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Procº nº 408/97
2ª Secção. Relator: BRAVO SERRA.
(Consº. MESSIAS BENTO)
I
1. F. Cr. e mulher, A. S., M. Cr. e marido, J. Ct., M. Cr. e Q. Cr. instauraram, pelo Tribunal de comarca da Moita e contra A. L., acção na qual, após articularem determinados factos, solicitaram que um contrato de arrendamento, de que os autores disseram ser comproprietários e que tinha por objecto um prédio urbano sito no nº ... da Rua ..., no Rosário, Moita, fosse declarado resolvido.
Por despacho proferido em 26 de Abril de 1993 pelo Juiz daquele Tribunal de comarca, foi a petição inicial da acção indeferida liminarmente por contradição entre o pedido e a causa de pedir.
Nos termos do nº 1 do artº 426º do Código de Processo Civil, vieram os autores apresentar nova petição inicial, na qual, após articularem os mesmos factos que já tinham invocado na anterior petição, solicitaram que fosse o réu condenado a despejar o prédio, 'por caducidade do arrendamento'.
Seguindo a acção seus termos, foi, em 15 de Dezembro de 1995, proferida sentença na qual, declarando-se a extinção, por caducidade, do contrato de arrendamento, foi o réu condenado a despejar o prédio.
Nessa sentença, após no respectivo «relatório» se dizer que os autores pretendiam que a acção fosse 'julgada procedente por provada sendo declarada a caducidade do contrato de arrendamento', sobre o epíteto 'O Direito', escreveu-se, por entre o mais, que:-
'................................................................................................................................................................................................
Está em causa a caducidade ou não do contrato de arrendamento por morte do locatário.
O art. 1051º, nº 1 – d) do C. Civil, estabelece uma regra geral sobre esta matéria, no sentido de operar a caducidade do contrato de arrendamento por morte do locatário.
Todavia, existem excepções a esta regra e uma delas está prevista no art. 1111º do mesmo Código que, na parte com interesse para a caso sub judice, preceitua que o arrendamento não caduca se ao primitivo arrendatário sobreviver parente na linha recta que com ele vivesse há mais de um ano.
É, pois, necessário que na altura do falecimento do primitivo arrendatário, o sucessor conviva com aquele e tenha residência permanente no arrendado.
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Ora, os elementos que temos não nos permitem concluir que o réu à data da morte de seu pai, primitivo arrendatário, tinha no arrendado a sua residência permanente, pelo contrário.
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Assim, é de concluir que o réu não tinha residência permanente no prédio arrendado, pelo menos no ano anterior à morte do primitivo arrendatário, como acima ficou demonstrado, não operando, pois, a transmissão do arrendamento nos termos previstos no art. 1111º do C. Civil e tendo de proceder o pedido de declaração da caducidade do contrato de arrendamento em apreço por morte do arrendatário e o consequente despejo, nos termos do disposto no art. 1051º, nº 1
– d).
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2. Dessa sentença apelou o réu A. L. para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, na alegação que, então, apresentou, invocado, inter alia, que era nula aquela peça processual, por isso que, tendo os autores solicitado que fosse resolvido o contrato de arrendamento, no «relatório» da mesma peça foi dito que os autores pretendiam que fosse declarada a caducidade de tal contrato, vindo, a final, a ser efectuada a pretendida declaração, o que consubstanciaria violação do disposto no nº 1 do artº 661º e na alínea e) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil.
Na «contra-alegação» que produziram, os apelados autores disseram que o recorrente, ao invocar aquela nulidade, incorreu em manifesto lapso, já que o que solicitaram foi a condenação do apelante no despejo imediato do prédio por caducidade do arrendamento.
Veio então o réu fazer juntar aos autos requerimento no qual invocou ter ficado 'estupefacto' com o que era referido na «contra-alegação» dos apelados, já que o pedido formulado a final e constante do duplicado da petição inicial a si entregue no acto da citação não tinha correspondência com aquele a que os mesmos apelados se referiam na dita «contra-alegação».
Mais afirmou nesse requerimento que 'organizou a sua defesa e estruturou a sua alegação de recurso em função daquilo que supunha ser a
'petição inicial' e que, só então, 'face à imputação do 'lapso', pôde aperceber-se da existência de uma segunda petição, sequente de um despacho de indeferimento in limine, articulado que jamais lhe foi dado a conhecer e de cuja existência jamais se apercebera, antes da leitura da contra-alegação de recurso', razão pela qual, sendo assim, 'ocorreu falta de citação do réu, nulidade principal que,..., não pode, no caso dos autos, ter-se por sanada com a intervenção do R., pois que este não a pôde representar, qua tale, já que dela só agora teve conhecimento'.
Ainda acrescentou:-
'...............................................................................................................................................................
8º. A falta de citação arguida não pode, ter-se por sanada ex vi do artº 196º do CPC, já que, o regime de sanação dos vícios aí previstos, assenta na presunção do conhecimento da respectiva ocorrência por banda do citado...
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10º. A vontade processual do réu viu-se assim ferida por erro essencial que lhe não é imputável e que, consequentemente, importa a nulidade de todo o processado ulterior. Trata-se de um situação patológica, de difícil e imprevisível ocorrência, que não pode ter-se por sanada, a reclamar solução no quadro da teoria geral dos actos processuais.
11º. Se assim não se entendesse, o princípio do contraditório, enquanto emanação do princípio da igualdade dos cidadãos perante os tribunais, ficaria insanavelmente bulido e, nessa medida, criar-se-ia uma intolerável desigualdade entre as partes capaz de viciar os termos da lide.
12º. E porque tal princípio tem assento constitucional, se se viesse a julgar sanada a nulidade, por aplicação do artº 196º do CPC, sempre haveria que julgar, face ao artº 13º da C.R.P., inconstitucional a norma ou o entendimento que assim o sufragasse, o que desde já, por cautela, se aduz.
................................................................................................................................................................................................'
Por acórdão de 6 de Maio de 1997, negou a Relação de Lisboa improcedente o recurso.
Discorreu-se assim nesse aresto, como fundamento do decidido:-
'II. Aceitando-se que, como alega o requerente, tenha havido falta de citação, por esta ter sido feita com preterição de formalidades essenciais (art.
195º, n.ºs 1, al. d), e 2, al. a), do C.P.C.), a questão que se suscita, e que agora importa resolver, é a de saber se, traduzindo-se a preterição de tal formalidade essencial em ter sido entregue ao réu um duplicado da petição inicial desconforme com o original, tal nulidade pode deixar de ser considerada sanada com a intervenção do réu no processo sem arguir logo a falta de citação.
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Ainda que o referido vício não tivesse sido detectado aquando da entrega do duplicado da petição inicial, ao intervir no processo o réu não podia deixar de arguir logo a nulidade dele decorrente, pois de acordo com o disposto no artº 196.º do Cód. Proc. Civil, 'se o réu... intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade'.
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Ora, o réu, ao ser citado, interveio no processo, apresentando tempestivamente a sua contestação, e praticando todos os actos judiciais posteriores, inclusive na audiência de julgamento.
Além disso, verifica-se, em face de todo o articulado da contestação, que deduziu a sua defesa em consonância com os factos que foram articulados na própria petição original, junta a fls. 22 e segs., sendo certo, aliás, que esta só divergiu da anterior, indeferida in limine, na parte referente ao pedido.
Assim, e como já se decidiu em acórdão desta Relação, de 6/2/82, também no caso sub judice, 'é de considerar sanada a falta de citação do réu, nos termos do art. 196.º, do Cód. Proc. Civil, mesmo que haja sido feita com entrega de um duplicado da petição inicial desconforme com o original'.
E, por outro lado, mostrando-se, como se mostra nos autos, ter sido sempre devidamente assegurada a defesa do réu, não se vê, também, que tenha ocorrido qualquer violação ao princípio do contraditório, enquanto emanação do princípio da igualdade dos cidadãos perante os tribunais, que permita considerar a aplicação da norma do art. 196.º do C.P.C. como inconstitucional.
.............................................................................................................................................................................................'
3. É do assim decidido que, pelo réu A. L., vem interposto o vertente recurso, estribado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, e por intermédio do qual visa a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artº 196º do Código de Processo Civil 'na interpretação e com o alcance que lhe foram emprestados' no aresto impugnado.
Na alegação produzida neste Tribunal, o recorrente rematou-a com as seguintes «conclusões»:-
'1. O douto acórdão da Relação de Lisboa sub judicio considerou, a coberto do disposto no artº 196º do CPC, que por ter tido intervenção processual ulterior e não ter logo arguido a falta de citação é de considerar sanada a nulidade, mesmo quando ao réu não foi entregue o duplicado da petição inicial admitida em juízo, mas sim o de uma outra, diversa, correspondente a articulado que foi indeferido in limine.
2. O referido preceito legal, interpretado com este sentido e alcance concretos, arranca de uma presunção ilegítima e fere o princípio do contraditório, traduzindo, na prática, uma intolerável desigualdade de armas, na justa medida em que, do mesmo passo, cerceia ao réu a possibilidade de uma defesa técnica efectiva.
3. Assim sendo, o preceito na interpretação que fez vencimento no douto acórdão sindicado, ofende o princípio constitucional da igualdade, plasmado no artº 13º da C.R., o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consignado no artº 20º da lei fundamental, tal como fere o disposto em Convenções Internacionais a que Portugal aderiu, maxime o artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
4. No douto acórdão, ficciona-se uma presuntiva renúncia do recorrente à arguição da nulidade da falta de citação, quando certo e seguro é que o recorrente, confrontado com o duplicado de um simulacro de petição, só poderia suscitar e arguir a nulidade se e quando a pudesse conscientemente representar.
5. A falta de entrega do duplicado da p.i. atinge e fere o processo, em aspectos nucleares, substanciando ofensa de princípios que o estruturam: o do contraditório e o da igualdade substancial das partes, denegando, objectivamente, a garantia de acesso aos tribunais.
6. Tendo a norma do artº 196º do C.P.C. sido interpretada e aplicada com este condicionalismo e alcance, mostra-se ferida de inconstitucionalidade material por ofensa dos princípios consagrados nos artigos 13º e 20º da CR, ou, quando menos, as exigências e garantias constitucionais decorrentes da própria ideia de Estado de Direito'.
De seu lado, os recorridos concluíram a sua alegação propugnando pela improcedência do recurso.
Não logrando vencimento o projecto de acórdão formulado pelo relator, assistiu-se a mudança do mesmo para efeitos de elaboração da vertente decisão.
II
1. Dispõe-se no artº 196º do Código de Processo Civil que [s]e o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta de citação, considera-se sanada a nulidade.
Nulidade essa, que, como é claro, só se pode reportar à indicada na alínea a) do artº 194º, onde se consagra que [é] nulo tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando-se apenas esta, [q]uando o réu não tenha sido citado.
No artº 195º do diploma adjectivo civil elencam-se os casos em que se deve considerar haver falta de citação, de entre eles, e no que ora importa, se encontrando o de a citação ter sido efectuada com preterição de formalidades essenciais [alínea d) do nº 1], consagrando-se no seu nº 2 que, de entre outras,
é formalidade essencial a entrega do duplicado, [n]a citação feita na pessoa do réu [alínea a)], [n]a citação feita em pessoa diversa do réu[alínea c)], e [n]a citação postal de conformidade com o artigo 244.º.
A nulidade acima referida, conforme deflui do estatuído no artº
204º, nº 2, pode ser arguido em qualquer estado do processo, enquanto não dever considerar-se sanada, sendo, inclusivamente, fundamento de recurso de revisão
[q]uando, tendo corrido a acção e a execução à revelia, por falta absoluta de citação do réu, se mostre que faltou a sua citação ou é nula a citação feita [ cfr. artº 771º, alínea f)].
Um tal vício, porém, como decorre do teor literal da norma sub specie, é de considerar sanado se o réu intervier no processo sem o arguir imediatamente.
E compreende-se que assim seja.
2. Na verdade, se a citação se traduz em chamar alguém ao processo, dando-se-lhe conhecimento da pretensão do autor e dos factos em que a estriba e se, omitido esse procedimento, o réu vem aos autos impugnar estes (ou conferindo-lhes diferente versão) e pugnar pela improcedência daquela (ainda que, mesmo sem impugnação fáctica, defenda que, do ponto de vista jurídico, o efeito pretendido e consubstanciado na pretensão não pode ser o peticionado), não faria sentido que, depois de ter revelado esse procedimento, viesse esgrimir com a ocorrência de um vício que, na realidade das coisas, em nada diminuiu a sua efectiva defesa nos autos.
É que, impondo um estado de direito que um processo judicial obedeça
à equidade e à lealdade (cfr. por entre muitos outros, o Acórdão deste Tribunal nº 249/97 in Diário da República, 2ª Série, de 17 de Maio de 1997), se o demandado soube quais as razões de facto e de direito pelas quais o foi, desfrutou ele de todas as condições para, sobre as umas e outras, discretear em plano de igualdade com o autor, pelo que, nesse condicionalismo, seria excessivo vir a lançar mão de um incidente que, acarretando necessariamente um protelar da acção, em nada contribuiria para o alcance daquela igualdade, não se vendo em que é que as justeza, equidade e lealdade que hão-de informar o processo como pressupostos do princípio da igualdade das partes (não só no acesso à vida judiciária, mas também perante os tribunais – o princípio da «igualdade de armas» -) postulado pelos artigos 2º e 20º da Constituição, saíssem reforçadas com esse procedimento.
Mas, para que se revele o bem fundado do comando constante do teor da norma em apreciação, mister é que da intervenção posterior do réu nos autos resulte que, de harmonia com um juízo de razoabilidade, o mesmo, não obstante o vício da falta de citação, fique ciente, nos seus precisos termos, das razões de facto e de direito que são avançadas pelo autor para fundarem a pretensão contra ele deduzida.
Só assim, na verdade, se pode perspectivar que o princípio do contraditório foi observado e que ao réu foi, na prática, dada a possibilidade de uma actuação na lide em condições idênticas às do autor, princípio e possibilidades essas que, como se viu, defluem dos aludidos normativos constitucionais.
Ora, se ao conhecimento do réu não advêm as razões de facto e de direito em que se baseou a pretensão do autor, ou se esta não é conhecida nos seus precisos termos, uma intervenção nos autos daquele, ainda que consubstanciada (e admitindo mesmo que era conhecedor da totalidade das razões de facto alegadas pelo autor) no discretear de razões atinentes a demonstrar o infundado de uma pretensão que lhe foi erroneamente transmitida, não poderá deixar de considerar-se essa situação como postergando a necessidade de defesa.
Efectivamente, nessa mencionada situação, está o réu ou a deduzir razões, ou a oferecer provas, ou a contraditar as apresentadas pelo autor ou, por fim, a defender posturas jurídicas relativamente a algo que, em verdade, não foi pedido ao tribunal, sendo que não é sobre tal pedido que este irá decidir. E, por isso, se figuram, numa primeira linha, postergadas as necessidades de defesa.
3. Neste contexto - e sabido que é que ao processo, designadamente o processo civil, não podem ser estranhas razões de celeridade (já que, como é sabido, o direito de acesso aos tribunais também compreende o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas) - ponto é, porém, para que a sanação ditada pelo artº 196º do Código de Processo Civil seja compatível com aquelas necessidades de defesa, que, do ponto de vista de razoabilidade, seja exigível ao réu que veio a intervir no processo um grau de diligência tal de sorte que o leve a ir confrontar os duplicados que lhe foram entregues com as peças que constam do processo.
A uma tal exigência dá este Tribunal resposta negativa.
Na verdade, se às «partes» devem ser fornecidos duplicados dos articulados, requerimentos e alegações e cópia dos documentos que os acompanham
(cfr. artº 152º, números 1 e 2 do Código de Processo Civil), e não sendo de presumir que esses duplicados se encontrem adulterados, não se mostra razoável que se exija à «parte» que os receba que, sem mais, duvide da fidedignidade dos mesmos, mormente se se trata de um réu citado e ao qual foi entregue o duplicado da petição inicial.
Seria irrazoável e desproporcionado exigir que um réu, após a citação e a quem foi entregue um duplicado da petição inicial na qual é formulado um pedido que não coincide com o constante daquele duplicado, tendo tido intervenção no processo, defendendo-se da pretensão tal como vinha desenhada no duplicado, fosse ao processo confrontar o duplicado com o original da petição para, dessa sorte, arguir a falta de citação, sob pena de, não o fazendo, esse vício se considerar sanado.
E, todavia, como resulta do que acima ficou relatado, o aresto ora impugnado interpretou e aplicou a norma em apreço com o sentido e alcance segundo o qual a intervenção do réu – que se entendeu não ter sido citado, por isso que houve preterição das formalidades legais – consubstanciada na apresentação da contestação, implicava, desde logo, a sanação do vício da falta de contestação.
3.1. Convém, ainda, ir mais longe na análise da questão de que nos ocupamos.
Efectivamente, se, tendo em conta os «primeiros momentos processuais» a que nos reportámos no ponto antecedente, se concluiu pela irrazoabilidade e desproporcionalidade da exigência de confrontação da identidade dos duplicados e documentos com os que constam do processo, será que outrotanto se pode dizer quando, como, no caso dos autos sucedeu, pela leitura do teor da sentença o réu assistiu a que na mesma se considerava que a pretensão constante da petição era algo diverso do que constava do duplicado que a ele fora entregue?
Seria, numa tal situação, razoável e proporcional às necessidades de defesa implicadas pelo princípio da igualdade das partes no e perante o tribunal, a exigência no sentido de o réu ir verificar se aquele duplicado era idêntico na sua totalidade, designadamente no que concerne ao pedido formulado a final, para, assim e no caso de não identidade, arguir a nulidade de falta de citação?
Entende o Tribunal que essa exigência seria igualmente desproporcionada.
É que, e em primeiro lugar, é necessário não olvidar que não existe qualquer princípio ou presunção, maxime constitucionalmente consagrados, de onde derive a infalibilidade das decisões judiciais (mormente as não transitadas) ou que nas menções constantes das mesmas não possa ocorrer algum lapso.
Em segundo lugar, e é isso o que agora mais releva, prescreve- -se no diploma adjectivo civil como causa de nulidade da sentença a condenação em objecto diverso do pedido [cfr. artº 668º, nº 1, alínea e)], nulidade que só poderá ser arguida perante o tribunal que a proferiu se ela não admitir recurso ordinário.
Ora, o que é razoável e se esteia nos cânones da normalidade, é que uma «parte», confrontada com uma sentença pela leitura da qual era de concluir que ali foi decidido um pedido com objecto diverso daquele que constava do duplicado da petição inicial que lhe foi entregue, efectuasse um raciocínio com base no qual essa peça processual enfermava do vício subsumível à referida alínea e) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil, vício esse que, porque pode servir como fundamento de recurso, servirá como base dessa impugnação, impugnação essa que é, ainda e nos casos em que é admissível, uma forma de exercício do seu direito de defesa.
Por isso se não afigura adequado sustentar que, não levando a cabo a exigência – não reclamada pelos cânones de normalidade a que se fez referência - de que ora se cura, a «parte» que dessa arte não agiu se colocou numa situação de indefensão que só a si é imputável.
E também não se afigura adequado que, com base em razões de celeridade processual, se justifique a postergação de uma situação objectiva de desigualdade no e perante o tribunal que, como se viu, ocorre com a interpretação normativa sob censura.
A celeridade processual, conquanto sendo um valor que deve presidir
à administração da justiça, não poderá, claramente, ser erigida a um tal ponto que, em seu nome, vá sacrificar aqueloutros valores que, afinal, são componentes de direitos fundamentais tais como os do acesso aos tribunais em condições de igualdade e de uma efectividade de defesa.
Daí se concluir que a dita exigência é algo que, por não justificado ou, numa outra vertente, por ser algo de desproporcionado, se não deve postar como suficiente para justificar que a intervenção do réu (cuja citação é de considerar nula por preterição de formalidades essenciais) no processo após ser ele notificado da sentença que decidiu um pedido diferente do que constava do duplicado da petição inicial que lhe foi entregue, acarreta a sanação da nulidade decorrente da falta de citação.
4. Uma última nota se aduzirá.
Consiste a mesma em fazer realçar que, no vertente aresto, não se fez apelo ao disposto no artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem
(segundo o qual [t]oda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal contra ela deduzida) - e que o recorrente citou como sendo uma norma violada pela interpretação levada a efeito pelo acórdão tirado na Relação de Lisboa e que, por isso mesmo, conduziria a que aquela tivesse de ser considerada inconstitucional.
Na realidade, de acordo com o que se consagra no nº 2 do artigo 16º do Diploma Básico, [o]s preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Só que, aquela norma do artº 10º unicamente seria convocável se e na medida em que ajudasse a interpretar e integrar os preceitos e princípios da Constituição atinentes a direitos fundamentais, caso essas interpretação e integração se mostrassem necessárias.
Contudo, os preceitos e princípios constitucionais que foram trazidos para suportar o juízo que se efectua no presente acórdão são, por si, suficientes e, por isso, não carecidos de qualquer interpretação e integração, pois o que se prescreve no artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem em nenhuma medida deixa de esta já contido naqueles.
III
Em face do exposto, decide-se:- a. Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 2º e 20º da Lei Fundamental, a norma constante do artº 196º do Código de Processo Civil quando interpretada no sentido de se considerar sanada a falta de citação do réu que contestou e interveio no processo e ao qual foi entregue duplicado da petição inicial desconforme com o original constante dos autos; b. Em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando-se que o aresto impugnado seja reformulado em consonância com o juízo de inconstitucionalidade constante da precedente alínea Lisboa, 2 de Dezembro de 1998 Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto que junta) Guilherme da Fonseca (vencido, nos mesmos termos da declaração de voto junta pelo Cons. Messias Bento) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto: Votei no sentido de que a norma do artigo 196º do Código de Processo Civil, na interpretação que dela fez o acórdão recorrido, não enferma de inconstitucionalidade.
São as seguintes as razões deste meu entendimento.
1. O artigo 196º do Código de Processo Civil preceitua como segue: Artigo 196º (Suprimento da nulidade de falta de citação) Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.
A falta de citação do réu - que ocorre nos casos enumerados no artigo 195º -, tal como preceitua o artigo 194º, alínea a), importa a nulidade de tudo o que se processar depois da petição inicial, salvando-se apenas esta. Essa nulidade - prescreve a norma aqui sub iudicio - considera-se, porém, sanada, se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação. Quer dizer: se o réu, apesar de não ter sido chamado a juízo, através da citação
(in ius vocatio), para se defender na acção, intervém no processo sem reclamar logo (isto é, no próprio acto dessa sua primeira intervenção) contra a falta de tal citação, a nulidade daí decorrente fica sanada. E isso, não obstante se estar em presença de um vício que, enquanto o réu for revel, pode ser arguido a todo o tempo, mesmo depois de findo o processo (cf. artigo 771º, alínea f), do citado Código).
2. Esta norma, tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido - que considerou que o réu interveio no processo, para o efeito de se dever considerar sanada a nulidade decorrente da falta da sua citação - será, então, inconstitucional?
Antes de responder a esta pergunta, há que chamar à colação o tipo de intervenção que o réu teve no processo, pois só desse modo a interpretação adoptada se revela em toda a sua carga de sentido.
Pois bem: ao citar-se o réu, entregou-se-lhe o duplicado da petição inicialmente apresentada pelos autores da acção de despejo (que tinha sido indeferida liminarmente), na qual eles pediam que fosse 'declarado resolvido o contrato de arrendamento' - e não o da petição que, na sequência desse indeferimento liminar, os mesmos apresentaram, pedindo, com base nos mesmíssimos factos, que o réu fosse 'condenado no despejo imediato do prédio urbano [...], por caducidade do arrendamento'. O réu contestou, pedindo a sua absolvição, apresentou rol de testemunhas e interveio no julgamento. Proferida a sentença, o réu interpôs recurso para a Relação, dizendo que os apelados (autores da acção) tinham pedido que fosse 'declarado resolvido o contrato de arrendamento', mas que a juiz, depois de afirmar que eles tinham pedido que fosse 'declarada a caducidade', acabou por conhecer desta última questão, desse modo (isto é, ao conhecer de questão diferente da que havia sido pedida) proferindo uma sentença nula. Só depois de, na contra-alegação, os apelados terem esclarecido o que se tinha passado na acção, que é o que se deixou relatado, o ora recorrente arguiu a nulidade consistente na falta da sua citação. Sendo este o quadro factual que levou o tribunal recorrido a concluir que o réu interveio no processo, para o efeito de se dever considerar sanada a nulidade que tinha sido cometida com a falta da sua citação, repete-se a pergunta: será inconstitucional a interpretação assim feita do mencionado artigo 196º do Código de Processo Civil? Mais especificamente ainda: com essa interpretação, ter-se-ão violado os princípios do contraditório, da igualdade de armas e do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, tal como pretende o recorrente?
3. A resposta a tal pergunta - adianta-se já - é negativa. De facto, como este Tribunal tem feito notar (cf., entre outros, o acórdão n.º
249/97, publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997), o processo de um Estado de Direito - processo civil incluído - tem que ser um processo equitativo e leal, no qual cada uma das partes há-de poder expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º
1, da Constituição (versão de 1997), que prescreve que 'a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'. E a tanto se reconduz também o princípio da igualdade de armas, que decorre do princípio do Estado de Direito (cf. acórdão n.º 974/96, publicado no Diário da República, II série de 11 de Novembro de 1996) e se traduz em que cada uma das partes, ao expor as suas razões perante o tribunal, deve poder fazê-lo em condições que a não desfavoreçam em confronto com a parte contrária. É que, o princípio da igualdade vincula todas as funções do Estado (jurisdição incluída), significando essa vinculação que tem que haver igualdade não apenas no acesso à via judiciária, como também perante os tribunais (cf. acórdão n.º 223/95, publicado no Diário da República, II série, de 27 de Junho de 1995). O processo civil, cuja estrutura é dialéctica ou polémica, pois que se apresenta como um debate ou discussão entre as partes, reclama que a cada uma delas se dê a possibilidade de deduzir as suas razões, de oferecer as suas provas, de controlar as do adversário e de discretear sobre umas e outras: é o princípio do contraditório (audiatur et altera pars). E tem que ser, também ele, a due process of law - um processo em que ambas as partes desfrutem de idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida (princípio da igualdade de armas).
O processo civil tem, no entanto, que ser suficientemente célere, por forma a poder proporcionar uma justiça pronta, pois que, quando a sentença é tardia, corre-se o risco de já não se fazer justiça. 'Vencer o pleito, mas só tarde e a más horas, equivale em certa medida a não o vencer. Vitória tardia é meia vitória. Para o próprio vencido, a demora na decisão pode importar um sacrifício acrescido, pela prolongação do estado de incerteza consequente do litígio' - dizia MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1956, página 372). A prontidão na administração da justiça - sublinhou-o este Tribunal no seu acórdão n.º 1193/96 (por publicar) - é, pois, fundamental para que o direito à tutela judicial tenha efectiva realização. E isso reclama celeridade processual. Claro é que não pode exagerar-se na preocupação de celeridade, pois uma rapidez excessiva, que se traduzisse num 'ritmo processual trepidante', prejudicaria a ponderação das partes e a do próprio tribunal, podendo comprometer o acerto da decisão, quando o certo é que a finalidade primeira do processo é fazer justiça.
As necessidades de defesa, conjugadas com a exigência de celeridade processual, não podem, porém, excluir que se considere sanada a nulidade que decorre da falta de citação do réu, quando este intervém no processo sem arguir tal falta. Questão é que essa intervenção tenha lugar em termos de ser exigível que ele se dê conta da falta cometida, para a poder logo arguir. Num tal caso, com efeito, não é irrazoável, nem excessivo presumir - e presumir de forma irrefutável - que, não obstante a falta de citação, ele pôde defender-se; e que, se o não fez,
é porque não pôs nisso a diligência que lhe era exigível ou, então, porque não sentiu necessidade de o fazer. E, por isso, nada impede que se considere convalidado o que era nulo. A situação descrita apresenta algumas semelhanças com os casos em que o legislador se serve de cominações. Ora, este Tribunal já teve ocasião de sublinhar que o princípio da defesa, enquanto princípio conformador do processo de um Estado de Direito, não exclui que o legislador lance mão de cominações
(cf. o citado acórdão n.º 1193/96).
4. Não se vê, assim, que a interpretação adoptada pelo acórdão recorrido atinja qualquer dos princípios constitucionais que se deixaram referidos. Na verdade, como os factos descritos na petição liminarmente indeferida, cujo duplicado foi entregue ao recorrente, e na petição que ele devia contestar, eram os mesmos, é razoável admitir que, até à prolação da sentença, ele não podia dar-se conta (ou, pelo menos, não lhe era exigível que se desse conta) de que tinha estado a defender-se de um pedido (resolução do contrato de arrendamento), que, afinal, era diferente daquele para que foi ordenada a sua citação
(declaração de caducidade do contrato). Mas, outro tanto não pode já afirmar-se, a partir do momento em lhe foi notificada a sentença que julgou a acção: é que, aí, o juiz, depois de relatar que o pedido dos autores era a declaração de caducidade do contrato, concluiu declarando 'a caducidade do contrato de arrendamento'. Impunha-se, por isso, a partir desse momento, que o recorrente - em vez de dar de barato que o juiz julgou questão diferente daquela que lhe tinha sido apresentada para decidir - fosse consultar o processo para ver se algo de anormal tinha acontecido. Se o tivesse feito, teria podido constatar que, embora sem culpa sua, havia laborado num erro, pois que tinha sido pedida a declaração de caducidade do contrato de arrendamento, e não a sua resolução, como, razoavelmente, ele supunha ter acontecido; e, tal verificando, já podia ter protestado contra o facto de lhe terem entregue o duplicado da petição errado e, consequentemente, arguir a nulidade da sua falta de citação. Ou seja: tinha podido defender-se, contraditando as razões dos autores, apresentado as suas próprias razões e as respectivas provas, discreteando sobre elas e, bem assim, sobre as do adversário. E isso, em condições idênticas às dos autores.
A situação de relativa indefensão em que o recorrente acabou por ficar colocado
(relativa, porque ele dispôs de todas as possibilidades de organizar a defesa quanto aos factos articulados pelos autores) ficou, pois, a dever-se, em boa medida, a alguma incúria da sua parte. Ora, um dos princípios que enforma o processo civil é o princípio da auto-responsabilidade das partes - que é um dos corolários do princípio do dispositivo -, segundo o qual são as partes que conduzem o processo a seu próprio risco, redundando, por isso, sempre em seu prejuízo a sua negligência ou inépcia. E isto, porque as falhas das partes não podem ser supridas por iniciativa ou pela actividade do juiz. Messias Bento