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Proc. nº 277/97
1ª Secção Rel.: Consº Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional I
1. - C..., identificada nos autos, foi acusada, na comarca do Funchal, da autoria material de um crime de falsificação, previsto e punido pelo artigo
233º, nº 2, do Código Penal, na sua versão originária. Notificada editalmente, nos termos do artigo 335º do Código de Processo Penal
(CPP), veio arguir a nulidade de todo o processado posterior à acusação uma vez que, por inépcia dos serviços, segundo alega, não foi notificada pessoalmente daquela peça processual, não obstante ter indicado, ainda na fase de inquérito, a sua morada certa. O incidente foi, no entanto, indeferido, por despacho de 24 de Junho de 1996, e ordenado o julgamento. Recorreu a arguida dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, recurso que foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo, com base no disposto no nº 2 do artigo 407º do Código de Processo Penal (CPP). No Tribunal da Relação, porém, o Desembargador relator, por despacho de 26 de Fevereiro de 1997 (fls. 75), discordou que a retenção do recurso o tornasse absolutamente inútil - como, de modo implícito, decorria da decisão do juiz a quo - e, em conformidade, considerou não se dever tomar conhecimento do recurso, por ser este de subida prematura, dado o regime a observar ser o do nº 3 do citado artigo 407º. E a conferência, em acórdão da mesma data (fls. 77 e segs.) deliberou, em consonância, não conhecer do recurso, alterando o regime de subida do mesmo, que passou para diferido, a subir ?com o que vier a ser interposto da decisão que ponha termo à causa, altura em que será apreciado?. Notificada, arguiu a interessada a nulidade do acórdão, nomeadamente por, em seu entender, a interpretação sufragada do nº 2 do artigo 407º violar o comando do nº 1 do artigo 32º da Constituição da República (CR): na verdade, observa, não pode dizer-se que assegure todas as garantias de defesa um processo penal que não reconheça um meio expedito de reacção contra uma decisão judicial que cerceia a um arguido o direito que este julga assistir-lhe a requerer a instrução, o que seria ainda inconstitucional pela razão acrescida de que se estaria a impossibilitar uma fase processual que o legislador constituinte quis de forma efectiva. A arguição de nulidade foi, no entanto, desatendida por acórdão de 9 de Abril de
1997 (fls. 88 e segs.). Aí, após sublinhar que a arguida não invoca a falta de qualquer das menções enunciadas nos nºs. 2 e 3, alínea b), do artigo 374º do CPP, a que se refere a alínea a) do artigo 379º do mesmo texto, o que logo bastaria para desatender a arguição suscitada, adianta radicar-se a razão de ser da discordância com o decidido no entendimento atribuído à locução ?recursos cuja retenção os torna absolutamente inúteis?, o mesmo que reina, sem discrepância, no âmbito do processo civil, reconduzindo-se a questão à interpretação de uma regra de direito - o segmento normativo de parte do nº 2 do artigo 407º do CPP - interpretação a que a arguida não adere. De resto, não se reconhece vício de inconstitucionalidade, na interpretação adoptada, por ofensa aos direitos de defesa garantidos pelo artigo 32º da CR; quando muito adviriam incómodos que, de qualquer modo, não preterem nem se sobrepõem ?ao feixe de direitos inseridos no direito constitucional de defesa?.
2. - Reagiu a arguida, atravessando requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que este aprecie a constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 407º do CPP, ?na interpretação que a esta foi adoptada no Acórdão recorrido e naquele anteriormente proferido?, em sua tese desconformemente ao disposto no artigo 32º, nº 1, da CR. E, acautelando-se da eventual alegação de intempestividade da suscitação da questão, logo refere ter sido esta equacionada face à ?decisão-surpresa? constante do primeiro acórdão, mediante a invocação da nulidade nos termos em que o fez. O recurso viria a ser recebido, tendo, neste Tribunal alegado a recorrente e o Ministério Público. Condensa aquela as suas alegações do seguinte modo: compete ao intérprete, no âmbito do processo penal, interpretar as normas convocadas para derimir uma determinada situação, de forma a torná-las conformes
à Constituição; a esta luz e à dos valores programáticos constitucionalmente estabelecidos a propósito do processo penal, a interpretação da norma questionada deve ser no sentido de admitir a subida imediata dos recursos penais das decisões interlocutórias que briguem com os direitos, liberdades e garantias; este é, justamente, o caso dos autos: trata-se do conhecimento imediato de um recurso de decisão proferida no decurso de um processo que entendeu ter sido a arguida devidamente notificada da acusação nele proferida; ora, é fulcral, do ponto de vista garantístico, que o arguido tenha efectivo conhecimento da acusação, até para poder lançar mão, se assim o entender, da fase da instrução, cuja existência é constitucionalmente prescrita; só o conhecimento imediato do recurso assegura, de forma efectiva e eficaz, todas as garantias de defesa; não sendo a norma interpretada - como não foi - no sentido de que os recursos sobre decisões atinentes a direitos, liberdades e garantias perdem qualquer utilidade se não forem imediatamente julgados, viola-se o disposto no nº 1 do artigo 32º da CR.
Por seu lado, outro é o entendimento defendido pelo Ministério Público nas suas alegações, manifestando-se pela improcedência do recurso, para o efeito concluindo:
'A norma do artigo 407º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretada em termos de apenas subir diferidamente o recurso em que se questiona a validade do acto de notificação edital da acusação à arguida, por a sua retenção o não tornar absolutamente inútil, não viola, de forma inadmissível, as garantias de defesa, a presunção de inocência do arguido nem a igualdade de armas em processo penal.' Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II
1. - Coloca-se, desde logo, o problema da suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade. Com efeito, o recurso foi interposto com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, norma que, ao reproduzir o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição da República, exige, como pressupostos de admissibilidade desse tipo de recurso, que a recorrente tenha suscitado durante o processo a inconstitucionalidade de uma dada norma - no seu todo ou em parte, ou numa certa dimensão interpretativa - e que esta tenha sido aplicada na decisão recorrida como seu fundamento decisório. Ora, constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal entender a locução durante o processo não em sentido puramente formal - que tornaria possível a suscitação da questão até à extinção da instância - mas com um sentido funcional que permita ao tribunal recorrido ainda dela conhecer antes de esgotado o seu poder jurisdicional o que, em princípio, ocorre com a prolação da sentença. Esgotado esse poder jurisdicional com a prolação da sentença ou do acórdão e não constituindo a eventual aplicação de norma inconstitucional um erro material, nem sendo causa de nulidade da decisão judicial, nem a tornando obscura ou ambígua, considera-se que a aclaração da decisão judicial ou a arguição da sua nulidade não são já, por via de regra, momentos idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade (cfr., por todos, os acórdãos nºs.
479/89, 61/92 e 1124/96, publicados no Diário da República, II Série, de 24 de Abril e 18 de Agosto de 1992 e 6 de Fevereiro de 1997, respectivamente). Ressalvam-se, no entanto, aqueles casos, excepcionais ou anómalos, em que o interessado não chegou a dispor de oportunidade processual para equacionar o problema ?a tempo?, nomeadamente quando colocado perante uma interpretação normativa de tal modo surpreendente ou insólita que não seria razoável exigir-lhe a observância desse ónus de suscitação atempada. No caso vertente, só em face do acórdão de 26 de Fevereiro de 1997, que não tomou conhecimento do recurso por o julgar de subida prematura, é que a recorrente veio convocar uma interpretação da norma do nº 2 do artigo 407º que entende inconstitucional e a surpreendeu. Aceita-se, no entanto, não lhe ser exigível que, recebido inicialmente o recurso para subir de imediato (implicitamente se reconhecendo que a sua retenção o tornaria absolutamente inútil), devesse prever que outro entendimento poderia prevalecer na Relação, adiantando, assim, argumentação que, prevenidamente, o rebatesse. Sem prejuízo de, em princípio, sobre as partes recair o ónus de adopção de uma estratégia processual articulável com as várias possibilidades interpretativas das normas em causa, de modo a manter aberta a via do recurso, dir-se-á não ser razoável, na circunstância, um grau de exigência tal que obrigue a contemplar as eventuais consequências de uma alteração de critérios quanto ao regime de subida do recurso. Assim sendo, conclui-se no sentido da tempestividade, in casu, da suscitação da questão de constitucionalidade.
2. - Num segundo momento, importa delimitar a dimensão interpretativa da norma sindicanda, posta constitucionalmente em crise. Defende a recorrente que o tribunal a quo, na medida em que adoptou uma leitura da norma do nº 2 do artigo 407º do CPP iluminada pelo entendimento correntemente concedido ao preceito paralelo do artigo 734º, nº 2, do Código de Processo Civil, procedeu a uma ?transposição apriorística e acrítica? que não tem em conta as diferenciadas teleologia e natureza dos dois processos e impõe uma interpretação restritiva que se reflecte no plano constitucional garantístico - assim desrespeitando as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, nos termos do nº 1 do artigo 32º da CR, incluindo o direito de recorrer, explicitamente mencionado desde o texto da IV Revisão Constitucional. Na verdade, perante a inexistência de uma noção legal do que seja a retenção de um recurso por absoluta inutilidade, o acórdão - observa - arrima-se a uma argumentação radicada na lei processual civil, o que se compreende, se se tiver presente ter sido a norma do nº 2 do artigo 407º inspirada no citado nº 2 do artigo 734º do CPC - de resto, já observável no domínio do Código de Processo Penal de 1929, mercê do disposto no § único do seu artigo 1º. Será inconstitucional a interpretação acolhida?
3. - A absoluta inutilidade dos agravos retidos - ponderou-se no acórdão nº
208/93, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1993, com apoio jurisprudencial - deve corresponder a situações em que da sua retenção resulte, no processo, a inexistência de qualquer eficácia, na hipótese do seu provimento, ou seja, a situações em que, ainda que a decisão do tribunal superior seja favorável ao agravante, não possa este dela se aproveitar, aqui se incluindo os casos em que a retenção produza um resultado oposto ao efeito jurídico que o recorrente quis alcançar com a interposição do agravo, não se abarcando, consequentemente e por outro lado, os casos em que o provimento do recurso possa conduzir a inutilização ou reformulação de actos processuais entretanto publicados. Dito por outras palavras, se assim se preferir, verifica-se a inutilidade sempre que o despacho recorrido produza um resultado irreversível, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, não bastando uma mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual (cfr., a este respeito, v.g., Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1994, pág. 236); Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, pág. 535).
É razoável e não arbitrário ou, de qualquer modo, constitucionalmente censurável que, a esta luz, o legislador ordinário, sem coarctar o direito de recorrer, possa estabelecer elencos de hipóteses sujeitas a subida imediata, distinguindo-as de outras, compatíveis com uma subida diferida, por inexistirem motivos relevantes determinativos da subordinação imediata à apreciação do tribunal superior. No citado acórdão nº 208/93, ponderou-se a razoabilidade da liberdade de conformação do legislador, neste domínio, para estabelecer distinções consoante estejam em causa, ou não, exigências de resposta célere e se avalie o peso do desvalor que o ?arrastamento? da situação processual pode provocar. Como então se escreveu, nessa diferenciação encontra-se fundamento material bastante,
?baseado num valor a que a Constituição não pode ser alheia - qual seja o da celeridade na administração da justiça - que razoável e justificadamente (e, por isso, não se colocando como arbitrário), suporta uma opção legislativa consistente em, de harmonia com o conteúdo dos despachos e decisões judiciais e perante o seu reflexo nos diversos itens processuais, condicionar a subida dos agravos a momentos imediato ou diferido?. A subida diferida dos agravos constitui, aliás, a regra, assim se pretendendo que a marcha do processo seja minimamente perturbada, justificando-se a subida imediata quando ocorra ?a necessidade irrecusável de celeridade (de imediateza) na solução de um conflito interlocutório? (cfr., Fernando Luso Soares, O Agravo e o Seu Regime de Subida, Coimbra, 1982, pág. 295). A norma do nº 2 do artigo 407º do CPP já foi objecto de apreciação da jurisprudência constitucional. Assim, no acórdão nº 474/94 - publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Novembro de 1994 - entendeu-se que a subida diferida do recurso em que se discute a validade do acto ou decisão que determina o prosseguimento do processo penal para a fase do julgamento não afecta as garantias de defesa do arguido - que, face ao provimento do recurso, sempre verá a sua posição ser reconhecida jurisdicionalmente - nem tão pouco o princípio da presunção da sua inocência, uma vez que se mantém inalterado o estatuto do arguido, permitindo, até, que, com um julgamento mais célere, se defina a posição deste face aos factos apurados. Reiterou-se, então, jurisprudência anterior nos termos da qual não estabelece a Constituição qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação. De acordo com o ponderado no acórdão nº 338/92, inédito, que, por sua vez, cita o acórdão nº
31/87 (no Diário citado, II Série, de 1 de Abril de 1987), o facto de se ser submetido a julgamento não pode constituir, por si só, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome e reputação. De igual modo, no acórdão nº 1205/96 (no mesmo jornal oficial, II Série, de 14 de Fevereiro de 1997), se decidiu, com semelhante itinerário argumentativo, não violar as garantias constitucionais de defesa a interpretação da norma em causa que considerou não se tornar absolutamente inútil o recurso se postergada para decisão final a apreciação de validade de uma busca. Retira-se do exposto que a lei processual penal, ao fazer subir imediatamente apenas os recursos cuja utilidade se perderia em absoluto no caso de a subida ser diferida, tutela a celeridade processual e impede que a tramitação normal do processo seja afectada por sucessivos envios ao tribunal recorrido para apreciação de decisões interlocutórias, do mesmo passo evitando que muitos desses recursos fiquem prejudicados no seu conhecimento face ao sentido da decisão final. Pese, embora, o provimento do recurso poder levar à inutilização dos actos processuais que estejam na dependência do acto ou despacho recorrido. Por outro lado, a ponderação subjacente a cada caso concreto deve atentar ?se o regime de subida diferida que [se] atribui ao recurso ainda está nos limites da subsistência da afirmação da prova ou se, pelo contrário, o diferimento do controlo em via de recurso de apreciação da prova corresponde à negação da subsistência da mesma prova? (cfr. acórdão nº 954/96, publicado no citado jornal oficial, II Série, de 23 de Dezembro de 1996). No caso sub judice, o diferimento da subida não afecta a iniciativa processual da recorrente, que, no caso de eventual procedência, dela aproveitará, a implicar a anulação da notificação edital e dos subsequentes actos processuais
(quando muito ficará defraudado o objectivo de celeridade que a decisão recorrida se propôs alcançar). O núcleo essencial do direito de defesa, com expressão no direito de recorrer, cujo exercício, no caso, é apenas diferido para final, mantém-se intocado, não impedindo a recorrente de ver a sua posição analisada e decidida jurisdicionalmente. Observar-se-á não ter sido possível, à interessada, ao validar-se a notificação da acusação, exercer o direito, que lhe assiste, de requerer instrução, o que consubstanciaria uma forma de não assegurar, de modo efectivo, as garantias de defesa constitucionalmente exigidas. Não colhe a objecção: não resulta do texto constitucional, mormente da parte final do nº 5 do artigo 32º, que tenha de haver sempre instrução, gozando o legislador ordinário de um poder de conformação na determinação dos actos instrutórios que tenham de ficar subordinados ao princípio do contraditório, como se ponderou no citado acórdão nº 474/94. Os limites da constitucionalidade quedam-se pela presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da condenação, não constituindo o facto de submissão a julgamento, por si só, lesão do núcleo garantístico constitucionalmente assegurado. Conclui-se, assim, por responder negativamente à invocada inconstitucionalidade da interpretação normativa recorrida. III Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 29 de Setembro de 1998 Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Artur Mauricio Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa