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Proc. nº 757/97
1ª secção Rel.: Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional I. Relatório:
1. M...,Lda. interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, recurso contencioso de anulação do despacho do Director-Geral dos Transportes Terrestres que outorgou uma concessão de carreira de serviço público, a que se julgava com direito, à empresa A.,Lda.. Por sentença de 3 de Dezembro de 1993, daquele Tribunal, foi-
-lhe negado provimento ao recurso. De tal decisão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por Acórdão de 5 de Dezembro de 1996, também lhe negou provimento, invocando jurisprudência anterior no sentido de que
'se o recorrente, na alegação e respectivas conclusões, não puser em causa os fundamentos da sentença, imputando-lhe concretas violações da lei, e se limita a reeditar a arguição dos vícios já apontados ao acto no recurso contencioso, o recurso jurisdicional (tem) de improceder.' Indeferida, por Acórdão do mesmo Tribunal, de 30 de Abril de 1997, a aclaração da anterior decisão, veio a recorrente apresentar recurso, do último Acórdão, para o Tribunal Constitucional, com um triplo fundamento: a. o de que o acórdão recorrido 'mantém uma interpretação inconstitucional dos arts. 66º, 123º, nº 2, 124º e 125º do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, bem como do artigo 101º do Regulamento de Transportes em Automóveis, aprovado pelo Decreto nº 37272, de
31 de Dezembro de 1948.'; b. o de que o 'acórdão recorrido violou as alíneas e) e f) do artigo 81º e as alíneas a) e c) do artigo 102º da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 207º e 266º , nº 2, da mesma Constituição.'; e c. o de que o 'Acórdão recorrido, com base em, salvo o devido respeito, não demonstrada invocação de que as alegações não põem em causa a sentença recorrida, quando o contrário resulta dos autos, está a proceder a interpretação que viola o artigo 214º, nº 3, e, especialmente o artigo 268º, ns. 4 e 5, da Constituição da República Portuguesa.'
2. O recurso não foi admitido, escrevendo-se, designadamente, no despacho de inadmissão do Conselheiro-relator do Supremo Tribunal Administrativo, que o
'acórdão em causa negou provimento ao recurso jurisdicional, com o único fundamento da falta de referência crítica, nas alegações do recorrente, à decisão jurisdicionalmente impugnada, que por essa razão se entendeu não ter sido posta em causa.', e que o 'acórdão não contém, pois, em rigor, qualquer pronúncia sobre as questões de inconstitucionalidade, ou quaisquer outras, não mantendo, nem deixando de manter, qualquer interpretação de normas acolhida na sentença que foi objecto do recurso jurisdicional, e que possa ser objecto de censura do Tribunal Constitucional.' Inconformada, a recorrente socorreu-se da reclamação prevista e regulada nos artigos 76º, nº 4 e 77º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para obter a reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, do despacho de indeferimento do recurso. Em vista do processo, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto aqui em funções pronunciou-se pela improcedência da reclamação, embora por razões diversas das da decisão reclamada.
3. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II.Fundamentos:
4. Uma vez que o recurso de inconstitucionalidade que se pretende interpor foi intentado ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, a sua admissão exigiria a verificação, cumulativa, dos três requisitos de tal tipo de recursos de constitucionalidade: suscitação, durante o processo, de uma inconstitucionalidade normativa; aplicação dessa norma, com o sentido alegadamente inconstitucional, como critério de decisão do caso; esgotamento prévio dos recursos ordinários à disposição do recorrente. Ora, muito embora do despacho do relator não tenha havido reclamação para a conferência do Supremo Tribunal Administrativo, dúvidas não se suscitam quanto ao preenchimento do último requisito apontado: o artigo 700º do Código de Processo Civil - diploma subsidiariamente aplicável às reclamações dirigidas ao Tribunal Constitucional por força do artigo 69º da sua Lei de Organização, Funcionamento e Processo - exclui, no seu nº 3, os casos regulados no artigo
688º do Código de Processo Civil (ou seja, os despachos de não admissão ou retenção de recurso) do elenco dos despachos que, não sendo de mero expediente, são reclamáveis para a conferência.
5. Entendeu-se, no despacho recorrido, que falecia, no caso, o segundo dos requisitos enumerados: o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Dezembro de 1996 (ainda que eventualmente - porque o despacho é omisso nesse ponto - integrado pelo de 30 de Abril de 1997) não se teria pronunciado sobre a interpretação de nenhuma das normas que fundamentava o acto administrativo inicialmente recorrido, nem, sequer, sobre as que a decisão do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto tivera por aplicáveis ao caso: a decisão assentara numa outra ordem de considerações, a saber, a inexistência de um pressuposto 'formal' de apreciação da decisão recorrida (a referência crítica, nas alegações do recorrente, à decisão jurisdicionalmente impugnada). Deve entender-se que as reclamações sobre rejeição dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional se destinam a verificar uma eventual preterição da devida reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade. Assim, importará menos apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso do que o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor. Deste modo, no caso concreto pode dispensar-se a discussão sobre se a decisão recorrida aplicou, ainda que implicitamente - ou se, em todo o caso, devia ter aplicado - as normas arguidas de inconstitucionais: é que, em primeiro lugar, não restam dúvidas que não está preenchido o primeiro dos requisitos atrás enunciados, consistente na suscitação, durante o processo, de uma inconstitucionalidade normativa; e, em segundo lugar, uma vez que não se suscitou autonomamente a questão da inconstitucionalidade dos artigos 26º, nº 1, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do artigo 690º nº 1 do Código de Processo Civil - normas que verdadeiramente fundamentam a decisão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Dezembro de 1996 na interpretação que delas fez o Pleno da Secção e que em tal decisão foi reiterada
- sempre a conclusão a que este Tribunal eventualmente chegasse sobre a inconstitucionalidade de tais normas seria insusceptível de se projectar na decisão do caso. O que, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, manifestamente inviabilizaria a pretensão do recorrente, e redobradamente confirma o despacho recorrido (cfr. o artigo 76º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
6. Vejamos, então, porque não está preenchido o primeiro requisito dos recursos de constitucionalidade intentados, como o presente, ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: por um lado, suscitar a inconstitucionalidade de uma norma implica imputar a desconformidade com a Constituição não ao acto de aplicação do Direito - concretizado num acto de administração ou numa decisão dos tribunais - mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão
(cfr. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996). Ora, dos três fundamentos do recurso de constitucionalidade interposto, logo resulta que o segundo e o terceiro imputam a desconformidade constitucional ao próprio acórdão recorrido, sem qualquer mediação normativa. Da violação, pelo dito acórdão, das alíneas e) e f) do artigo 81º, das alíneas a) e c) do artigo
102º, dos artigos 207º e 266º nº 2, e de uma interpretação, do mesmo acórdão resultante, em violação dos artigo 214º, nº 3 e 268º, nºs. 4 e 5, da Constituição, não haveria este Tribunal de cuidar, porque as suas competências se limitam a um controlo normativo e nenhuma norma há aqui a interpor-se entre a decisão e o padrão constitucional. Por outro lado, suscitar a questão da inconstitucionalidade (normativa) durante o processo não é - como, aliás, unanimemente se entende - fazê-lo antes de terminado o processo, mas sim num momento em que a questão da constitucionalidade ainda possa ser conhecida, em termos de sobre ela o tribunal a quo se vir a pronunciar. Como se decidiu no Acórdão nº 352/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve entender-se a exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', 'antes de esgotado o 'poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'. É este o único sentido do dito requisito que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação, portanto, de uma questão suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela (ver também o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995). Esta orientação, como também se salientou nos Acórdãos citados, apenas em circunstâncias excepcionais, anómalas (cfr., v.g., os Acórdãos deste Tribunal n.ºs. 94/88, 51/90, e 61/92, publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988, 12 de Julho de 1990 e 18 de Agosto de 1992, respectivamente) se admite diferir para o momento da interposição do recurso de constitucionalidade a definição da questão de constitucionalidade que se quer ver apreciada. Pressuposto do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - e, portanto, condição da sua admissão neste Tribunal –
é, pois, que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada perante o tribunal a quo antes de este ter esgotado o seu poder jurisdicional para a apreciar. Ora, ainda que as alegações do recurso da recorrente para o Supremo Tribunal Administrativo - momento idóneo para suscitar a questão - se referissem a uma
'interpretação inconstitucional', faziam-no de modo totalmente inadequado:
' U) Aliás, uma interpretação do Regulamento de Transportes de Automóveis (sic) que permitisse uma decisão que não fundamentasse a preterição do requerente inicial e se baseasse na repetição indevida de formalidades, na alteração de pressupostos, ilegítima e desconhecida do recorrente, e na atribuição a situações de facto constituídas consequências mais desfavoráveis do que aquelas com que a requerente podia e devia contar, seria inconstitucional, por lesão das disposições constitucionais da defesa da concorrência e dos princípios constitucionais da imparcialidade e da proporcionalidade;' Assim, falha totalmente o primeiro fundamento do requerimento de recurso de constitucionalidade apresentado pela recorrente: a invocada interpretação inconstitucional dos artigos 66º, 123º, nº 2, 124º e 125º do Código de Procedimento Administrativo não poderia ser apreciada pelo Tribunal Constitucional por ser questão nova, não decidida, sequer implicitamente, pelo tribunal a quo, porque só perante este Tribunal foi suscitada. E a invocada (nas alegações de recurso para o STA) inconstitucionalidade do Regulamento de Transportes em Automóveis, só concretizada (artigo 101º) no mesmo requerimento de recurso, também não poderia ser apreciada, porque igualmente não foi decidida pelo tribunal a quo, nem teria de o ter sido (caso se pudesse ter por ilegítima a decisão da questão por razões formais). Como se salientou no referido Acórdão n.º 155/95 há 'um tempo e um modo processualmente adequados de suscitar a questão de constitucionalidade. A questão de constitucionalidade não se suscita em tempo e de modo processualmente adequado [...] quando se indicam como inconstitucionais todas as normas de um diploma legal [...] ou as normas de todo um título, relativamente extenso, de um Código' (no mesmo sentido, também, v.g., o Acórdão n.º 126/98, publicado no Diário da República, II Série, de 05 de Maio de 1998) – isto, pelo menos, em regra, quando a inconstitucionalidade em causa é uma inconstitucionalidade material. O ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade normativa com suficiente clareza para que o tribunal a quo soubesse que lhe era solicitado um primeiro juízo sobre a constitucionalidade de uma norma, não foi, portanto, cumprido pela ora reclamante.
7. Assim, porque, designadamente, não foram suscitadas durante o processo as questões de inconstitucionalidade postuladas no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, não estava este em condições de ser admitido. III. Decisão: Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação, condenando-se a recorrente em custas no montante de 10 UCs. Lisboa,2 de Julho de 1998 Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Artur Mauricio Vitor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida