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Processo nº 456/95
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
1. Por acórdão do 3º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, de 13 de Janeiro de
1994, foram os recorrentes, R. Mt. e J. A., condenados como co-autores de um crime de corrupção activa, nas penas, respectivamente, de 4 anos e seis meses de prisão e de 130 dias de multa, e de 4 anos de prisão e 110 dias de multa. Interpostos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça por ambos os arguidos, alegaram estes nas respectivas motivações, por entre o mais que ora não releva: a inconstitucionalidade do 'nº 2 do artigo 374º' do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida no Acórdão recorrido, por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição; a inconstitucionalidade de 'uma interpretação das normas pertinentes do CPP, nomeadamente do artigo 374º, nº 2, e 410º, nº 2, als. b) e c), no sentido de dispensar a indicação dos elementos que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência', por violação dos princípios informadores do Estado de Direito Democrático; a violação do princípio da presunção de inocência, por o acórdão não ter indicado
'qualquer prova positiva', susceptível de afastar a referida presunção.
Por Acórdão de 3 de Maio de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu negar provimento aos recursos, confirmando integralmente a decisão recorrida. Interpuseram então os arguidos recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº
28/82, de 15 de Novembro). Tal como haviam feito na motivação dos recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, vieram acusar de ser inconstitucional a interpretação acolhida no Acórdão recorrido, que confirmara a decisão da primeira instância, 'das normas dos arts. 374º, nº 2 e 410º, nº 2 als. b) e c), todas do Código de Processo Penal..., por ser uma interpretação violadora dos princípios basilares do Estado de direito Democrático e nomeadamente dos artºs 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa'. Defendem os recorrentes que 'a invocação do art. 32º, nº 1 da Constituição refere-se à necessidade de fundamentação das decisões..., para que o tribunal de recurso possa julgar da correcção da aplicação dos princípios de direito probatório, estabelecidos pela Constituição... sem o que será violada a garantia constitucional de que ‘o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa’; A invocação do art. 32º, nº 2 da Constituição refere-se ao princípio probatório da presunção de inocência que no entendimento do arguido é um princípio substancial de direito probatório e não apenas um princípio formal disciplinador das fases do processo, implicando consequentemente para o seu afastamento que seja produzida prova positiva em contrário da presunção'.
'A invocação dos princípios basilares do Estado de Direito Democrático refere-se ainda à necessidade de fundamentação das decisões judiciais em matéria de facto como condição da legitimação democrática do poder judicial' (As transcrições são tiradas de ambos os requerimentos de interposição de recurso, que têm um texto idêntico).
2. Os recorrentes concluem as suas alegações (apresentadas conjuntamente) produzidas neste Tribunal da seguinte forma:
'a) O artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, ao garantir que ‘o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa’ não se refere apenas à produção de prova na audiência em 1ª instância, mas a todas as fases e actos do processo.
b) A fundamentação exigida pelos artºs. 97º, nº 4, e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, não consiste na mera enumeração dos meios de prova utilizados para a decisão, com o que se conseguiria tão-só, e limitadamente, verificar se foram ou não utilizadas provas proibidas.
c) As garantias de defesa consagradas no artº 32º, nº 1, da CRP abrangem todos os meios necessários à efectiva defesa dos arguidos, nomeadamente de defesa contra os erros de julgamento e arbítrio dos julgadores.
d) Para que seja possível a defesa contra tais possíveis erros e abusos e ainda quanto à legalidade da decisão no domínio probatório, importa que a motivação do juízo em matéria de facto conste da decisão, sem o que se veda ao arguido a possibilidade de requerer o controlo da legalidade pela via do recurso.
e) A interpretação acolhida no Acórdão recorrido dos artºs. 374º, nº
2, e 410º, nº 2, do CPP, no sentido de dispensar a indicação dos elementos probatórios que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência, viola basilares princípios informadores do Estado de Direito Democrático, nomeadamente a transparência das decisões judiciais, o do controle das decisões judiciais pela via do recurso, e as garantias de defesa do arguido.
f) A garantia do efectivo direito de defesa do arguido, consagrada no artº 32º, nº 1, da CRP, impõe que na sentença sejam indicados os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
g) A interpretação acolhida no Acórdão recorrido, no sentido de não exigência dos motivos que fundamentam a decisão em matéria de facto, é materialmente inconstitucional, por violar o direito de defesa, consagrado no artº 32º, nº 1, da Constituição.
h) O Acórdão de 1ª Instância, objecto do Acórdão proferido em recurso e ora recorrido, apenas indica como motivação da decisão em matéria de facto o sentido das respostas de todos os arguidos, limitando-se a remeter no demais para os meios de prova produzidos em audiência, que simplesmente enumera.
i) Não foi indicada qualquer prova positiva que contrarie o princípio da presunção de inocência, consagrado no artº 32º, nº 1, da Constituição.
j) Tal princípio, o da presunção de inocência, só pode ser afastado por uma prova positiva, e não por prova negativa, como é a resultante dos depoimentos dos arguidos ao negarem os factos objecto da acusação.
l) Essa prova positiva, contrária à presunção de inocência é necessária para afastar esta presunção, deve constar da motivação da decisão, sem o que não é possível verificar se a decisão violou aquela garantia constitucional.
m) O Acórdão recorrido, ao não dar provimento ao recurso dos arguidos, decidindo não ser necessária a indicação na fundamentação da decisão da 1ª instância dos motivos da decisão, bastando-se com a mera enumeração dos meios de prova, violou a garantia constitucional consagrada no artº 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
n) O mesmo Acórdão violou também a garantia constitucional da presunção de inocência do arguido, consagrada no artº 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, ao decidir que os motivos que afastam essa garantia não necessitam de ser indicados na decisão.
o) O Acórdão recorrido violou também o artº 32º, nº 2, da CRP, ao decidir que o princípio da presunção de inocência apenas significa que o arguido só se considera culpado após trânsito em julgado da sentença condenatória.
p) E violou também a garantia da presunção de inocência e o direito de defesa ao decidir por mera presunção que da 'prova variada e abundante' produzida em audiência de julgamento resultou prova positiva bastante para afastar o referido princípio da presunção de inocência.
q) A legitimação democrática do poder judicial passa necessariamente, no sistema constitucional português, pela necessidade de motivação das decisões judiciais em matéria de facto.
r) A interpretação dada no Acórdão recorrido aos artºs. 374º, nº 2, e
410º, nº 2, als. b) e c), e ainda ao admitir que indicada uma prova negativa da culpabilidade não é necessário indicar a prova positiva que a contraria para que o agente possa ser julgado culpado, violou o artº 32º, nºs. 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.'
Por sua vez, o Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional concluiu as suas alegações do seguinte modo:
'1. O artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi interpretado pelo acórdão recorrido no sentido da exigência dos motivos que fundamentam a decisão em matéria de facto, pelo que tal interpretação não viola o direito de defesa consagrado no artigo 32º, da Constituição.
2. Permitindo a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, objecto do acórdão recorrido, uma avaliação segura pelo tribunal superior das razões dessa decisão, no quadro do artigo 410º, do Código de Processo Penal, não se mostra violada qualquer norma constitucional, designadamente a indicada pelos recorrentes.'
3. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir se as normas conjugadas dos artigos 374º, nº 2, e 410º, nº 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação que lhes foi dada pelo acórdão recorrido, são, ou não desconformes com a lei fundamental, sendo certo que o Tribunal está limitado, nos seus poderes de cognição, pelo pedido formulado, mas não pelos fundamentos indicados (artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro). Quanto à alegada infracção do princípio constitucional da presunção de inocência
(nº 2 do artigo 32º da Constituição), sendo um vício atribuído à decisão, não pode ser objecto de conhecimento no presente recurso, destinado à apreciação da inconstitucionalidade de normas (al. b) do nº 1 do artigo 70º da citada Lei nº
28/82).
4. É a seguinte a redacção das normas que constituem o objecto do presente recurso de constitucionalidade:
'Artigo 374º
(Requisitos da sentença)
1...
2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.'
'Artigo 410º
(Fundamentos do recurso)
1...
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) ... b) A contradição insanável da fundamentação; c) Erro notório na apreciação da prova.'
5. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 1995, agora impugnado, pronunciou-se sobre a questão de constitucionalidade objecto deste recurso nos seguintes termos:
'Nas suas primeiras nove conclusões [o Supremo Tribunal de Justiça refere-se à motivação de recurso apresentada pelo arguido J. A., explicando que a apreciação vale, também, para o arguido R. Mt.]: argui o recorrente a nulidade prevista no artigo 379º al. a), do Código de Processo Penal, consubstanciada na omissão de fundamentação das decisões em matéria de facto.
No seu entender, a exigência de fundamentação da matéria de facto estabelecida no artigo 374º, nº 2 não se compadece com a simples enumeração dos meios da prova utilizados em 1ª instância.
Uma tal enumeração não permitiria o controle pelo Tribunal de recurso da decisão em matéria de facto, sendo desta forma atentatória dos direitos de defesa, consagrados no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República.
A questão equacionada pelo recorrente não é nova, tendo sempre obtido deste Tribunal uma resposta uniforme de desacordo com a posição do recorrente.
A título exemplificativo, passa-se a citar algumas das decisões deste Tribunal:
- 'A lei apenas impõe que a sentença ... contenha uma exposição, que pode ser concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, isto é, que indique expressamente os meios de prova produzidos em julgamento e que tiveram a virtualidade de formar a convicção do tribunal quanto aos factos que teve como provados e não provados' (acórdão de 16.3.94, proc. nº 46.207);
- A decisão sobre a matéria de facto fica suficientemente motivada com a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, sem necessidade de se exprimir o teor das declarações e dos depoimentos, bem como a razão crítica do tribunal para os aceitar ou para os preferir em detrimento de eventuais provas divergentes (acórdão de 17.2.94, proc. nº 43.261);
- 'É jurisprudência corrente do S.T.J. que a enumeração sucinta dos meios de prova que determinaram a decisão da matéria de facto é suficiente para afastar a nulidade do artigo 379º al. a) do CPP' (acórdão de 7.7.93, proc. nº
44.478);
- 'A obrigatoriedade de indicação na sentença das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, estabelecida no artigo 374º, nº 2, do CPP, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova não sendo pois uma decisão ilógica, contraditória, arbitrária ou notoriamente violadora das regras de experiência comum na apreciação da prova' (acórdão de 30.4.92, proc. nº 42.544).
Não temos quaisquer razões para não aceitar esta jurisprudência deste Tribunal.
Como dela resulta inequivocamente, a indicação das provas não visa o controle da convicção do tribunal 'a quo', destinando-se a assegurar o respeito do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova e a evitar que um cidadão possa ser condenado sem apoio de qualquer dos meios de prova admitidos na lei.
Daí que este Tribunal tenha já afirmado que só a ausência total, na sentença, da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal, constitui violação do artigo 374º, nº 2, do CPP, o que acarreta a nulidade da decisão por força do artigo 379º do mesmo Código (acórdãos de
15.7.89, proc. 40.094 e de 6.3.91, proc. 40.874).
Entretanto, importa salientar que esta posição em nada colide com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República, na medida em que o seu exercício é amplamente garantido no momento em que são produzidas as provas.
Por seu lado, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não tem assento constitucional, como correntemente tem afirmado o Tribunal Constitucional.
Daí que se mostre irrelevante a afirmação do recorrente de que a simples enumeração dos meios de prova não permite o recurso quanto à matéria de facto que, obviamente, não existe para além dos casos previstos no artigo 410º, supra citado.
Mas inequívoco é que essa enumeração possibilita o controle da legalidade dos meios de prova produzidos em audiência e com isso se basta a vigente lei processual penal.
Expostos, ainda que esquematicamente, estes princípios, fácil é concluir pela inexistência da arguida nulidade.
Efectivamente, consta do douto acórdão recorrido uma exaustiva fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto. Além da referência
às declarações dos arguidos, são citados os depoimentos prestados, a prova documental e relatórios juntos aos autos.
Uma tal fundamentação satisfaz plenamente a exigência resultante do citado artigo 374º, nº 2.
Improcede, assim, a arguida nulidade'.
6. Definido o objecto do presente recurso, impõe a lógica que se comece por analisar a conformidade constitucional da norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na parte relativa à fundamentação da decisão da matéria de facto, tal como interpretada e aplicada na decisão recorrida, só depois se procedendo à aferição da compatibilidade constitucional do regime do citado preceito, quando conjugado com o nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
7. Dispõe a Constituição, no nº 1 do artigo 205º, que 'as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei'. Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o nº 1 do artigo 208º, que determinava que 'as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei'. A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas 'nos termos previstos na lei' para o serem
'na forma prevista na lei'. A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.
A verdade, porém, é que, estando em causa um elemento da sentença que releva para efeitos da respectiva validade, deve avaliar-se da conformidade constitucional da norma em apreciação à luz do texto constitucional vigente à data da prolação do acórdão. Diga-se porém, desde já, que a alteração do texto constitucional é, neste caso, irrelevante, pois sempre se chegaria à mesma conclusão.
É certo que a Constituição não determina, ela própria, o alcance do dever de fundamentar as decisões judiciais, remetendo para a lei a definição do respectivo âmbito. Certo é também, igualmente, que o legislador, ao concretizar a liberdade de conformação que a Constituição lhe confere, não a pode reduzir de tal forma que, na prática, venha a inutilizar o princípio da fundamentação.
Como se escreveu no acórdão nº 310/94 deste Tribunal (Diário da República, II, de 29 de Agosto de 1994), ficou 'devolvido ao legislador, em
último termo, o seu ‘preenchimento’, isto é, a delimitação do seu âmbito e extensão. Com efeito, o legislador constituinte consagrou o dever de fundamentação das decisões judiciais – fê-lo na revisão constitucional de 1982
–, em termos prudentes, evitando correr o risco de estabelecer uma exigência de fundamentação demasiado extensa e, por isso, inapropriada e excessiva. Daí o ter-se limitado a consagrar o aludido princípio ‘em termos genéricos’, deixando a sua concretização ao legislador ordinário. Isso não significa, tal como se vincou nos arestos citados deste Tribunal (cfr. ponto 8. do acórdão citado), que assiste ao legislador ordinário uma liberdade constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a imposição constitucional. Do princípio consagrado no artigo 208º, nº 1, da Constituição, enquanto garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (artigo 2º), há-de decorrer para o legislador, pelo menos, a obrigação de prever a fundamentação das ‘decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimidade da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso’ (cf. J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp. 798-799). De qualquer modo, os limites a tal liberdade constitutiva do legislador (ou ‘discricionaridade’ legislativa) hão-de ser muito largos e respeitar a um núcleo essencial mínimo de decisões judiciais. De outro modo, na verdade, ‘subverter-se-á o próprio sentido da cláusula constitucional
(que é intencionalmente o de uma ‘incumbência’ ao legislador) e o seu citado propósito cautelar' (...) Ora, tal como se afirma no mesmo acórdão 310/94, a determinação do alcance que o legislador ordinário há-de conferir à obrigação de fundamentar as decisões judiciais obriga a indagar quais as funções desempenhadas pela fundamentação, tendo em conta que, diferentemente do caso ali em análise, nos encontramos perante uma decisão condenatória proferida em processo penal.
Assim, desde logo, a fundamentação de uma sentença contribui para a sua eficácia, já que esta depende da persuasão dos respectivos destinatários e da comunidade jurídica em geral. Escreve EDUARDO CORREIA: 'só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao menos, 'convencer' as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria penal a própria designação do condenado por 'convencido' sugere'
(Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projecto, em 1ª Revisão Ministerial, de alteração do Código de Processo Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII
(1961), pág. 184).
A fundamentação permite, ainda, quer pelas próprias partes, quer, o que é de realçar, pelos tribunais de recurso (v. MICHELE TARUFFO, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LV (1979), págs. 31-32), fazer, como escreve MARQUES FERREIRA, 'intraprocessualmente, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso (...)' ('Meios de prova, in Jornadas de Direito Processual Penal - o novo Código de Processo Penal, Coimbra,
1992, pág. 230).
Mais importante, todavia, é a circunstância de a obrigação de fundamentar as decisões judiciais constituir um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto
(iuris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (v. MICHELE TARUFFO, op. cit., págs. 34-35, que escreve: 'a garantia constitucional do dever de fundamentação ocupa um lugar central no sistema de valores nos quais deve inspirar-se a administração da justiça no Estado democrático moderno').
É indiscutível que 'o princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito e no Estado Social de Direito contra o arbítrio do poder judiciário', v. PESSOA VAZ, Direito Processual Civil - do antigo ao novo Código, Coimbra, 1998, pág. 211. Embora não venha ao caso fazer a história, nem sequer para o direito português, da obrigação de fundamentar as decisões judiciais, não podemos, a concluir este ponto, deixar de citar BENTHAM: 'In legislation, in judicature, in every line of human action in which the agent is or ought to be accountable to the public or any part of it, – giving reasons is, in relation to rectitude of conduct, a test, a standard, a security, a source of interpretation. Good laws are such laws for which good reasons can be given: good decisions are such decisions for
which good reasons can be given' (An Introductory view of the Rationale of Evidence, in The Works of Jeremy Bentham, ed. de 1962, Nova Iorque, vol. VI, pág. 357), e de repetir que a motivação das decisões judiciais é uma garantia da possibilidade de controlo democrático do exercício do poder judicial em face dos cidadãos e do próprio Estado, exigência do princípio do Estado de Direito
(artigo 2º da Constituição).
8. Não sendo naturalmente uniformes as exigências constitucionais de fundamentação relativamente a todo o tipo de decisões judiciais, como já se referiu, algumas destas hão-de ser objecto de um dever de fundamentar de especial intensidade. Entre elas, facilmente se convirá estarem as decisões finais em matéria penal, mormente as condenatórias, na primeira linha.
Atentos os fundamentos encontrados para o dever de fundamentação, é inelutável que abrange a decisão em matéria de facto e a decisão em matéria de direito. Ora a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida. Afigura-se ser este o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais.
9. Vistas as coisas a esta luz, parece impossível compatibilizar o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação adoptada pelo Tribunal recorrido quanto à fundamentação da decisão em matéria de facto, com as exigências constitucionais de fundamentação decorrentes da Constituição. Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou e aplicou a referida disposição do Código de Processo Penal no sentido de a fundamentação das decisões em matéria de facto se bastar com a 'simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância ', acrescentando, com citação de decisões anteriores do mesmo Tribunal, que 'só a ausência total, na sentença, da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constitui violação do artigo 374º, nº 2, do CPP, o que acarreta a nulidade da decisão por força do artigo 379º do mesmo Código'. Tal interpretação é coerente com o entendimento, também adoptado no acórdão recorrido, de que a função da fundamentação neste âmbito reside tão-só em possibilitar 'o controle da legalidade dos meios de prova produzidos em audiência', mas contradiz as bases em que assenta teleologicamente o dever constitucional de fundamentar.
10. A norma em apreciação, isoladamente considerada, contraria, portanto, o disposto na Constituição sobre fundamentação das decisões judiciais. Mas falta ainda apurar se, tomada no contexto em que se insere, designadamente na sua relação com as alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal de 1987, o nº 2 do artigo 374º viola os direitos da defesa, previstos no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
Ao texto até há pouco vigente do nº 1 do artigo 32º, que fixava que
'o processo criminal assegura todas as garantias de defesa', acrescentou a Revisão Constitucional de 1997 a menção 'incluindo o recurso'.
O Tribunal Constitucional pronunciou-se já por diversas vezes sobre a questão da constitucionalidade do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, bem como deste em conjugação com o seu artigo 433º. Recentemente, através do acórdão nº 573/98 (D.R. II, 13.11.98) julgou o plenário (maioritariamente) que não ofende a Constituição o regime fixado no Código de Processo Penal de
1997, de acordo com o qual o Supremo Tribunal de Justiça, competente para conhecer dos recursos do tribunal colectivo (alínea c) do art. 432º), vê os seus poderes de cognição em matéria de facto circunscritos aos casos de
'insuficiência para a decisão da matéria de facto provada', 'contradição insanável da fundamentação' e 'erro notório na apreciação da prova', 'desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum' (nº 2 do artigo 410º).
Na verdade, embora reconhecendo que 'no domínio processual penal há que reconhecer, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição' ( v., p. ex., o acórdão nº 322/93, cujo teor foi no essencial retomado por diversos outros arestos, entre os quais o citado acórdão nº 573/98), este Tribunal tem decidido que, 'tratando-se de matéria de facto há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito' (v. acs. 61/88, 124/90, 322/93 e 353/93).
Quanto à relação entre o nº 2 do artigo 374º e o nº 2 do artigo
410º, escreveu-se no acórdão 322/93, a propósito do problema da constitucionalidade deste último:
'Pode, de igual modo, argumentar-se (no sentido da inconstitucionalidade das normas sub iudicio) com o facto de que, tendo o vício
(para conduzir ao reenvio do processo para novo julgamento) que resultar 'do texto da decisão recorrida , por si ou conjugado com as regras da experiência comum,' só muito dificilmente também este poderá censurar o julgamento do facto, mesmo em casos em que ele seja grosseiramente errado.
É que - dir-se-á - a fundamentação da sentença resume-se, muitas vezes, a uma remissão genéria para os diferentes meios de prova (para os depoimentos destas ou daquelas testemunhas, por exemplo). Ora, se ela não explicitar o que é que, de acordo com as regras da experiência e da lógica, fez com que a convicção do tribunal se formasse num determinado sentido (e não noutro) e, bem assim, porque é que se teve por fiável certo meio de prova (e não outro), o Supremo ver-se-á impossibilitado de, a partir do texto do acórdão recorrido, concluir pela 'insuficiência para a decisão da matéria de facto provada', pela 'contradição insanável da fundamentação' ou pela existência de
'erro notório na apreciação da prova.
Perante tal argumentação há, desde logo, que advertir que, por força do que dispõe o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, a fundamentação da sentença - para além de dever conter uma 'enumeração dos factos provados e não provados' -, tem que consistir numa 'exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal'.
Este dever de fundamentação foi interpretado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cf. acórdão de 13 de Fevereiro de 1992, Colectânea de Jurisprudência, ano XVII (1992), tomo I, páginas 36 e 37) no sentido de que a sentença - para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova - há-de conter também os 'elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal colectivo se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação', ou seja, ao cabo e ao resto, um 'exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo' num determinado sentido.
Estando em causa uma decisão de um tribunal colectivo e tendo a fundamentação, por isso - como se assinalou no acórdão nº 61/88 -, que traduzir ou reflectir o 'mínimo de acordo ou convergência consensual ou maioritariamente apurada no seio do tribunal' (onde pode ser diverso, de juiz para juiz, o fundamento da resposta num dado sentido ou 'oferecer entre todos cambiantes significativas'), há-de ela (a fundamentação) permitir, no entanto (e sempre), avaliar cabalmente o porquê da decisão. Ou seja: no dizer de MICHELLE TARUFFO
('Note sulla garanzia costituzionale della motivazione', in Boletim da Faculdade de Direito, vol. IV, páginas 29 e seguintes), a fundamentação da sentença há-de permitir a 'transparência' do processo e da decisão.
Feita esta advertência, há que acrescentar que a dificuldade de o Supremo Tribunal de Justiça despistar o vício invocado como fundamento do recurso, relativo ao julgamento do facto, a partir do texto da decisão recorrida, 'por si ou conjugada com as regras da experiência comum', tem mais propriamente a ver com a completude ou incompletude da fundamentação do acórdão do que com o facto de o vício ter de concluir-se a partir do texto da decisão'.
Julgou, portanto, o Tribunal Constitucional, em plenário, não enfermarem de inconstitucionalidade o nº 2 do artigo 410º e o nº 2 do artigo
433º do Código de Processo Penal de 1987 no pressuposto - que se afigura inelutável - de que o nº 2 do artigo 374º do mesmo Código impõe uma obrigação de fundamentação 'completa', permitindo a 'transparência do processo e da decisão'. Como se afirma no acórdão 172/94 (e se reafirma, por exemplo, no acórdão nº
504/94), 'a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório'.
Do exposto cabe concluir que, num sistema que circunscreve do modo indicado os poderes de apreciação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, o aspecto central do qual depende a possibilidade efectiva – embora limitada – de reapreciação da matéria de facto é a imposição de um dever de fundamentação da decisão em matéria de facto com intensidade suficiente.
Pode, pois, afirmar-se que a interpretação do nº 2 do artigo 374º adoptada pelo acórdão recorrido vem na prática inviabilizar o direito ao recurso ou a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, consagrados no nº
1 do artigo 32º da Constituição, ainda que se conceba esta garantia e aquele direito como tendo um âmbito e uma dimensão reduzidos por comparação com a matéria de direito. Razão pela qual se deve também considerar inconstitucional a norma em apreciação, na interpretação consagrada no acórdão recorrido, em conjugação com a norma do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal de 1987, por violação do direito ao recurso previsto no nº 1 do artigo 32º da Constituição. Trata-se,
é de sublinhar, de um juízo de inconstitucionalidade que não incide sobre este
último preceito, mas tão só sobre aquele, tendo em conta que se insere em um determinado contexto normativo.
Nestes termos, decide-se: a) Julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no nº 1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no nº 1 do artigo 32º, também da Constituição; b) Em consequência, conceder provimento aos recursos e revogar a decisão recorrida, que deverá ser reformulada em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 2 de Dezembro de 1998 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida