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Procº nº 170/98.
2ª Secção. Relator: BRAVO SERRA.
1. Nos presentes autos vindos do Supremo Tribunal de Justiça e em que figuram, como recorrentes, os arguidos J..., R..., H..., N..., NS..., AC... e JM... e, como recorridos, o Ministério Público, F..., B... e M..., lavrou o relator decisão sumária (fls. 5460 a 5466), por intermédio da qual, por um lado, se não conheceu dos recursos interpostos por aqueles quatro últimos arguidos. Neste ponto, veio tal decisão a constituir caso julgado. Por outro lado, na indicada decisão, e relativamente às impugnações dos recorrentes J... e R..., foi entendido não se conhecer da matéria respeitante à norma constante do artº 433º do Código de Processo Penal, entendimento que não foi posto em causa por aqueles recorrentes e que, por isso, nesse particular, igualmente veio a constituir caso julgado. Ainda por outro lado, na aludida decisão, e tocantemente aos arguidos J..., R... e H..., na parte em que os respectivos recursos diziam respeito à alegada inconstitucionalidade da norma ínsita no artº 410º do dito Código, foram eles considerados improcedentes, para tanto se tendo feito apelo à jurisprudência firme, conquanto não unânime, tomada por este Tribunal. Do assim decidido reclamaram para a conferência os referidos J..., R... e H...
(cfr. fls. 5483 a 5490 e 5492 a 5496), os quais, identicamente, manifestaram a vontade de interpor recurso para o plenário deste Tribunal. Esses intentados recursos não foram admitidos por despacho de 17 de Abril de
1998 (cfr. fls. 5497 e 5498), o qual veio a constituir caso julgado formal nos vertentes autos.
2. Em consequência, estão tão somente em causa as reclamações da mencionada decisão sumária na parte em que se consideraram improcedentes os recursos dos arguidos J..., R... e H... quanto à suscitada desconformidade com a Lei Fundamental da norma constante do artº 410º do Código de Processo Penal. Com essa decisão concordou o Ex.mo representante do Ministério Público junto deste Tribunal, sendo que, relativamente às reclamações acima citadas, nenhuma
«resposta» foi efectuada por banda dos demais recorridos. Talqualmente se referiu naquela decisão, tendo em atenção a jurisprudência tomada a esse respeito por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa (jurisprudência essa de que são dados exemplos na referenciada exposição), entende-se que as presentes reclamações não devem merecer deferimento. A isto há que acrescentar que, de todo o modo, mesmo pelos Juízes deste Tribunal que votaram no sentido da inconstitucionalidade da norma constante do artº 410º do Código de Processo Penal, nunca pelos mesmos foi defendido que um tal vício decorria da circunstância de nesse preceito se não prever a renovação global da prova a efectuar pelo tribunal de recurso, sendo que, afinal, foi essa, e verdadeiramente, a dimensão normativa que os ora recorrentes questionaram. Nestes termos, confirma-se a decisão sob reclamação, condenando-se os reclamantes nas custas processuais, fixando a taxa de justiça, a cargo de cada um, em dez unidades de conta. Lisboa, 4 de Agosto de 1988. Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca (sem prejuizo da posição sempre adoptada noutros recursos sobre a mesma matéria - cfr. os acórdãos nºs. 141/94 e 156/97) Maria Fernanda Palma Pereira (votei a decisão, apenas pelo último dos fundamentos invocados quanto à posição dos juízes vencidos, sendo, portanto, parcialmente vencida quanto à fundamentação, nos termos de declarações de voto juntas a vários outros Acórdãos que assinei, como por exemplo a do Acórdão
541/95 que também agora junto) José Manuel Cardoso da Costa Declaração de Voto Votei vencida o presente acórdão pelas seguintes razões:
1ª. Entendo que a Constituição assegura o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal, nos artigos 20º, nº 1, e 32º, nº 1. Em processo penal, o direito de acesso aos tribunais do arguido concretiza-se imediatamente no direito de recurso, uma vez que o direito penal só é passível de aplicação jurisdicional. O arguido é, evidentemente, titular do direito de
(apenas) ser responsabilizado por um tribunal, mas o acesso aos tribunais, por sua iniciativa, para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (artigo
20º, nº 1), postos em causa pela aplicação de penas ou medidas de segurança, só
é efectivado em sede de recurso. O direito a um duplo grau de jurisdição constitui garantia de defesa, ainda que não prevista especificamente (artigo 32º, nº 1). Só serão admissíveis excepções em caso de acordo entre a acusação e a defesa, visando a contenção do exercício do poder punitivo estatal e relativamente a sanções de reduzida gravidade - como sucede no processo sumaríssimo [cf. os artigos 392º, 396º, nº 3, e 400º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal].
2ª. Entendo, igualmente, que o duplo grau de jurisdição no processo penal abrange a matéria de facto e a matéria de direito. Um sistema que excluísse em absoluto o recurso penal em matéria de facto continuaria a violar as normas dos artigos 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição, visto que não asseguraria ao arguido, de forma plena, a defesa dos seus direitos, denegando-lhe uma garantia de defesa. Desta exigência não resulta, todavia, que o tribunal ad quem deva reapreciar toda a matéria de facto em obediência ao princípio da imediação que conforma a audiência de julgamento em primeira instância. Um sistema de revista alargada, como o contemplado no artigo 410º do Código de Processo Penal para os casos em que o recurso seja interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ou para o Tribunal de Relação de sentença precedida de audiência não documentada (artigos
433º e 428º, nº 2, respectivamente, do Código de Processo Penal), pode satisfazer as prescrições constitucionais, até porque permite a realização de novo julgamento, quando, em face dos vícios da decisão recorrida, não for possível decidir a causa (artigos 426º e 436º do Código de Processo Penal).
3ª. Sendo a revista alargada o regime-regra do nosso processo penal [uma vez que abrange todos os casos em que o julgamento decorreu perante tribunal colectivo e de júri e mesmo perante tribunal singular, ressalvadas as hipóteses em que algum dos sujeitos processuais declarou não prescindir da documentação da audiência - artigos 432º, alíneas b) e c), e 364º, nº 1, do Código de Processo Penal], julgo que ela não contempla, plenamente, um duplo grau de jurisdição, atendendo aos concretos limites que lhe são impostos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal: a) A exigência de que 'o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum' é incompatível com a tutela assegurada no artigo 18º, nº 2, da Constituição, aos direitos, liberdades e garantias. Na verdade, o direito de recurso constitui uma garantia fundamental, incluída no Título I da Parte I, só podendo ser restringido na medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Ora, é manifesto que não existe, neste caso, nenhum direito ou interesse que decisivamente imponha tal restrição. O único interesse que vagamente se pode reconhecer é o interesse na economia e celeridade processuais, que aconselharia a dispensa de o tribunal ad quem analisar as várias peças que compõem o processo. Não se vê, porém, como pode este interesse prevalecer sobre o interesse na realização da justiça material, numa hipótese de reformatio in melius. Apenas se poderia reconhecer a legitimidade da 'restrição' se ela, afinal, não constituísse restrição nenhuma - se fosse sempre possível, como no exemplo do documento autêntico não recenseado ou valorado na decisão recorrida fornecido pelo presente acórdão, fundamentar o recurso em nulidade insanável, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal. Contudo, a limitação do vício ao texto da decisão recorrida constitui uma efectiva restrição. A sentença pode, por exemplo, dar como provado um facto e indicar as provas que permitiram formar a convicção do tribunal sem incorrer em nulidade alguma (artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal) e, todavia, cometer uma injustiça que apenas é documentada pelos autos (e não pelo seu próprio texto). Suponha-se, por exemplo, que do processo constam declarações para memória futura, colhidas durante o inquérito ou a instrução (artigos 271º e 294º, respectivamente, do Código de Processo Penal). Tais declarações podem, porventura, 'comprovar', na perspectiva da decisão recorrida (do seu texto), que o arguido esteve em determinado local mas, simultaneamente, serem tão incoerentes que não podem aceitar-se como credíveis (a testemunha pode sustentar que viu o arguido, distintamente, no campo, durante a noite, a uma grande distância ...). Nesta hipótese, a insuficiência da matéria de facto e o erro notório na apreciação da prova não são patenteados necessariamente pelo texto da decisão recorrida e não será admissível proibir o tribunal ad quem de compulsar os autos e reformar essa decisão (ou determinar o reenvio do processo). Assim, julgo que a norma constante do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal é materialmente inconstitucional, por violar, conjugadamente, os artigos
20º, nº 1, 32º, nº 2, e 18º, nº 2, da Constituição, na medida em que exige que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum. b) A exigência de contradição da fundamentação insanável [alínea b) do nº 2 do artigo 410º] ainda é, a meu ver, passível de uma interpretação segundo a Constituição (artigo 80º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional): apenas poderá considerar-se irrelevante a contradição cuja sanação seja absolutamente insusceptível de influir no sentido da decisão recorrida. c) Diferentemente, a exigência de erro notório na apreciação da prova restringe inadmissivelmente o direito de recurso, põe em causa a independência dos tribunais (artigo 206º da Constituição) e viola o próprio princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição). Deve reconhecer-se, é certo, que a notoriedade do erro se há-de aferir pelo saber, capacidade e experiência de um magistrado judicial de um tribunal superior - e não de um magistrado em início de carreira ou, muito menos, de um leigo. Todavia, mesmo nesta perspectiva, é inaceitável que o tribunal ad quem não possa corrigir aquilo que ele próprio, segundo a sua livre convicção, considera um erro na apreciação da prova, por não constituir erro notório. Esta limitação põe em causa a 'independência interna' dos tribunais - a independência de cada tribunal perante os restantes tribunais. Por outro lado, tal limitação pressupõe, afinal, que no âmbito do recurso ordinário a presunção de inocência do arguido é substituída por uma presunção de legalidade da decisão do tribunal a quo. Ora, a presunção de inocência do arguido vale até ao preciso momento do trânsito em julgado da sentença condenatória (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e impõe que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando como corolário, na fase da decisão, o princípio in dubio pro reo. Por conseguinte, julgo que a norma constante da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal é materialmente inconstitucional, por violar, conjugadamente, os artigos 20º, nº 1, 32º, nº 1, e 18º, nº 2, e ainda, autonomamente, os artigos 206º e 32º, nº 2, da Constituição, na medida em que põe em causa a independência dos tribunais e exige que o erro na apreciação da prova seja notório. Maria Fernanda Palma