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Proc. nº 593/98 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - J..., com os sinais dos autos, propôs, em 29/12/94, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL), ao abrigo do disposto nos artigos
268º nº. 4 da CRP, 51º nº. 1 alínea f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 69º e 70º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
(LPTA), acção para o reconhecimento do seu direito ao reposicionamento nos escalões da categoria de investigador principal, contra o Conselho Directivo do Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial e os Ministros da Indústria e Energia e das Finanças.
A acção foi julgada procedente e provada e da sentença recorreram os RR. para o Supremo Tribunal Administrativo (STA).
O recurso foi então provido e os RR. absolvidos da instância, com fundamento na inidoneidade do meio processual utilizado pelo A .
É deste acórdão que vem interposto pelo A . na acção o presente recurso, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82.
No requerimento de interposição do recurso, o recorrente indicou a norma ínsita no artigo 69º nº. 2 da LPTA como sendo aquela cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada pelo Tribunal.
No mesmo requerimento indicou, ainda, como violado o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa, consagrado no artigo 268º nº. 4 da CRP.
Nas alegações, apresentou as seguintes conclusões:
'a) Embora o elemento histórico inculque uma interpretação declarativa do artigo 69º, nº. 2, da LPTA, o elemento sistemático impõe um entendimento restritivo da limitação consagrada naquele preceito relativamente ao âmbito de aplicação da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido;
b) Essa interpretação restritiva manifesta-se no tocante à irrelevância do indeferimento tácito como facto impeditivo e à relevância a atribuir ao critério da efectividade da tutela em termos de esta, no tocante a actos positivos expressos, se aferir pela suficiência da impugnação de um único desses actos para tutelar o direito ou interesse legalmente protegido em causa;
c) O pendor restritivo da interpretação do artigo 69º, nº. 2, daquele diploma esbarra, porém, no sentido claramente limitativo nele intencionado e, bem assim, na chamada 'teoria da alusão';
d) No acórdão recorrido foi adoptada uma interpretação mais próxima do teor literal do artigo 69º, nº. 2, da LPTA, logo mais próxima da interpretação declarativa, ao entender-se que, nos termos do preceito em causa, a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido só pode ser utilizada quando não se possa recorrer a nenhum dos restantes meios contenciosos;
e) Nomeadamente, foi entendido que havendo acto administrativo expresso lesivo dos interesses de um particular – o que in casu se verificaria em relação aos sucessivos actos de processamento dos vencimentos – este só se poderia defender pela via jurisdicional interpondo um recurso contencioso do mesmo, e isto porque o artigo 69º, nº. 2, da LPTA seria impeditivo da propositura duma acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido;
f) Entre 1982 (1ª revisão constitucional) e 1989 (2ª revisão constitucional) o artigo 69º, nº. 2, da LPTA tinha de ser objecto de uma interpretação (restritiva) conforme à Constituição no sentido de a expressão
'restantes meios contenciosos' se reportar apenas ao recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, de actos administrativos definitivos e executórios
(não abragendo, portanto, as acções sobre contratos e responsabilidade civil extracontratual);
g) Porém, a partir de 1989 verifica-se uma incompatibilidade com o artigo 268º, nº. 5, da CRP, independentemente do carácter mais ou menos restritivo daquele preceito;
h) Essa inconstitucionalidade ainda é mais patente face à nova redacção dada pela 4ª revisão constitucional ao artigo 268º, nº. 4, da CRP, ou seja, o artigo 69º, nº. 2, da LPTA é hoje inconstitucional por violar o mencionado preceito constitucional; i) A interposição de recurso contencioso, à luz do artigo 268º, nº. 5 da CRP (na redacção dada pela 2ª revisão constitucional) ou do artigo 268º, nº. 4, do mesmo normativo (na redacção dada pela 4ª revisão constitucional), só é condição necessária para a tutela dos direitos ou interesses legítimos dos administrados no caso de a Administração Ter praticado um acto administrativo lesivo dos mesmos direitos ou interesses, uma vez que a respectiva não impugnação contenciosa pelos interessados pode permitir a formação de caso decidido com eficácia extintiva ou restritiva da posição jurídica subjectiva activa que os administrados pretendem ver tutelada por via jurisdicional;
j) Com efeito, mantendo-se o poder da Administração de praticar actos dotados de imperatividade, ou seja, com o poder de produzir efeitos jurídicos na esfera jurídica de terceiros independentemente da vontade destes, mantém-se igualmente o ónus de os lesados por actos com essa eficácia os impugnarem contenciosamente sob pena de verem a sua esfera jurídica conformada nos termos definidos pelos actos em causa;
l) Assim, a necessidade de utilização do meio processual recurso contencioso decorre, hoje, à luz do previsto no artigo 268º da CRP, exclusivamente da circunstância de um reconhecimento dum direito ou interesse legítimo poder exigir a prévia eliminação dum acto administrativo expresso;
m) E, mesmo perante actos administrativos expressos, não se pode excluir do plano que a propositura de uma acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido seja condição suficiente para impedir a formação do caso decidido – desde que a mesma ocorra dentro do prazo de dois meses;
n) O artigo 69º, nº. 2, da LPTA afirma o princípio inverso: a interposição de recurso contencioso só não é necessária para a tutela dos direitos ou interesses legítimos dos administrados no caso das omissões da Administração ou caso a interposição do recurso contencioso excepcionalmente não assegure a efectiva tutela jurisdicional à posição jurídica subjectiva em causa;
o) Na verdade, as alterações introduzidas na CRP na 2ª revisão constitucional respeitantes ao posicionamento constitucional da Administração Pública – e que não se circunscrevem ao artigo 268º, nº. 4 e 5, pois devem igualmente ser salientadas quer a constitucionalização formal dos tribunais administrativos (arts. 211º, nº. 1, alínea b), e 214º), quer a definição da função jurídico-constitucional da jurisdição administrativa (art. 214º, nº. 3), e, bem assim, o reforço da tutela dos administrados através da consagração expressis verbis do direito de acção popular de defesa de determinados bens colectivos (artigo 52º, nº. 3) – representaram uma profundíssima alteração do sistema administrativo português: este deixou de se centrar no Poder Administrativo e na sua manifestação mais importante, o acto administrativo, para se afirmar, cada vez mais, como um ordenamento vinculativo de sujeitos titulares de direitos e vinculações;
p) Em primeiro plano está agora o cidadão titular de direitos e interesses legalmente protegidos – sujeito de uma relação jurídico-administrativa – e não já o destinatário do Poder Administrativo; inversamente, a Administração, sem deixar de ser poder, revela-se igualmente como sujeito de relações jurídicas;
q) A esta luz perde todo o sentido a preferência pelos meios impugnatórios; aliás, sempre que esteja em causa directamente a relação jurídica administrativa é natural que a preferência do particular vá para a acção (já não apenas a acção para reconhecimento de direitos ou interesses legítimos, mas também as demais acções – daí a formulação abrangente do artigo 268º da CRP), pois, se ao nível constitucional é sempre garantido o acesso à justiça administrativa aos administrados que pretendam a tutela directa das suas posições jurídicas subjectivas, para mais nos mesmos termos e com idêntica força normativa em que é garantido o recurso contencioso, , então o legislador ordinário não pode subordinar o campo de aplicação de uns meios processuais a outros, substituindo-se, desse modo, aos administrados na escolha da tutela mais adequada aos respectivos interesses;
r) Ora, é precisamente o significado objectivo do artigo 69º, nº. 2, da LPTA: limitar o campo de aplicação da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido às situações em que os restantes meios não assegurem uma tutela jurisdicional efectiva, ou seja, o legislador ordinário faz nesse preceito uma opção em favor dos meios próprios do contencioso de anulação e do tradicional contencioso por atribuição, opção essa que o legislador constituinte expressamente quis reservar aos particulares;
s) Interpretar a 2ª revisão constitucional relativamente ao artigo
268º, nº. 5, da CRP como um mero aperfeiçoamento técnico legislativo é historicamente errado, inadequado do ponto de vista da análise gramatical, mas, sobretudo, insustentável nos planos da sistemática e da teleologia constitucional;
t) Por outro lado, também não procede a tentativa de ver no artigo
69º, nº. 2, da LPTA a consagração do pressuposto processual do interesse em agir por referência à dependência do prévio exercício de quaisquer outros meios impugnatórios para efeitos de acesso à justiça administrativa, porquanto tal mais não é do que a definição de uma relação de subsidiariedade ou de complementaridade entre meios processuais autónomos aí onde a Constituição expressamente consagra uma equivalência funcional entre todos os meios;
u) Na verdade, o legislador ordinário pode regular o acesso à justiça administrativa, quer pela via do recurso, quer pela via da acção; o que não pode
é introduzir um esquema de precedência de uma via sobre a outra aí onde o legislador constituinte afirmou uma igualdade fundamental – e é precisamente isso que o artigo 69º, nº. 2, da LPTA consagra, pelo que não pode deixar de se ter como inconstitucionalizado;
v) Por outro lado, há que ter em conta que o caso decidido pode sempre relevar num quadro de admissibilidade do acesso à via jurisdicional alternativamente através do recurso contencioso ou da acção, mas a título de condição da acção – ou seja, tal efeito pode relevar quanto ao fundo da causa, mas tem de relevar como pressuposto processual;
x) Também não se pode salvar a previsão do artigo 69º, nº. 2, da LPTA com a invocação de que a mesma não é contraditória com o objectivo de colmatar as insuficiências e limitações do contencioso de mera anulação e de abrir as vias para a introdução de verdadeiros writs, porquanto não impede o desencadeamento imediato deste meio processual quando se verifiquem tais insuficiências e limites do recurso contencioso;
z) Com efeito, teoricamente a efectiva tutela jurisdicional das posições jurídico-administrativas dos particulares é sempre possível através da interposição de sucessivos recursos – nem que para se obter uma decisão final seja necessário passar uma vida a interpor recursos referentes ao mesmo poder;
aa) Por todas as razões expostas, o artigo 69º, nº. 2, da LPTA é inconstitucional supervenientemente por incompatível com o artigo 268º da CRP.'
Em contra-alegações, concluiu o Conselho Directivo do INETI:
'1ª O actual nº. 5 do art. 268º da Constituição, com o consequente reforço do princípio 'pro actione' ou da accionabilidade, não teve o propósito de subverter a normalidade legal e tradicional da necessidade de interposição de recurso contencioso imediato contra actos lesivos expressos ou simplesmente presumidos
(fictos) feridos de ilegalidade;
2ª Aquela norma constitucional visa, sim, assegurar um princípio de plenitude de garantia Jurisdicional administrativa que se destina a evitar que o particular fique desprovido de um meio processual adequado perante lesões de direitos ou interesses legítimos;
3ª Face às duas conclusões precedentes, a natureza constitucional do art. 69, nº. 2 da LPTA não está em causa, nem mesmo com a última revisão constitucional que alterou mais uma vez, a redacção da art. 268º nº. 4 da CRP (Lei Constitucional nº. 1/97, de 20/9);
4ª A Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de longe predominante desde 1990, vem concluindo como na conclusão anterior se concluiu;
5ª A tese sustentada pela recorrente de que, após a revisão constitucional de
1989, já não subsiste a regra da subsidiariedade ou residualidade da 'acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo' está fragilizada pelo absurdo de pretender um sentido não consentido nem pela letra nem pela ratio e sistemática dos nºs. 4 e 5 do art. 268º da CRP: o de subverter a função-regra legalmente fixada e tradicionalmente consolidada do recurso contencioso de anulação, designadamente quando exista acto administrativo definitivo e executório, como existiu no caso em apreço;
6ª O facto de as acções para tutela dos direitos ou interesses dos particulares poderem ser intentadas a todo o tempo, existindo outros meios idóneos para a sua defesa, especificadamente o recurso, geraria a instabilidade e insegurança na ordem jurídica, impossibilitando a normalização da actividade administrativa;
7ª A tutela jurisdicional dos direitos ou interesses que com a acção a recorrente visou alcançar, poderia ter sido por ela conseguida (se outras razões legais não obstassem ao reconhecimento da pretensão que deduziu) pela impugnação contenciosa e atempada dos actos administrativos de processamento dos seus vencimentos e da lista de progressão de escalões, publicada a 22.05.92, nos termos do nº. 4 do art. 2Oº do DL 353-A/89, de 10 de Outubro;
8ª Não o tendo sido, tais actos administrativos consolidaram-se na ordem jurídica, como casos decididos ou resolvidos, sendo insindicáveis para a futuro;
9º Por tudo quanto exposto, o art. 69º, nº. 2, da LPTA é constitucional e, em consequência, perfeitamente compatível com o determinado no art. 268º da CRP.' Também em contra-alegações, o Ministro da Economia formulou as seguintes conclusões:
'a) A acção para reconhecimento de direito ou interesse legalmente protegido, pode ter lugar sempre que se esteja perante uma medida administrativa que não preencha os pressupostos processuais que lhe permitam ser apreciados através de outros meios contenciosos; b) A acção para reconhecimento de direito funciona como uma 'válvula de escape' do contencioso administrativo, destinada a permitir o controlo de todas as actuações administrativas e a tutela judicial de todos os direitos dos particulares que, de outra maneira, se arriscariam a ficar isentos de controlo; c) O direito de acção, só deverá ser exercitado, nos casos em que o meio de reacção normal e típico seja o de recurso contencioso, quando por esta última via, se não mostre garantida uma efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa; d) A acção para reconhecimento de direito, tem carácter complementar em relação aos restantes meios contenciosos, não tendo, em relação aos mesmos, carácter subalterno; e) O artigo 69º, nº. 2, da LPTA, não viola assim o disposto no artigo 268º, nº.
5 da CRP, pelo que, não é inconstitucional.'
Ainda em contra-alegações, o Secretário de Estado do Orçamento pugna pelo improvimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Na acção intentada contra o Conselho Directivo do INETI, o A . e ora recorrente pediu o reconhecimento do direito a uma determinada posição remuneratória (escalão), no âmbito da categoria inserida na carreira em que está integrado, diversa daquela que lhe fora atribuída na lista de progressão de escalões publicada pela Administração, com todas as legais consequências daí decorrentes, incluindo o pagamento da diferença entre as remunerações recebidas e aquelas que deveriam ser pagas de acordo com o referido posicionamento.
No acórdão recorrido, a decisão de absolvição dos RR. da instância, por inidoneidade do meio processual usado, nos termos do artigo 69º nº. 2 da LPTA, assentou em que o A . poderia, com a interposição de recurso contencioso quer dos actos de processamento de vencimento, quer da lista de progressão de escalões publicada pelo INETI, obter a efectiva tutela jurisdicional dos direitos que visara alcançar.
Impõe-se, assim, concluir que o acórdão recorrido ponderou, em concreto, os efeitos que a anulação contenciosa dos actos de processamento de vencimentos e da lista de progressão de escalões produziria, pois só essa ponderação lhe permitiria o juízo que, a final, formulou, no sentido de que os direitos invocados pelo A . na acção seriam efectivamente tutelados mediante a utilização daquele meio contencioso.
Limitados os poderes de cognição à questão de constitucionalidade da norma contida no artigo 69º nº. 2 da LPTA, o Tribunal Constitucional não pode sindicar – e terá que pressupor – o acerto daquele julgado, no que ele tem não só de explícito como de implícito (designadamente a recorribilidade dos referidos actos).
Note-se, ainda, que a decisão recorrida não se fundamenta em qualquer incumprimento, por parte do A ., de um ónus de alegação e prova da inadequação do recurso contencioso ou de outro meio processual, para a tutela eficaz do direito que pretendia ver reconhecido.
Por outro lado, independentemente do modo como, no acórdão recorrido, se tenha qualificado a posição relativa da acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo regulada nos artigos 69º e segs. da LPTA – residualidade, subsidiariedade ou complementaridade – o juízo de constitucionalidade há-de exclusivamente incidir sobre a interpretação dada à norma ínsita no nº. 2 do artigo 69º da LPTA que flui da referida conclusão do aresto em causa.
Interpretação que se sintetiza nos seguintes termos: sempre que a tutela do direito a que o interessado se arroga possa ser efectivamente assegurada pela interposição de recurso contencioso, a acção de reconhecimento de direito ou interesse legítimo não é o meio processual idóneo para atingir aquele fim.
E é com uma tal interpretação que há-de aferir-se a constitucionalidade da norma contida no artigo 69º nº. 2 da LPTA face ao disposto no artigo 268º nº. 4 da CRP, na redacção que resulta da 2ª revisão constitucional (mantida na 3ª) e 'reforçada' – nas palavras do recorrente – com a redacção dada pela 4ª revisão ao mesmo preceito.
3 - A consagração constitucional de meios de tutela jurisdicional de direitos e interesses dos cidadãos face à Administração, no âmbito das relações jurídico- administrativas, data de há cerca de três décadas.
Só com a revisão de 1971, foi introduzido, na Constituição de 33, um nº. 21 ao artigo 8º, respeitante a direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses, onde se estabelecia o direito (ou garantia) de 'haver recurso contencioso dos actos administrativos definitivos e executórios que sejam arguidos de ilegalidade'.
À timidez do legislador constituinte correspondia, de certo, a parcimónia do legislador ordinário. Para além do recurso contencioso de actos administrativos definitivos e executórios e da providência cautelar de
'suspensão de executoriedade' dos mesmos actos, a lei apenas previa, no contencioso administrativo, as acções sobre contratos administrativos e de responsabilidade da Administração – aquele constituía o chamado 'contencioso por natureza' e estas o 'contencioso por atribuição'.
Com a Constituição de 76 e apesar do artigo 20º nº. 1 garantir, a todos, o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, apenas a garantia do recurso contencioso contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios com fundamento em ilegalidade mereceu, no artigo nº. 269º nº. 2, dignidade constitucional.
Já então, porém, o legislador ordinário, com o DL nº. 256-A/77, de introduzira alterações substanciais no processo de execução, até então regulado no artigo 77º do Regulamento do STA, num sentido que claramente aponta para a tutela mais eficaz dos direitos e interesses ofendidos pelo acto contenciosamente anulado ou declarado nulo ou inexistente.
Do mesmo passo, significaram estas alterações o reconhecimento da insuficiência dos meios contenciosos (dominantemente, o recurso contencioso) ao dispor do cidadão para garantir a tutela das suas posições jurídicas subjectivas lesadas ou ameaçadas por condutas, positivas ou negativas, da Administração.
A revisão constitucional de 82 é mais um passo na construção de um contencioso administrativo que disponibilize aos administrados um conjunto perfeito de meios processuais adequados à tutela efectiva dos seus direitos e interesses.
Mantendo a garantia do recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, de actos administrativos definitivos e executórios, o artigo nº.
268º nº. 4 da CRP, na revisão de 82, atribui ao 'recurso' um novo fim: o de se
'obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido'.
Para além da imposição de um novo meio processual (ou da nova disciplina do recurso contencioso que pudesse abranger aquele fim) a alteração constitucional começa a apontar para uma nova dimensão qualitativa do contencioso administrativo até então – e no que ao recurso se refere – com um modelo dominantemente objectivista.
Com a revisão constitucional de 82, mais instante se tornou a necessidade de uma alteração profunda do contencioso administrativo, o que vem a verificar-se com o DL nº. 129/84, de 27 de Abril (ETAF) e o DL nº. 267/85, de 16 de Julho (LPTA).
Sobre as inovações trazidas ao processo do contencioso, lê-se no preâmbulo da LPTA:
'..................................................................................................
Na regulamentação dos novos meios contenciosos procurou-se definir regimes equilibrados que, sem afectar os interesses públicos necessariamente prosseguidos pela Administração, permitam aos administrados uma tutela eficaz dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, como é essencial à verdadeira relevância e utilidade prática do contencioso administrativo.
O que explica, além do mais, a urgência que se imprimiu à tramitação de variados processos.
Teve-se em atenção, porém, a mais conveniente definição do campo de aplicação e dos pressupostos daqueles novos meios, de modo a evitar a sua utilização, sem necessidade, para a tutela de direitos ou interesses já garantidos por outros meios.
Isso explica, designadamente, o condicionamento das acções para reconhecimento de direito ou interesse legalmente protegido, só admitidas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução à sentença, não asseguram a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa.
É que, em grande número dos casos, essa tutela pode ser perfeitamente realizada através do uso do recurso contencioso, com o posterior incidente, se necessário, relativo à execução da sentença.
Isto porque, muitas vezes, a simples anulação do acto impugnado, obrigando a Administração a dar execução à sentença, de harmonia com os vícios determinantes da anulação, será suficiente para a tutela do direito ou interesse do recorrente, sem necessidade de o tribunal proceder a uma mais longa e pormenorizada instrução, com vista à precisa e completa definição do conteúdo concreto do direito ou interesse em causa – o que, aliás, a ser objecto de controvérsia, poderá ser feito no incidente de execução da sentença anulatória.
E a ideia anteriormente exposta assume agora mais fundamentada relevância pelo novo regime, que se define no diploma, sobre a prioridade de conhecimento dos vícios nos recursos contenciosos, pois nele se estabelece o princípio da prioridade de conhecimento daqueles cuja procedência determine mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
Trata-se aqui – e adianta-se já esta nota – de regime que vem dar satisfação muito razoável às críticas que vinham sendo feitas ao sistema da prioridade de conhecimento, em princípio, dos vícios de forma, o qual, aliás, deve reconhecer-se, estava já a ser abandonado em certa medida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.
E o estado actual de congestão de serviço dos tribunais administrativos torna em absoluto impraticável o sistema de obrigatoriedade de conhecimento de todos os vícios arguidos.
..................................................................................................'
Este passo sintetiza as alterações mais relevantes do contencioso administrativo, sendo de evidenciar que elas se orientam num sentido de uma melhor tutela dos direitos e interesses dos administrados, designadamente no que concerne ao próprio recurso contencioso, em cuja decisão se passou a impor a observância de um princípio que não é de mais salientar – o do conhecimento prioritário dos vícios cuja procedência assegure tutela mais estável ou eficaz dos interesses ofendidos (artigo 57º da LPTA).
No que respeita ao reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos, que a revisão de 82 impunha como outro fim do 'recurso', o legislador ordinário criou um novo meio processual – a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo (artigos 69º e segs.) – que fez seguir os termos dos recursos de actos administrativos dos órgãos da administração local (artigo 70º nº. 1), podendo, no entanto, o juiz, face à complexidade da matéria controvertida, determinar o prosseguimento do processo, com a tramitação das acções sobre contratos e responsabilidade (artigo 70º nº.
2).
Não explicitou o legislador, em termos positivos, as situações em que o interessado podia lançar mão da acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo; antes optou por a condicionar à insuficiência de outros meios contenciosos (entre eles, o recurso contencioso) para assegurar 'a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa' (artigo 69º nº.
2).
Com esta formulação abria-se ao julgador um amplo espaço de ponderação quanto à verificação dos pressupostos deste meio processual.
Em bom rigor, não estaria excluído que a acção pudesse ser intentada p. ex. quando se pudesse presumir um indeferimento tácito ou tivesse sido proferido um acto administrativo ferido de nulidade e, no limite, não estaria mesmo obstaculizada a acção quando vigorasse na ordem jurídica um acto administrativo que contivesse a definição do direito que o administrado pretende ver reconhecido.
Na verdade, a verificação do pressuposto negativo haveria sempre de se determinar pela inexistência de outros meios contenciosos que assegurassem a
'efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa'.
Com ressalva da existência de um acto administrativo, definidor da situação jurídica pertinente, consolidado na ordem jurídica – que, mesmo assim, chegou a ser considerado em alguma (minoritária) jurisprudência mera causa de improcedência da acção – tudo acabaria por se resolver, para aquele efeito, de acordo com o entendimento sobre o conceito de tutela efectiva do direito ou interesse e o juízo de prognose relativo ao resultado da utilização de outros meios contenciosos.
No quadro da revisão de 82, o artigo 268º nº. 3 da CRP não contrariava o modelo que o legislador da LPTA viria a desenhar para a nova acção regulada nos artigos 69º e segs.; aquele impunha a criação de um meio processual
(recurso ou acção) que permitisse o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, não vinculando a lei ordinária à fixação de quaisquer pressupostos processuais, com ressalva de eles não inviabilizarem, na prática, a utilização daquele meio.
A revisão constitucional de 89, aditou ao artigo 268º um nº. 4 onde inscreveu, com alterações, o que se dispunha no anterior nº. 3 do mesmo artigo
268º.
As alterações aqui introduzidas – eliminação da qualificação
'definitivos e executórios' dos actos administrativos recorríveis, que passam a ser caracterizados como os que lesam direitos ou interesses legalmente protegidos – se não têm um sentido de mudança profunda relativamente ao que já deveria entender-se por acto administrativo recorrível, revelava no entanto uma acentuação clara da garantia dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados (posições jurídicas subjectivas) no contencioso administrativo.
Vinca-se esta acentuação com a autonomização, em número próprio do artigo 268º (o nº. 5), da garantia dos administrados de 'acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos'.
Diz o preceito:
'É igualmente sempre garantido aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos'.
Poderia dizer-se que a garantia consagrada no artigo 268º nº. 5 da CRP (versão de 89) não é mais do que a consagração expressa, no âmbito do contencioso administrativo, do que, em termos legais, decorria já da garantia de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos estabelecida no artigo 20º nº. 1 da CRP que, na melhor interpretação, compreende o direito a uma tutela judicial efectiva daqueles direitos e interesses.
Mas, erigida em preceito autónomo, a norma reforça a exigência de um programa completo de instrumentos processuais que integralmente satisfaçam a necessidade da tutela efectiva de quaisquer direitos ou interesses legalmente protegidos.
O que essencialmente se pretende é que a justiça administrativa tenha sempre resposta, em termos procedimentais, à solicitação de tutela de direitos ou interesses; trata-se, afinal, de fazer corresponder a todo o direito uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, como se consigna no artigo 2º nº. 2 do Código de Processo Civil.
Já, porém, o comando constitucional não condiciona o legislador, respeitado que seja o modelo organizatório judicialista e a tutela efectiva dos direitos dos administrados, na sua opção pelas fórmulas de instituição da justiça administrativa, como bem sustenta Vieira de Andrade in 'Direito Administrativo e Fiscal', lições ao 3º ano do Curso de 1994/95, pág. 35; e, muito menos, na articulação dos diversos meios processuais que disponibiliza ao administrado ou na fixação de pressupostos processuais de cada um deles, de que eventualmente resulte – como no caso resulta – a preferência por um determinado meio que, em concreto, assegure a tutela efectiva, reclamada, do direito ou do interesse.
Foi o que se disse já no Acórdão nº. 435/98, in DR, II Série, de
10/12/98, p. 17477, de que se transcreve o seguinte trecho:
'9. O legislador constitucional pretendeu assim criar, no quadro da justiça administrativa, um modelo garantístico completo, de forma a facultar ao administrado uma tutela jurisdicional adequada sempre que esteja em causa um interesse ou direito legalmente protegido.
Porém, não pode afirmar-se que o legislador constitucional tenha pretendido uma duplicação dos mecanismos contenciosos utilizáveis. Com efeito, o que decorre do nº. 5 do artigo 268º da Constituição é que qualquer procedimento da Administração que produza uma ofensa de situações juridicamente reconhecidas tem de poder ser sindicado jurisdicionalmente. É nesta total abragência da tutela jurisdicional que se traduz a plena efectivação das garantias jurisdicionais dos administrados.
Mas já não se enquadra necessariamente nesta ideia de total garantia jurisdicional uma duplicação ou alternatividade de meios processuais de reacção a uma dada actuação da administração. Na verdade, não decorre do nº. 5 do artigo
268º da Constituição a exigência da admissibilidade da acção para o reconhecimento de um direito quando o particular possa interpor recurso de anulação, precisamente porque este mecanismo processual se mostra adequado à tutela do seu direito, pretensamente lesado pela actuação da Administração
(estará assim assegurada a plenitude da garantia jurisdicional dos administrados, por via do recurso de anulação)'.
A nova formulação do artigo 268º nº. 5 da CRP, dada pela revisão de
97, não compromete a conclusão a que se chegou.
Reconhecendo que ela avança um passo mais na construção de um contencioso administrativo funcionalizado à tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados – pela primeira vez, a nível constitucional, tal como na nova epígrafe do artigo 20º, utiliza-se o conceito de 'tutela jurisdicional efectiva' – a inclusão da impugnação de actos lesivos a par do reconhecimento de direitos ou interesses, da determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e da adopção de medidas cautelares adequadas, não tem mais do que o sentido de expressar, em termos não taxativos, um conjunto de meios, de igual dignidade, que o legislador fica vinculado a consagrar para garantir, no contencioso administrativo, a referida tutela efectiva de direitos e interesses.
Mas dele também se não retira a imposição de duplicação de instrumentos processuais para a obtenção do mesmo fim último (tutela efectiva de direitos e interesses), sendo certo que a anulação contenciosa de actos administrativos com a sequente execução e o reconhecimento judicial de um direito em acção própria não deixam de ser meios que podem, com igual aptidão, alcançar aquele objectivo.
E daí que o artigo 69º nº. 2 da LPTA, interpretado no sentido de a acção de reconhecimento de direito não pode ser proposta, quando, havendo acto administrativo recorrível, a impugnação contenciosa conduzir à tutela efectiva do direito que se pretende ver reconhecido, não infrinja qualquer princípio ou norma constitucional, nomeadamente a que consta do actual artigo 268º nº. 5 da CRP.
Não se contesta a hipótese de o julgador errar, no juízo de prognose a que necessariamente é obrigado para integrar o conceito de 'efectiva tutela jurisdicional', concluindo que a procedência de um determinado meio processual assegura a tutela efectiva de um direito cujo reconhecimento se pede na acção prevista nos artigos 69º e segs. da LPTA, quando na realidade prefigurada assim não é.
Mas se esse juízo não assentar em premissas que afrontem o artigo
268º nº. 5 da CRP – designadamente resultantes da interpretação daquele próprio conceito – o erro situa-se no domínio da aplicação da lei ordinária, que está subtraída aos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
Em suma, a norma ínsita no artigo 69º nº. 2 da LPTA não enferma de inconstitucionalidade originária ou superveniente, pois não contraria o disposto nos artigos 268º nº. 3, 268º nº. 5 e 268º nº. 4, todos da CRP, nas versões de
82, 89 e 97, respectivamente.
3 – Decisão
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 9 de Fevereiro de 1999- Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida