista Direito e Justiça, 19 a 49).
4.1. Seja como for, aquela norma é, visivelmente, uma norma de estrito âmbito processual, não contendendo, sequer, com qualquer limitação da capacidade da pessoa colectiva falida ou com os direitos e vinculações que os respectivos administradores, perspectivados como pessoas individuais, possam ou não exercer afora a consequência prevista no nº 1 do artº
148º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, plenamente autorizada a ser editada num diploma de origem governamental pelo artº 4º da Lei nº 16/92.
Ora, aquele âmbito processual, até porque não se insere de modo imediato e directo numa adjectivação de «institutos» ou matérias verdadeiramente substantivas que tenham a ver com questões ligadas qualquer reflexo sobre a já mencionada medida de direitos e vinculações que alguém, pessoalmente, possa exercer e cumprir, afastaria, numa visão de primeira linha, a necessidade da edição da norma pelo órgão parlamentar, fundada na sua reserva relativa de competência [e isto, claro está, independentemente de se saber se estando em causa, por exemplo, matérias ínsitas na alínea a) do nº 1 do artigo
165º da Constituição, a reserva parlamentar há-de abranger somente as suas regras materiais ou também as regras que aquelas adjectivem].
Em face do que se deixa dito, não conclui o Tribunal pela inconstitucionalidade orgânica da norma em apreço.
5. Perante uma tal conclusão, impõe-se enfrentar um outro problema, qual seja, justamente, o de saber se, unicamente se podendo deduzir oposição à sentença que declare a falência por meio de embargos, isso não representará, de uma banda, uma afronta de qualquer princípio decorrente do artigo 20º, nº 1 da Constituição - na medida em que foi suprimida um outro meio de reacção contra aquela decisão, meio esse que estava previsto no nº 3 do artº
1183º do Código de Processo Civil - e, de outra, dando-se resposta negativa a essa «sub-questão», se, estando em causa o condicionalismo previsto no nº 3 do artº 228º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a supressão de recurso dos embargos para o tribunal da relação também não afectará um daqueles princípios.
A ambas as «sub-questões» do problema que ora se equaciona e que, no fundo, se reconduzem a uma só, dá o Tribunal resposta negativa.
5.1. Na verdade, este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa tem tido uma jurisprudência impressiva sobre a denominada garantia da via judiciária quando traduzida no direito ao recurso que, incluído no mais vasto direito de acesso aos direito e aos tribunais prescrito no artigo 20º da Lei Fundamental, seria, para se usarem as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., 164), 'traduzido no direito ao duplo grau de jurisdição'.
Segundo essa jurisprudência, esse direito não tem de ser perspectivado como ilimitado em todas as matérias e, não estando em causa, nomeadamente, matérias do âmbito criminal - que postularão, em nome das garantias de defesa que o processo criminal deverá assegurar ex vi do nº 1 do artigo 32º do Diploma Básico, um segundo grau de jurisdição tocantemente a sentenças penais condenatórias -, inscreve-se na liberdade conformadora do legislador a ampliação ou restrição das existentes formas de impugnação das decisões judiciais ou a adopção de outras, sendo que, de todo o modo, porque aquele Diploma prevê a existência de tribunais de recurso, o que, neste particular, estará vedado àquele legislador é, tão só, a supressão global dos recursos (cfr., por todos, o Acórdão deste Tribunal nº 287/90, publicado na 2ª Série do Diário da República, de 20 de Fevereiro de 1991).
Pois bem.
In casu, está devidamente assegurada a impugnação da decisão que declare a falência - por embargos, de cuja decisão cabe recurso ordinário nos termos gerais - não sendo, pois, pela supressão do recurso ordinário que se encontrava previsto no nº 3 do artº 1183º do Código de Processo Civil que ficará coarctada a possibilidade de defesa contra actos jurisdicionais por intermédio de recurso para outros tribunais. Por outro lado, a modelação que o legislador pode levar a cabo quanto aos recursos, aponta também para que, em matérias como as ora em apreço, não seja constitucionalmente insolvente norma que estatua que, não se pondo em causa matéria de facto, o recurso seja interposto directamente para o tribunal de revista.
III
Perante o exposto, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 7 de Julho de 1998 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida